Opinião

O exercício da advocacia e o abuso de autoridade

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5 de fevereiro de 2020, 6h30

A advocacia, conforme assegura a Constituição Federal, está inserida dentre as funções essenciais à Justiça brasileira, considerando-se o advogado como um profissional “indispensável à administração da justiça, inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (artigo 133 da Constituição Federal).

Para regulamentar este artigo, foi promulgada a Lei 8.906/94, dispondo sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Nesta lei, mais exatamente nos artigos 6º, 7º e 7º-A, encontram-se declarados os direitos do advogado, garantindo-se-lhe as condições necessárias ao pleno exercício da função, a fim de que possa trabalhar com liberdade, sem receios ou temores e, evidentemente, com a responsabilidade inerente a toda profissão.

Como dizia Calamandrei, no clássico, é preciso ao advogado ter aquela “coragem civil”, aquela mesma que o faz parar indignado quando vê alguém sofrer uma “violência que ameaça o direito”, e não consegue “prosseguir em seu caminho fingindo não vê-la”, tomando sempre, e corajosamente, “a defesa do mais fraco.”[1] E, para isso, como é evidente, à advocacia têm que estar assegurados alguns direitos, sem os quais se tornará difícil exercer a sua função com aquela “coragem civil.”

Ressalvando, logo no princípio, não haver “hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”, dispõe o Estatuto que “as autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho.” (artigo 6º).

Afinal, ainda valendo-me de Calamandrei, “não é honesto, quando se fala dos problemas da justiça, refugiar-se atrás da cômoda frase feita que diz ser, a magistratura, superior a qualquer crítica e a qualquer suspeita, como se os magistrados fossem criaturas sobre-humanas, não atingidas pelas misérias desta terra e, por isso, intangíveis.”

Como diz, ainda, o mestre italiano, “quem se contenta com essas tolas adulações ofende a seriedade da magistratura, a qual não se honra adulando, mas ajudando sinceramente a estar à altura da sua missão.”[2]

Continuando…

Entre os direitos assegurados pela lei está o de “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital” (artigo 7º, XIV). Portanto, aquele sigilo do qual trata o artigo 20 do Código de Processo Penal não se estende aos advogados, quando no exercício de suas funções.

Este direito, aliás, foi confirmado pela Súmula Vinculante 14, segundo a qual “é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

Este enunciado, como se vê, diz menos do que a lei, o que é de se lamentar. O direito do advogado, numa interpretação à luz da Constituição, não se limita ao acesso apenas a “procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária”, mas também a todo e qualquer procedimento dessa natureza, ainda que realizado, por exemplo, no âmbito das atribuições do Ministério Público (procedimento investigatório criminal, o PIC), da Polícia Militar e das Forças Armadas (inquérito policial militar, o IPM).

Pois bem.

Com a promulgação da Lei 13.869/19, passou a configurar crime de abuso de autoridade o fato de se “negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”, fato punido com pena privativa de liberdade, de seis meses a dois anos, e multa (artigo 32).

Observa-se, como dito acima, que este direito não se refere apenas, como é óbvio, aos autos do inquérito policial, mas, também, aos procedimentos investigatórios criminais levados a cabo pelo Ministério Público (os PICs), pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas (os IPMs); outrossim, como deixa bem claro a lei, diz respeito a todo e qualquer procedimento, ainda que de natureza extrapenal (como, por exemplo, o inquérito civil), inclusive procedimentos administrativos.

Também constitui direito do advogado, nos termos do referido Estatuto, ter assegurada “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia” (artigo 7º, II).

Trata-se, aqui, da preservação do direito ao sigilo profissional, condição inerente e inafastável para o exercício da advocacia, ainda mais se considerando que “el secreto profesional es difícil de mantenercuando se trata de cuestiones que rozanintereses de poder, pues se requiereunverdadero heroísmo profesional.”[3]

Outrossim, garante-se ao advogado, também no exercício da sua profissão, a possibilidade de comunicação “com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.” (artigo 7º, III).

Observa-se, a propósito, queno Brasil, à luz da Constituição Federal, não se pode “considerar” alguém como incomunicável, visto que o artigo 21 do Código de Processo Penal não foi recepcionado pelos artigos 5º, LXIII, e 136, parágrafo 3º, IV, ambos da Constituição.

Este direito é de fundamental importância, principalmente para que a defesa possa, junto com o investigado/acusado, traçar a sua melhor “estratégia defensiva”. Neste aspecto, importante a observação de Traversi: “Dopo avere individuato il punto decisivo del processo e davere atentamente ponderato, non soltanto la sostenibilitàdi una difesa basata sudiesso, ma anche i rischi di un eventuale insucesso, ocorre decidere, d'accordo con il cliente, la linea o, piú exatamente, la strategia difensiva da adottare.”[4]

Igualmente, está garantida pelo Estatuto “a presença de representante da OAB, quando o advogado for preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB”, não podendo “ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar” (artigo 7º, IV e V).

Aqui, é importante ressaltar que “o advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável” (parágrafo 3º do artigo 7º).

Em relação a estas últimas prerrogativas, passou também a constituir crime, de acordo o artigo 43 da referida Lei de Abuso de Autoridade (que acrescentou o artigo 7º-B ao Estatuto da OAB), “violar direito ou prerrogativa de advogado previstos (sic) nos incisos II, III, IV e V do caput do artigo 7º”, punido com pena de três meses a um ano.

Todo o crime acima referido trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, sendo cabível a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo (artigos 61, 72 e 89, da Lei 9.099/95), mas não é possível o acordo de não persecução penal, conforme proíbe o artigo 28-A, parágrafo 2º, I, do Código de Processo Penal.

Por fim, concluindo, lembro das palavras de Carvalho Neto que dizia caber à defesa, “imperiosamente, o dever de fazer arguições 'por mais ofensivas que pareçam', desde que sejam da essência da causa, pois este ímpeto legítimo e apaixonado da defesa, na retorsão aos abusos, é o aferidor do caráter do advogado, de sua independência, altivez e zelo pela honra da profissão.” Assim, dizia este grande jurista sergipano, “defendendo-se pessoalmente, defende-se a causa e a classe, salvaguardando-se a própria Justiça.”[5]

[1] CALAMANDREI, Piero, Eles, os juízes, vistos por um advogado, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 373.

[2] Obra citada, p. 258.

[3] AZERRAD, Marcos E., Ética y secreto professional del abogado”, Buenos Aires: Ediciones Cathedra Jurídica, 2007, p. 34.

[4] TRAVERSI, Alessandro, La difesa penale – tecniche argomentative e oratorie”, Milão: Giuffrè Editore, 2002, p. 26.

[5] CARVALHO NETO, Antônio Manoel, Advogados, como aprendemos, como sofremos, como vivemos, São Paulo: Forense, 1946, páginas 496 e 498.

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