Opinião

Improbidade e danos extrapatrimoniais

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7 de fevereiro de 2020, 16h30

Não têm sido raras as ações de improbidade administrativa no bojo das quais se tem buscado, a par da cominação das sanções do artigo 12 da Lei 8.429/1992, a reparação por danos morais coletivos.

Acontece que o instituto do dano moral pressupõe a existência de violação a direitos de personalidade, que são afetos, necessariamente, ao indivíduo. É justamente essa vinculação do dano moral à ofensa de direitos do indivíduo que faz surgir, em nossa opinião, a incoerência do instituto de danos morais coletivos, notadamente quando postulados em sede de ação de improbidade.

Quando se fala em danos morais coletivos, tem-se a ideia de transindividualidade, a qual, por sua vez, induz a indeterminação dos sujeitos em tese atingidos. Dessa forma, se a alegada ofensa se reveste de caráter transindividual, não há como se determinar os indivíduos titulares dos direitos violados, o que implica a ausência de violação a direitos de personalidade e até mesmo a verificação concreta do dano, pressuposto para a responsabilização civil, a teor dos artigos 186 e 927 do Código Civil.

O instituto dos danos morais coletivos incorre, assim, em uma contradição essencial: se funda na violação de direitos de personalidade, dos quais somente indivíduos podem ser titulares. Como a coletividade não titulariza direitos de personalidade, jamais poderiam existir danos morais coletivos, eis que a violação de tais direitos é requisito essencial para a ocorrência do dano moral.

O ministro Teori Zavascki, no julgamento do REsp 598.281, quando ainda atuava no Superior Tribunal de Justiça, foi certeiro ao destacar que:

Todavia, a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa. Não parece ser compatível com o dano moral a ideia da "transindividualidade" (= da indeterminabilidade do sujeito passivo e da indivisibilidade da ofensa e da reparação) da lesão. É que o dano moral envolve, necessariamente, dor, sentimento, lesão psíquica, afetando "a parte sensitiva do ser humano, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" (Clayton Reis, Os Novos Rumos da Indenização do Dano Moral, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 236), "tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado" (Yussef Said Cahali, Dano Moral, 2ª ed., São Paulo: RT, 1998, p. 20, apud Clayton Reis, op. cit., p. 237).[1]

Lamentavelmente, contudo, o entendimento acima encontraria resistência ilustrada, em primeiro lugar, pelo acórdão no REsp 866.636 (DJ de 6 de dezembro de 2007), até que se consolidasse o entendimento jurisprudencial, ainda atual, pela possibilidade de danos morais coletivos. Essa consolidação, que criticamos, acabaria por produzir efeitos colaterais adicionais por conta de uma outra desvirtuação: o uso da ação civil pública para veiculação de pretensão condenatória por ato de improbidade, que fez com que, com cada vez maior frequência, como antecipado, houvesse a inclusão, em ações de improbidade, de pedido de reparação pelos tais danos extrapatrimoniais.

Em que pese, como admitido, já se tenha como jurisprudencialmente pacificada a possibilidade de reivindicação de reparação por danos morais coletivos em sede de improbidade, não nos furtamos o direito de firmar nossa posição. E o fazemos argumentando que, se dano moral é espécie do gênero indenização, e se indenização busca compensar o ofendido na extensão da lesão suportada, o chamado dano moral coletivo, por reverter a todos indistintamente, sem reverter a favor de ninguém especificamente[2], poderá ser qualquer coisa, menos dano moral.

É que, despido de seu viés reparatório, a rubrica condenatória dos danos morais coletivos acaba por assumir, no âmbito das ações de improbidade, a condição de punição adicional, ao arrepio do artigo 5º, XXXIX, da Constituição, e do rol dos artigos 37, parágrafo 4º, também da Carta, e 12 da Lei de Improbidade, não podendo subsistir como pena, porque sem prévia cominação legal que encare o instituto como tal.

Essas considerações todas vêm bem a calhar precisamente pelo fato de a Lei 8.429/1992 exigir, em seu artigo 5º, como pressuposto para reparação, lesão efetiva e objetiva ao patrimônio público, o que não conseguimos conceber na figura dos danos morais coletivos.

A título de reforço, acresça-se que, ainda que um ato de improbidade tivesse o condão de causar comoção social apta a ensejar direitos de indenização por danos morais coletivos, a pretensão condenatória haveria de ser exercida em demanda própria, sob o procedimento comum, não se coadunando com o procedimento especial da Lei 8.429/1992.

É que o artigo 327, parágrafo 1º, inciso III, do Código de Processo Civil, estabelece que a cumulação de pedidos — no caso, a aplicação das penas da Lei 8.429/1992 e a condenação em danos morais coletivos — é lícita desde que o procedimento seja adequado para a apreciação de todos os pedidos. Nada obstante, o procedimento da Lei de Improbidade Administrativa, por sua especialidade e por suas particularidades, não se identifica com o procedimento comum, que seria o adequado para a persecução da reparação pelos alegados danos morais coletivos.

Não foi outro, aliás, o entendimento versado pelo desembargador federal da 4ª Região Fernando Quadros da Silva em decisão proferida no Agravo de Instrumento 5003488-30.2017.4.04.0000[3], na qual reconheceu que “a cumulação [de condenação nas sanções do artigo 12 com reparação por danos morais coletivos] somente poderia ser permitida se fosse adotado o procedimento comum, o que a Lei 8.429/92 não permite”. No mesmo sentido, é ainda possível pinçar julgados esparsos que, na esteira das razões acima, entendem que “a ação de improbidade administrativa não comporta sanção de reparação do dano extrapatrimonial coletivo”[4].

Por tudo isso, ainda que concedamos que o tema possui tratamento jurisprudencial distinto, entendemos que a figura do dano moral coletivo na verdade traduz uma exótica apenação adicional que não coaduna com a Constituição e com a própria Lei 8.429/1992, e que, por isso, jamais poderia frequentar pedido em sede de ação de improbidade. A despeito dessa nossa posição, o Projeto de Lei 10.887/2018, encampando o tratamento judicial, trouxe como proposta o acréscimo, em diversos dispositivos (artigos 12, 17, parágrafo 3º, III, 18, VI, e 18-B), da previsão dos chamados “danos não patrimoniais”, em que estariam inseridos os danos morais coletivos, proposição essa com a qual respeitosamente não concordamos.

[1] REsp 598.281, relator ministro Luiz Fux, relator para acórdão ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Turma, julgado em 2 de maio de 2006, DJ 1º de junho de 2006, p. 147

[2] MARINO, Bruno Di; FERRAZ, Álvaro. A saga jurisprudencial do dano moral coletivo: tinha razão o ministro Teori. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-31/opiniao-saga-jurisprudencial-dano-moral-coletivo

[3] Agravo de Instrumento 5003488-30.2017.4.04.0000. Relator desembargador federal Fernando Quadros da Silva. Decisão proferida em 6 de abril de 2017. Disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 8910972v8 e, se solicitado, do código CRC CB8BD57F.

[4] TRF-4, AC 5001672-05.2012.404.7011, 3ª Turma, juíza federal Salise Monteiro Sanchotene, acórdão juntado aos autos em 30 de abril de 2015.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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