Direto do Carf

1ª CSRF discute incidência de IRPJ nas operações de redução de capital

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

5 de fevereiro de 2020, 9h33

Os bons temas, no Direito e em qualquer outro ramo científico, são aqueles que não se esgotam, sempre apresentando novas nuanças, renovando-se ao longo do tempo e, portanto, desafiando novos olhares e renovada análise.

Com esse sentimento voltamos a tratar do tratamento tributário das operações de devolução de capital social aos sócios, com entrega de ativo da sociedade, avaliados a valor contábil, para posterior alienação pela pessoa física, com uma carga tributária inferior sobre o ganho de capital da operação. A operação, em síntese, se baseia na autorização legal estabelecida pelo artigo 22 da Lei nº 9.429/95[1], para que os bens sejam devolvidos aos sócios a valor contábil, e não a valor de mercado, diferindo assim a tributação do ganho de capital eventualmente verificado.

Esse tema foi por nós abordado em Março de 2019[2], em artigo publicado nessa mesma coluna, no qual analisamos diversos precedentes exarados pelas Câmaras Baixas do Carf para concluir que a jurisprudência do Conselho havia se consolidado no sentido de reconhecer que o contribuinte poderia escolher o momento em que será apurado o ganho de capital sobre os bens e direitos incorporados ao capital social (na incorporação, na devolução ou em posterior alienação), ressalvados os casos em que a fiscalização comprove a ocorrência de simulação, como nas hipóteses em que a alienação é anterior à devolução de capital.

Após nossas conclusões desenvolvidas naquele artigo, o tema foi objeto de três relevantes julgamentos, no âmbito da 1ª Câmara Superior de Recursos Fiscais, dos quais dois foram contrários aos interesses do contribuinte, enquanto outro foi favorável. Diante disso, torna-se necessário analisar tais precedentes como forma de verificar se houve uma alteração na jurisprudência do CARF, por força das decisões mencionadas, ou se as conclusões anteriores se mantêm.

O primeiro caso foi julgado por meio do Acórdão nº 9101-004.335[3], decorrente de Recurso Especial do Contribuinte, interposto contra o Acórdão nº 1402-002.772[4]. No caso concreto, alegou a fiscalização que a empresa vendedora se retirou da SPE que detinha as ações da companhia que se pretendia alienar, cedendo suas cotas para o acionista remanescente, de forma supostamente gratuita, que era uma empresa localizada no Uruguai. Após essa operação, a empresa uruguaia alienou a participação societária, submetendo-se, em razão de se tratar de pessoa jurídica domiciliada no exterior, a uma tributação de 15%, a título de IRF, sobre o ganho de capital. Neste caso, a fiscalização apontou que a negociação da alienação foi feita antes da cessão das cotas para a empresa uruguaia, e que a SPE em questão foi apenas uma “empresa veículo” com o único propósito de permitir que a participação societária fosse alienada por empresa residente no exterior.

O mote da autuação, em síntese, foi o fato de a cessão das quotas para a empresa uruguaia ter sido feita com a finalidade de submeter a venda a uma tributação favorecida, em um planejamento entendido como abusivo. O voto vencedor do Acórdão nº 1402-002.772 entendeu que conquanto a cessão seja juridicamente válida, razão pela qual se afastou a multa qualificada, elas não poderiam ser oponíveis ao Fisco, pela ausência de propósito negocial distinto da economia tributária.

No acórdão proferido pela CSRF, entretanto, a questão foi direcionada para a legitimidade ou não da redução de capital a valor contábil, sob o argumento de que a opção fiscal seria a priori válida, mas no caso concreto estaria maculada por dois motivos: i) a transferência das ações da empresa que detinha o ativo a ser alienado à empresa uruguaia, se deu após o recebimento da oferta de compra de ações, ainda que antes da assinatura da avença; e ii) alguns meses após a venda, o excesso de capital social teria sido infirmado pelo aumento de capital promovido pela empresa uruguaia, em valor superior à redução anterior.

Parece-nos que cabem algumas considerações, nesse ponto.

Cotejando os acórdãos a quo e ad quem, verifica-se que houve uma mudança do objeto da discussão: enquanto o acórdão recorrido discutia a validade ou não da cessão gratuita das quotas para a empresa uruguaia, que viabilizou a tributação favorecida, o acórdão da CSRF passou a discutir a legitimidade da redução de capital realizada, que disponibilizou as cotas que foram objeto de cessão. Os votos do Acórdão nº 1402-002.772 são uníssonos nesse ponto, como se verifica do excerto categórico extraído do voto vencedor: “a irregularidade que gerou a infração foi a cessão de quotas da (…) para a (…).”.

O segundo ponto que pode ser mencionado é o que os dois argumentos invocados pelo voto vencedor na CSRF são tipicamente relacionados à consideração da operação de redução de capital como simulada, como apontamos em acórdãos proferidos nas Câmaras Baixas. Em casos em que i) a negociação é feita pela empresa (e não pelo sócio que irá efetivamente alienar o bem) e antes da redução de capital e ii) o capital social é imediatamente recomposto após a alienação; há acórdãos do CARF que consideram que a operação realizada foi simulação, razão pela qual afasta a validade desses atos, considerando a venda como feita diretamente pela pessoa jurídica. Entretanto, no caso em questão, a acusação jurídica não era de simulação, mas sim de planejamento tributário abusivo, por ausência de propósito negocial na cessão das quotas para a empresa uruguaia.

Disso fica evidente a peculiaridade do referido precedente: a priori, poder-se-ia afirmar que houve modificação no entendimento que vem sendo exarado nas Câmaras Baixas, por afastar a aplicação de opção fiscal sob o fundamento de ausência de propósito negocial, entretanto, para fazê-lo, se utiliza de argumentos relacionados à desconsideração da operação por ocorrência de simulação (posição esta acatada em precedentes do Carf). Desse modo, não fica claro se o decisum em questão efetivamente se afasta do entendimento corrente, ou se, implicitamente, modifica os fundamentos jurídicos empregados na autuação, para tratar a operação como se simulada fosse, ainda que sob a epígrafe de abusividade. Mais ainda, é de se ressaltar que o acórdão recorrido discutiu a legitimidade da cessão de quotas realizadas para a empresa uruguaia, e não a redução de capital, que foi objeto do debate na CSRF, o que torna mais peculiar a sua análise.

No Acórdão nº 1302-002.389[5], pontuou-se bem que o cerne da discussão era a validade da operação que permitiu que uma empresa segregasse determinados ativos em outra pessoa jurídica, cujas quotas seriam alienadas por um sócio pessoa física, após a retirada da empresa que detinha os ativos, por meio da redução do capital social, submetendo essa operação a uma tributação favorecida. Nesse caso, diferentemente do anterior, o fundamento da autuação foi a ocorrência de simulação, alegando-se que uma sociedade foi criada apenas para deter os ativos que seriam alienados, passando a ter atividade econômica apenas após a alienação, somente mencionando que a inatividade da “empresa veículo” reforçaria a ausência de propósito.

Aqui, passou-se o contrário: a despeito da autuação fiscal imputar a ocorrência de simulação, o voto vencedor no Carf afirmou que seria desnecessária a existência de propósito negocial para a realização de operações societárias. Levada a questão à CSRF, foi proferido o Acórdão nº 9101-004.506[6], que deu provimento ao Recurso Especial do Procurador da Fazenda.

Nele, afirma o relator, vencedor neste ponto, que o art. 22 da Lei nº 9.249/1995 somente se aplicaria às hipóteses de redução de capital, e que ela “ somente pode ocorrer caso, depois de integralizado, i) se houver perdas irreparáveis, ou ii) se demonstrar que se encontra excessivo em relação ao objeto da sociedade[7]. Portanto, não poderia essa regra ser utilizada para diferir a tributação do ganho de capital, afirmando que a artificialidade das operações desvirtuaria a finalidade da lei, tratando a operação como se fosse um planejamento tributário e afirmando que não restou comprovada hipótese autorizativa da redução do capital social.

Em seguida, o relator apresenta “razões de decidir de natureza subsidiária”, onde afirma que o racional da incidência artificial do art. 22 da Lei nº 9.249/1995 guardaria similitude com a operação de “casa-separa”, na qual o ativo a ser alienado era transferido por meio de uma empresa veículo, e aduz que, no caso, a operação seria o “separa-sem-separar”, pois há uma separação do ativo em relação à pessoa jurídica que o detém.

A metáfora, conquanto lúdica, traz uma ponderação que nos parece alinhada com a jurisprudência do Carf: da mesma forma em que no “casa-separa” há que se comprovar que o bem incorporado ao capital social da empresa veículo foi recebido pelo “comprador”, que incorporou a contraprestação, no “separa-sem-separar” haveria que se comprovar que, após a alienação do ativo que foi segregado da pessoa jurídica, o valor da operação retornou ao patrimônio dela — circunstância esta que é justamente alinhada com uma das situações fáticas que os precedentes do Conselho consideram como caracterizador de uma operação simulada.

No caso concreto, entretanto, não se menciona em qualquer momento que o valor da venda, efetuada pela pessoa física, retornou ao patrimônio da pessoa jurídica, o que, na esteira da metáfora, corresponderia a afirmar a ocorrência do “casa-separa”, mas sem comprovar que o “comprador” saiu com o ativo… Assim, como visto, a autuação fiscal se baseou na ocorrência de simulação, pela interposição de pessoa jurídica para dissimular a operação de compra-e-venda, mas ao longo dos debates no processo administrativo o fundamento “migrou” para a impossibilidade de se utilizar o artigo 22 da Lei nº 9.249/1995 para fins de planejamento tributário.

Mencione-se, também, o recente julgamento do Recurso Especial do Procurador, no Processo nº 16561.720079/2015-68, favorável ao Contribuinte, cujo acórdão ainda não foi publicado, a despeito de notícias publicadas sobre o caso. Como o escopo de uma análise técnica do precedente formado restaria prejudicado sem uma análise mais detida dos fundamentos adotados e das particularidades concretas, optamos por não tratar dele neste momento, com o compromisso de retomarmos a sua análise tão logo seja publicada a decisão, cotejando-a com os demais analisados neste artigo.

Como se vê, os dois pronunciamentos da CSRF mencionados acima trazem peculiaridades relevantes, pois fogem ora da circunstância fática que gerou a autuação, ora do fundamento jurídico que a justificou. Há, por exemplo, a análise de propósito negocial da operação e oponibilidade ao Fisco, mas levando-se em conta critérios tipicamente utilizados para a caracterização de simulação, e há, também, caso em que a autuação de simulação é deixada de lado, em prol da consideração da finalidade exclusivamente tributária da operação.

Esse tipo de situação, lamentavelmente, dificulta a própria compreensão do caso e, sobretudo, o estabelecimento de uma jurisprudência íntegra e coerente, com critérios claros e consolidados de validação ou não das operações realizadas pelo contribuinte.

 


[1] Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista. a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado.

[3] Redatora designada Cons. Edeli Pereira Bessa, julgado em 07/08/2019.

[4] Redator designado Cons. Leonardo Couto, julgado em 17/10/2017.

[5] Redator designado Cons. Marcos Feitosa, julgado em 17/10/2017.

[6] Relator Cons. André Mendes de Moura, julgado em 06/11/2019.

[7] Há que se pontuar, entretanto, um equívoco nessa afirmação, pois a redução de capital, regida pelos arts. 173 e 174 da Lei nº 6.404/76 é apenas uma das hipóteses de devolução de capital a que alude o art. 22 da Lei nº 9249/95, abrangendo outras operações como resgate e reembolso de ações, cisão etc.

Autores

  • é sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, e professor em cursos de pós-graduação."

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