Opinião

A arriscada manutenção da substituição tributária do ICMS

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7 de fevereiro de 2020, 7h02

No apagar das luzes de 2019, já na última sessão da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP), o julgamento de um dos processos em que se discutia a cobrança do ICMS devido por substituição tributária (ICMS-ST), envolvendo uma distribuidora de medicamentos, ganhava especial destaque.

Isso porque os integrantes da Câmara Superior do aludido tribunal (em decorrência de ordem judicial obtida pela Fazenda Pública) foram obrigados a analisar e julgar pedidos de retificação de julgado e de reforma de julgado administrativo apresentados pela representação fiscal paulista em face do acórdão proferido pela Câmara Superior, que, por maioria de votos, deu provimento ao seu recurso especial para cancelar integralmente o AIIM, cuja discussão envolvia a sempre controversa sistemática de recolhimento do ICMS-ST.

A já movimentada sessão de julgamento, em vista da extensa pauta de processos, ficou ainda mais conturbada, já que esse caso havia representado perda significativa à Fazenda Pública de São Paulo em âmbito administrativo.

Mas não apenas em termos financeiros. Explica-se: essa autuação foi lavrada, como dito, em face de empresa distribuidora de medicamentos, sujeita à antecipação do ICMS devido sob a sistemática da substituição tributária, conforme previsão do artigo 426-A do Regulamento do ICMS paulista (RICMS-SP, aprovado pelo Decreto 45.490/2000), pela suposta (i) ausência de recolhimento desse imposto na entrada de tais produtos em território paulista oriundos do estado de Goiás e (ii) falta de escrituração de tais notas fiscais.

Na referida decisão, objeto dos mencionados pedidos apresentados pela representação fiscal paulista e que cancelou integralmente essa autuação, a Câmara Superior do TIT-SP entendeu pela iliquidez do crédito tributário exigido, em virtude da imprecisão na fixação da base de cálculo do ICMS-ST, justificando seu posicionamento com fulcro na decisão do Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar o Recurso Extraordinário 593.849 em sede de repercussão geral, decidiu que a base de cálculo desse imposto não é definitiva, mas, sim, provisória, comportando restituição e/ou ressarcimento.

Durante tal discussão administrativa, a distribuidora de medicamentos autuada demonstrou a existência de distorções na fixação do preço real praticado ao consumidor final dessas mercadorias e os valores fixados pela norma paulista para fins de estabelecimento da base de cálculo da retenção do ICMS devido por substituição tributária sobre esses produtos, tanto à época dos fatos geradores objeto da autuação, como nos dias atuais.

Nesse contexto e por força da referida medida judicial aqui noticiada, a maioria dos membros da Câmara Superior do TIT-SP (oito a seis) não conheceu os referidos pedidos apresentados pela representação fiscal paulista, fazendo prevalecer o entendimento firmado na decisão anterior que cancelou a autuação pela iliquidez das exigências fiscais em virtude das alegadas distorções entre a base de cálculo presumida pela legislação e o valor real das operações praticadas, tendo em conta o novo entendimento acercada provisoriedade dos valores de ICMS devidos a título de substituição tributária, fixada pelo STF.

Diante do mencionado acórdão, embasado na decisão proferida pelo STF no julgamento do RE 593.849, apreciado em conjunto com as ADIs 2.777 e 2.675, comentado acima, a corte administrativa paulista, que vinha remando em sentido contrário a esse entendimento, ganha um importante precedente quanto à iliquidez do instituto da substituição tributária.

A título de recordação, vale lembrar que mesmo após o regime da substituição tributária progressiva, antes previsto nos parágrafos 3º e 4º do artigo 6º do Decreto-Lei 406/68 e no artigo 25 do Convênio ICM 66/88, ter sido encartado à Constituição Federal pela Emenda Constitucional 3/1993, mediante a inclusão do parágrafo 7º do artigo 150, muito se discutiu acerca da constitucionalidade desse mecanismo de cobrança.

O tema havia sido objeto do julgamento pela primeira vez no RE 213.396, de relatoria do ministro Ilmar Galvão, onde se decidiu pela validade da substituição tributária progressiva do ICMS, desde que atendidos os requisitos necessidade, adequação e proporcionalidade.

Em vista da edição, pelo Confaz, do Convênio ICMS 13/97, cuja cláusula segunda vedava a restituição do ICMS-ST sob a premissa de que a simples circulação da mercadoria tornava definitiva a base de cálculo do imposto, essa corte suprema voltaria a se debruçar sobre tal questão em 2002, no julgamento da ADI 1.851-4, onde restou reiterada não só a constitucionalidade do regime, como também consagrada a definitividade da base de cálculo desse imposto, e, portanto, não caberia a restituição de valores pagos considerando base de cálculo em valor superior ao efetivo preço praticado com o consumidor final

Finalmente, esse entendimento, que prevaleceu durante 14 anos, foi revisitado pelo STF em 2016 no já referido julgamento do RE 593.849 (e ADIs 2.777 e 2.675), marcando substancial mudança na jurisprudência então pacífica, passando a fixar a tese de que “é devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”, agora confirmando a provisoriedade da sua cobrança.

Observe-se ainda que, apesar de o posicionamento da corte suprema firmado no julgamento da ADI 1.851-4 ter imperado durante tanto tempo, os efeitos do novo entendimento firmado pelo STF retroagiram no tempo, pois houve modulação de seus efeitos (de 21 de outubro de 2016 em diante, tendo em vista o pronunciamento do STF no sentido de que o marco temporal para fins de modulação dos efeitos é a data da disponibilização da ata de julgamento da repercussão geral), conforme restou consignado nesse novo julgado, fato esse que colocou à prova a segurança jurídica dos contribuintes sujeitos ao regime de substituição tributária em questão, que tiveram aniquilada parte do seu direito de devolução do imposto em razão da decadência.

De todo o modo, apesar de ser motivo de comemoração — a despeito do movimento dos entes federados em buscar também o complemento do imposto em situações inversas, ainda que a decisão do STF não seja expressa a esse respeito — o entendimento, agora replicado em âmbito administrativo estadual paulista também deveria chamar a atenção desse e de outros estados para o mecanismo da substituição tributária progressiva como um todo, que, apesar de ter assumido importante função na garantia arrecadatória desses entes ao longo dos anos, tem perdido cada vez mais efetividade, eficácia e, principalmente, espaço em vista da insegurança jurídica e do custo tributário que a recente posição do STF provocou.

É indiscutível reconhecer o importante papel que o mecanismo da substituição tributária tem para os estados, especialmente na modalidade progressiva, ao concentrar o recolhimento do ICMS no fornecedor ou produtor de determinadas mercadorias cujo consumo é extremamente amplo e pulverizado, sem o qual, anos atrás, tornar-se-ia muito custosa a perfeita fiscalização e arrecadação desse imposto na ponta da cadeia de consumo.

Também é irrefutável o fato de que esse mecanismo, ao assegurar o combate à sonegação fiscal de maneira incisiva, garante a livre concorrência empresarial e previne desequilíbrios dessa natureza (artigo 146-A e inciso IV do artigo 170, ambos da Constituição), na medida em que evita uma competição desleal entre aquele contribuinte que deixa de recolher tributos e pode competir com preços mais atrativos no mercado do que o contribuinte que apura e recolhe regularmente os seus impostos, mas tem de embuti-los no valor de suas mercadorias.

Em contrapartida, a substituição tributária progressiva (“para frente”) em questão prejudica o comerciante eficiente que consegue reduzir seus custos e cobrar um preço menor pelos seus produtos, pois será tributado por uma carga de imposto proporcionalmente maior do que aquela que é comercializada por um preço superior, não propiciando, dessa maneira, quaisquer benefícios para o consumidor final.

Além disso, é inegável que a sistemática de fiscalização evoluiu em termos de tecnologia, acesso a dados e preparação, a ponto de poder se afirmar que hoje, no mundo digital que vivemos, os referidos entes estaduais possuem as ferramentas necessárias para evitar a perda de arrecadação, que é utilizada como pano de fundo para justificar a sujeição de tantas mercadorias à substituição tributária do ICMS.

Esses fatos, somados ao posicionamento do STF firmado no julgamento mais acima mencionado, além de terem evidenciado a enorme insegurança jurídica na cobrança antecipada do imposto para toda a cadeia, têm tornado o mecanismo da substituição tributária do ICMS insustentável.

Tanto é verdade que alguns entes da federação, como o estado de Santa Catarina mediante a edição do Decreto 1.541/2018, têm promovido a exclusão da sujeição ao regime de substituição tributária do ICMS de diversos produtos em vista do custo envolvido na provável necessidade de devolução futura desses valores por meio do ressarcimento.

Ainda, mais recentemente, o estado do Paraná, por meio do Decreto 2.673/2019, excluiu 60 mil itens do regime de substituição tributária, sob a justificativa de que tal medida estimulará o aumento de vendas e a arrecadação de tributos, além de liberar o capital de giro do empresário, que ficava comprometido com o custeio da necessidade de retenção antecipada do imposto.

Por outro lado, como forma de reforçar o nebuloso cenário jurídico que esse regime tem proporcionado, o estado do Rio Grande do Sul, para restabelecer a definitividade da substituição tributária antes vigente, criou, recentemente, o regime optativo de tributação da substituição tributária (ROT-ST), instituído pelo Decreto estadual 54.938/2019 (publicado no DOE-RS do dia 19 de dezembro de 2019).

Referido regime, de constitucionalidade duvidosa, possibilita que os contribuintes adeptos tenham suas operações amparadas pela definitividade da cobrança do ICMS devido por substituição tributária ao longo do ano de 2020, não podendo o Fisco exigir a complementação desse imposto, e nem o contribuinte requerer a restituição desses valores nos casos de distorções entre as bases presumida e efetiva, para maior ou menor, conforme o caso. Portanto, acaba se equiparando a uma aposta, em um cenário econômico de incertezas.

A necessidade de se repensar o instituto da substituição tributária é tamanha que os projetos de reforma tributária mais discutidos atualmente — que visam a criação de um Imposto sobre Bens e Serviços único em âmbito nacional, além de desburocratizar o sistema tributário como um todo —, nada dispõem acerca desse instituto, sugerindo, de fato, o fim desse mecanismo de cobrança caso sejam aprovados.

De todo o modo, ainda que diante de tantos problemas enfrentados e na mais remota, mas não improvável, hipótese de se decidir pela manutenção do regime da substituição tributária em nosso ordenamento jurídico, mostra-se patente a necessidade de reflexão do legislador, para que o faça em regime de exceção, em casos muito pontuais e não tão generalizados como hoje, de maneira bem criteriosa, obedecendo a parâmetros claros e que garantam maior segurança jurídica aos contribuintes.

Contudo, todos os projetos em questão, se aprovados, deverão implementar mudanças graduais no sistema tributário brasileiro, a ocorrer num futuro não tão próximo.

Nesse cenário, diante do caos instaurado com a recente reviravolta no posicionamento da corte suprema a respeito da indefitinividade da base de cálculo desse ICMS, urge que os entes políticos estaduais implementem medidas alternativas ao regime da substituição tributária a toque de caixa, de modo a se evitar derrotas como a aqui comentada — que não serão mais raras —, prevenindo, também, a judicialização de demandas tributárias dessa natureza.

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