Interesse Público

As eleições e a autonomia das universidades federais

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6 de fevereiro de 2020, 8h00

Spacca

Mesmo na véspera do Natal de 2019, não passou despercebida pela imprensa a edição de Medida Provisória disciplinando a escolha dos reitores das universidades federais, institutos federais e do colégio Pedro 2º (MP nº 914, de 24 de dezembro de 2019).

A norma teria sido editada com o intuito de restringir a autonomia das universidades federais, retirando poderes dos conselhos universitários, segundo a análise de portais de notícias[1].

A exposição de motivos da Medida Provisória, por outro lado, justifica que o tema ainda seria regido por legislação esparsa e antiga, que necessitaria de modificação para se adequar à política de governança da Administração Federal, incluindo a uniformização dos requisitos para que os docentes possam se habilitar à candidatura para tão relevante cargo. Para além das diferentes opiniões e versões, convém aprofundar a análise comparativa dos marcos normativos, o anterior e o atual, sobretudo em razão da importância das universidades federais e de sua gestão.

A história da universidade é a história da congregação de esforços, estudos e sonhos para livre difusão do conhecimento. Essa circunstância histórica suporta a convicção de que os conceitos de universidade e autonomia têm se aproximado de tal forma a ponto de parecerem indissociáveis.

Com efeito, lidar com conhecimento pressupõe trabalhar com o pensamento, realidade inapreensível e, por essa razão, livre por natureza. O conhecimento depende de uma mente livre para receber, amadurecer e produzir livremente pensamentos. A liberdade para produzir, transmitir e aperfeiçoar conhecimentos somente pode se efetivar por meio de instituições que possuam autonomia para definir seus rumos e como persegui-los, dentro dos quadrantes delimitados pelo direito positivo[2].

Quanto ao ordenamento jurídico, é possível perceber que, em razão da relevância de suas atribuições, as universidades foram tratadas com especial distinção pelo Constituinte. Nesse sentido, de acordo com a Constituição Federal, as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (artigo 207).

Os órgãos ou entidades dotados de autonomia pela Constituição são aqueles que necessitam, para o exercício adequado de suas funções, de normas jurídicas específicas tocantes à sua organização e ao seu funcionamento. Tais normas estruturarão a garantia dos direitos de seus titulares ou membros, disciplinarão a formação e eficácia jurídica da sua vontade e também sua organização voltada à eficiência no exercício das atribuições respectivas. A Constituição reconhece esse espaço normativo, de forma explícita ou implícita, com a previsão da elaboração de normas próprias.

A autonomia é eminentemente instrumental: as instituições aquinhoadas com espaço normativo próprio pela Constituição da República possuem relevantes atribuições cujo desempenho depende justamente do correto manejo desse espaço, sem interferências que não encontrem fundamento direto na mesma Constituição

Todas as dimensões da autonomia devem ser analisadas e interpretadas sistematicamente. Não se tratando de soberania, mas sim de grau de liberdade para atuação voltada ao alcance de determinados objetivos e realização de valores, a autonomia encontrará constrições no próprio texto constitucional. Desta forma, por exemplo, a autonomia administrativa encontrará limites nas formas de organização subjetiva presentes no texto constitucional, o qual também impõe preceitos específicos sobre o regime jurídico da entidade e dos servidores públicos atuantes na Universidade.

Autonomia não significa imunidade a controle. Ao contrário, o controle é imposto em decorrência da necessidade de se preservar o interesse público que deve nortear a atuação das instituições autônomas. Em se tratando de entidades descentralizadas, como as Universidades, a existência de mecanismos de controle diversos dos verificados nos órgãos da Administração centralizada é um dos objetivos que justificam a criação de pessoas diferentes.

A escolha dos Reitores, questão central deste artigo, se liga à autonomia administrativa. O artigo 16 da Lei nº 5.540/68, expressamente revogado pela MP nº 914/19, disciplinava a escolha e nomeação de Reitores e Vice-Reitores de universidades federais, e de Diretores e Vice-Diretores de unidades universitárias.

De acordo com o dispositivo, a escolha do Reitor era atribuída ao Presidente da República como ato discricionário, condicionado à escolha dentre os integrantes da lista tríplice organizada pelo colegiado máximo da universidade. A lei estabelecia regra para a composição do colegiado que elabora a lista tríplice: deveria ser constituído de representantes dos diversos segmentos da comunidade universitária e da sociedade, observando o mínimo de setenta por cento de membros do corpo docente no total de sua composição (artigo 16, II). No que toca ao procedimento para elaboração da lista tríplice pelo colegiado máximo da universidade, a lei facultava a consulta prévia à comunidade universitária, atribuindo ao referido colegiado a competência para estabelecer as respectivas normas.

É dizer: a consulta à comunidade universitária era facultativa, fruto de decisão discricionária do órgão máximo. Contudo, notava-se a presença de dois aspectos vinculados: a votação uninominal e o peso de setenta por cento para a manifestação do pessoal docente em relação à das demais categorias (artigo 16, inciso III). As demais regras procedimentais relativas à consulta da comunidade universitária deveriam ser estabelecidas pelo órgão colegiado máximo da instituição, obviamente respeitando a hierarquia e a sistematicidade do ordenamento.

Dentre as normas que se encontravam no campo de livre disposição do conselho destacavam-se as referentes à interpretação da expressão comunidade universitária e o peso para a manifestação dos seus membros, desde que seja respeitado o peso mínimo de setenta por cento para os docentes. Havia livre disposição sobre o peso que não foi expressamente disciplinado pela lei (30%). No campo das conjecturas, por exemplo, não haveria qualquer ilegalidade no estabelecimento do peso total (100%) para a manifestação dos professores.

A Medida Provisória nº 914/19 alterou a sistemática da escolha, disciplinando de forma vinculada alguns aspectos que antes haviam sido considerados como discricionários.

O novo marco jurídico estabelece pressupostos para a candidatura, com destaque para a obediência a requisitos que ficaram conhecidos como “ficha limpa”, e impõe afastamento de cargo em comissão ou função de confiança a partir da homologação da candidatura (artigo 5º). Há também limitações à recondução: “O Reitor e aquele que o houver sucedido ou substituído no curso do mandato por mais de um ano não poderá ser nomeado para mais de um período sucessivo” (artigo 4º, parágrafo único).

A alteração mais significativa se encontra no procedimento de elaboração da lista tríplice. A MP torna obrigatória “a realização de consulta à comunidade acadêmica para a formação da lista tríplice para o cargo de Reitor para submissão ao Presidente da República por meio do Ministro de Estado da Educação” (artigo 2º). O §1º do artigo 3º define os eleitores que compõem a comunidade acadêmica e o peso de seus votos no processo de consulta, a ser obtido mediante média ponderada: a) servidores efetivos do corpo docente (peso de 70%); b) servidores efetivos técnico-administrativos lotados e em exercício na instituição (peso de 15%) e c) alunos (peso de 15%).

Percebe-se que o novo regramento realmente possui mais aspectos vinculantes que, por consequência, suprimem margem de atuação e interpretação para os órgãos universitários. Entretanto, em linhas gerais, a sistemática anterior foi aperfeiçoada.

Na sistemática disciplinada pelo artigo 16 da Lei 5.540/68, havia competência discricionária do colegiado máximo da universidade para decidir entre consultar ou não consultar a comunidade universitária; a decisão de consultar a comunidade trazia consigo o reconhecimento de competência igualmente discricionária para estabelecer as normas procedimentais — infralegais — para disciplinar a respectiva consulta, à exceção de dois aspectos: votação uninominal e peso de setenta por cento para a manifestação do pessoal docente em relação à das demais categorias. Esses dois aspectos já haviam sido definidos pela lei, sendo vinculantes caso a consulta — facultativa — fosse realizada.

Entretanto, em diversas Universidades existia — existe — tradição de desconsiderar essa previsão legal e realizar a consulta com peso paritário entre as categorias (docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes), ignorando o peso preponderante definido em lei. A consulta, dessa forma, se revestia de um aspecto mais informal e tinha também a tradição de ser acatada pelos colegiados superiores das universidades.

Além da controvérsia legal, a adoção do voto paritário  possui o inconveniente de diminuir o peso do voto do professor, o único vértice do triângulo da “comunidade universitária” que possui também as características dos outros dois: permanência, levando-se em conta a expectativa de vida funcional (assim como os servidores técnico-administrativos, o professor possui vínculo permanente com a Universidade, não se exaurindo em prazo determinado) e participação na relação de ensino (professor e aluno compõem o minimum da relação de ensino universitário, servidores técnico-administrativos realizam atividades de apoio).Desta forma, a atribuição de maior peso deliberativo à manifestação docente é plenamente justificável.

O servidor docente possui maior responsabilidade para com a autonomia didático-científica — que justifica a autonomia administrativa — em razão da função exercida e da perenidade de seu vínculo, o que não ocorre com os discentes.

Outra mudança significativa ocorre na escolha dos Diretores de unidade, antes sujeita às mesmas regras gerais traçadas para eleição dos Reitores (pelo artigo 16 da Lei 5.540/68). Nos termos da medida provisória, Os Diretores serão escolhidos e nomeados pelo Reitor, cumpridos determinados requisitos (artigo 9º), independente de qualquer consulta à comunidade acadêmica. Nada obsta, entretanto, a realização de consulta informal por parte do próprio Reitor, que poderá se vincular ao desejo preponderante da comunidade acadêmica. Trata-se de redução da discricionariedade por autovinculação, medida que pode incrementar a gestão democrática, materializando também nas faculdades a autonomia administrativa conferida às universidades.

Finalizando, convém anotar que o regime jurídico de escolha dos Reitores pelo Chefe do Executivo  não afronta o artigo 207 da Constituição Federal. A autonomia administrativa é instrumental, como foi dito, por ser instrumento de garantia da autonomia didático-científica. Desta forma, deve ser considerada como inconstitucional qualquer ingerência na administração das Universidades que permita, ainda que indiretamente, interferência em sua liberdade essencial para as atividades de ensino, pesquisa e extensão. A solução imposta pela regra legal, entretanto, não apresenta esse problema.

A escolha do Reitor em lista tríplice não desnatura a autonomia administrativa das Universidades não somente em razão da necessária participação da comunidade universitária, mas sobretudo porque cabe à própria Universidade estabelecer, mediante norma própria, a composição e as competências do órgão colegiado além das atribuições do Reitor. Essa solução foi expressamente reconhecida pela Lei nº 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (artigo 54 e seguintes).

A propósito, convém relembrar que a Constituição prevê, por exemplo, a participação do Executivo na escolha do chefe do Ministério Público, instituição dotada de autonomia e independência funcional, função essencial à justiça e ao Estado Democrático de Direito. A despeito da previsão constitucional expressa, as garantias institucionais e a existência de mandato afastam o argumento de mitigação da autonomia do Ministério Público em decorrência da participação do Executivo.

Em conclusão, a participação no procedimento complexo de escolha do gestor não significa, por si só, interferência do Executivo na autonomia didático pedagógica da instituição. A exigência de lista tríplice já existia, e a escolha do candidato mais votado é uma tradição, que, espera-se, seja mantida. Na prática, a comunidade universitária (professores, alunos e servidores) continua sendo responsável pela lista tríplice, agora sem a participação do colegiado superior de cada instituição. As novas disposições trazidas pela Medida Provisória nº 914/19 sistematizam de forma mais clara as regras para esse procedimento complexo e, se devidamente interpretadas, não darão margem a qualquer retrocesso na gestão das universidades públicas. Seria possível e até mesmo desejável que a lei reconhecesse às Universidades a escolha de seus gestores, sem participação do Executivo. Entretanto, é também necessária a existência de instituições de governança que possam garantir uma gestão transparente, eficiente e focada na realização dos valores públicos constitucionalmente delineados.

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