Opinião

Selic não flui após prazo para decisão no processo administrativo federal

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6 de fevereiro de 2020, 18h48

O artigo 161 do CTN estipula que o crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta. Já o artigo 61, §3º, da Lei nº 9.430/96, determina seu cálculo à taxa Selic, remetendo ao artigo 5º, §3º, da mesma lei.

A expressão “seja qual for o motivo determinante da falta” deve ser interpretada com cautela. Por óbvio, há exceções que autorizam o não pagamento do tributo no seu vencimento, sem implicar, por essa razão, incidência de juros de mora. É o caso do depósito integral do valor cobrado que, além de suspender a exigibilidade, faz cessar a fluência dos juros moratórios[1].

Também é o caso de a inadimplência parcial decorrer da observância pelo contribuinte das normas tributárias complementares às leis, hipótese que exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização monetária da base de cálculo do tributo[2].

Se o contribuinte deixa de pagar ou paga de maneira indevida por culpa do próprio credor, não se encontra em mora e, por isso, não pode sofrer seus efeitos. Essa regra existe também no direito privado, positivada nos artigos 396 e 400 do Código Civil, verbis:

Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.
Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.

Trata-se de expressões de um princípio geral de direito, público e privado. A desoneração do devedor dos efeitos da mora que não lhe é imputável e a possibilidade de se considerar em mora o credor decorrem da boa-fé objetiva, plenamente aplicável, como há muito defende Misabel Derzi[3], ao direito tributário.

Afinal, se no direito privado a obrigação já é tida como processo complexo e não mera relação jurídica simplificada, resumida ao vínculo creditício[4], com muito mais razão assim é no direito tributário, onde a relação entre o Estado e o contribuinte rege-se não só pela existência do crédito tributário, mas também pelo complexo de princípios, de direitos fundamentais, limitações ao poder de tributar e deveres acessórios que diferenciam o tributo, enquanto obrigação legítima, de um mero confisco positivado em lei.

Em função da boa-fé objetiva, não pode o titular do crédito, sem amparo em razões intersubjetivamente reconhecidas como legítimas, recusar o pagamento ou oferecer óbices ao legítimo interesse do devedor em ver-se livre de suas obrigações[5].

Trata-se de dever acessório à obrigação principal, sendo ambos os sujeitos — ativo e passivo — igualmente obrigados a empenhar todos os meios para a correta satisfação do crédito, abstendo-se de oferecer óbices quer ao pagamento, quer à sua aceitação. Mora est dilatio culpa non carens debiti solvendi, vel credito accipiendi (a mora é a dilação culposa do pagamento da dívida, assim como da aceitação do crédito).

Portanto, assim como sujeitam-se contribuinte e Fazenda aos efeitos da mora solvendi, também sujeitam-se aos efeitos da mora accipiendi. Se deixam de receber a quantia legalmente imposta ao devedor sem culpa deste, é razoável que suportem o encargo da mora. Não pode, portanto, o contribuinte pleitear a correção monetária sobre créditos escriturais não aproveitados, a não ser que seja imputável ao Fisco a demora na sua utilização[6]. Do mesmo modo, não podem fluir juros contra o contribuinte pelo atraso no pagamento do tributo, caso o retardo não lhe seja imputável.

Trata-se da situação, por exemplo, em que, entregando o contribuinte a declaração de compensação, o Fisco recusa-lhe a quitação, alegando a inexistência de crédito que é, na verdade, líquido, certo e exigível. Nesta situação, deve o contribuinte oferecer manifestação de inconformidade, pleiteando a anulação do despacho decisório e o reconhecimento do adimplemento do tributo no ato da entrega da Decomp, sem qualquer ônus posterior a tal termo.

Outro exemplo reside na situação em que o contribuinte, discordando da licitude da cobrança, apresenta impugnação intentando a obtenção de decisão administrativa constitutiva, em definitivo, do crédito. No entanto, vê frustrada a sua expectativa pela demora ilegal na sua prolação que, no âmbito federal, por força de lei, deve ocorrer no prazo de 360 dias após o protocolo da peça processual correspondente[7].

Aqui, é importante observar que, mesmo defendendo-se do crédito tributário e não o pagando imediatamente, busca o contribuinte, da mesma forma, a sua desoneração, surgindo para a administração fazendária o dever de cooperar. A decisão administrativa é forma tão legítima de extinção do crédito tributário quanto o pagamento[8] e é direito do contribuinte realizá-lo somente após o exercício do contraditório. Nessa situação, pelo descumprimento do prazo para decidir, encontra-se o poder público em status de violação da boa-fé objetiva, independentemente de culpa, invertendo-se, por conseguinte, a mora.

Em suma, ultrapassado o prazo de 360 dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte, não lhe é imputável a mora no cumprimento da obrigação tributária, razão pela qual não fluem os juros correspondentes à Selic previstos no artigo 61, § 3º, da Lei nº 9.430/96. De mais a mais, não pode a norma do art. 24 da Lei nº 11.457/2007 ser tida como soft law, sem nenhuma consequência ante o seu descumprimento.

[1] Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80)

“Art. 9º – […] § 4º – Somente o depósito em dinheiro, na forma do artigo 32, faz cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora.

[2] CTN

“Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa;

III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas;

IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.”

[3] DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar.

[4] SILVA, Clóvis V. do Couto e, A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

[5] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. V. 2. 9. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2015, p. 503.

[6] STJ, Primeira Seção, Tema Repetitivo 164, REsp nº 1.035.847/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJe 03.08.2009.

[7] Lei nº 11.457/2007: “Art. 24. É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte.”

[8] Art. 156. Extinguem o crédito tributário:

I – o pagamento;

II – a compensação;

III – a transação;

IV – remissão;

V – a prescrição e a decadência;

VI – a conversão de depósito em renda;

VII – o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§ 1º e 4º;

VIII – a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do artigo 164;

IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória;

X – a decisão judicial passada em julgado.

  1. – a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001) (Vide Lei nº 13.259, de 2016)

Parágrafo único. A lei disporá quanto aos efeitos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior verificação da irregularidade da sua constituição, observado o disposto nos artigos 144 e 149.

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    é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, professor adjunto de Direito Tributário da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

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    é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados e doutorando em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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