Academia de Polícia

Arquivamento do inquérito policial e controle ministerial, uma antiga proposta

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

4 de fevereiro de 2020, 8h00

Spacca

Conforme ensina Jacinto Coutinho, seria possível identificar, em termos de legislação comparada, três principais modelos de controle quanto à legitimidade do arquivamento da investigação preliminar: a) sistema jurisdicional (ex.: Itália – artigo 74 do CPP de 1930 e artigo 409 do CPP de 1988); b) sistema hierárquico (ex.: Portugal – artigos 277 e 278 do CPP de 1987); c) sistema misto (ex.: México – artigos 254 e 258 do CPP de 2014).[1] 

No primeiro caso, caberá ao órgão jurisdicional decidir sobre o arquivamento (ou não) da investigação preliminar, normalmente a partir de requerimento formulado pelo Ministério Público. É o que prevê, v.g., o modelo italiano. Quando o representante ministerial entende que inexistem elementos para o exercício da ação processual penal, formula um pedido de arquivamento (“una richiesta di archiviazione”) que é submetido ao controle do juiz para as investigações preliminares (“giudice per le indagini preliminari”).[2] Ademais, segundo Paolo Tonini, o controle é, em regra, efetuado de plano (isto é, sem audiência), mas pode tornar-se complexo em dois casos: quando o juiz não acolhe o pedido ministerial de arquivamento ou quando há impugnação da vítima.[3]      

Já no sistema hierárquico, o controle sobre a decisão de arquivamento da investigação preliminar fica circunscrito ao próprio Ministério Público, sem qualquer interferência deliberativa do Poder Judiciário. A situação é resolvida por mecanismos de controle administrativo interno do MP com o estabelecimento de uma instância revisora, a qual, inclusive, pode ser acessada mediante recurso da vítima, tudo, por óbvio, conforme expressa disciplina legal. É o caso, por exemplo, do modelo português. Após o arquivamento do inquérito, por “despacho” fundamentado (artigo 97, nºs 3 e 5, do CPP[4]) do órgão ministerial (artigo 277 do CPP), caberá “intervenção hierárquica” (artigo 278 do CPP[5]).

Por fim, no sistema tanto o Ministério Público quanto o Poder Judiciário detêm poderes decisórios a respeito do arquivamento da investigação preliminar. Cada qual, no entanto, em um dada situação do caso penal sob apuração na etapa pré-processual. Frise-se, portanto, que não há uma espécie de legitimação concorrente entre os órgãos ministerial e judicial, mas sim hipóteses distintas de legitimidade conforme o momento específico do procedimento de arquivamento da investigação preliminar. Cita-se, como exemplo, a legislação mexicana. Isso porque, segundo o artigo 258 do CPP,[6] em não havendo impugnação da vítima ou ofendido, as deliberações ministeriais sobre as “formas de encerramento da investigação” (abstenção de investigar, arquivamento temporário, aplicação de um critério de oportunidade e o não exercício da ação penal) passariam ao largo do controle jurisdicional. O que, inclusive, objeto de crítica por parte da doutrina.[7]

Por aqui, estabelecia o Código de Processo Penal, antes da Lei n. 13.964/2019, que o arquivamento do inquérito policial apenas poderia ser determinado pela autoridade judicial e desde que houvesse requerimento devidamente fundamentado do órgão ministerial.[8] Tinha-se, portanto, um modelo complexo (ou misto) a envolver dois órgãos distintos para o arquivamento de um inquérito policial que versasse sobre caso penal de iniciativa processual penal pública. Em síntese: requerimento ministerial e decisão judicial.

Ademais, em face do pedido de arquivamento realizado por membro do ministério público, o juiz poderia, em regra, adotar duas posturas distintas: a) concordar com a solicitação ministerial e, por conseguinte, encerrar a persecução penal naquela etapa mediante arquivamento do caso; b) discordar do requerimento ministerial e, portanto, remeter o caso para análise da chefia do Ministério Público[9], nos termos da redação antiga do artigo 28 do CPP, o qual, por sua vez, teria as seguintes opções: b.1.) oferecer denúncia pessoalmente, caso entendesse haver justa causa processual penal (e demais elementos necessários à deflagração da ação penal); b.2.) designar outro órgão do Ministério Público para oferecer denúncia, caso entendesse reunidas todas as condições indispensáveis ao exercício da ação processual penal, porém não desejasse fazê-lo pessoalmente; b.3.) insistir no pedido de arquivamento do inquérito policial, o que vincularia a autoridade judicial (ou seja: o juiz seria obrigado a arquivar o caso); b.4.) requisitar novas diligências à autoridade policial responsável pela presidência do inquérito, as quais tidas como indispensáveis à devida análise da justa causa processual penal na espécie (anote-se que, concluídas as diligências, os autos retornariam para deliberação da chefia da instituição ministerial).   

O procedimento, contudo, foi alterado pela edição da Lei n. 13.964/2019, que excluiu do órgão judicial esse controle a respeito da deliberação ministerial de arquivamento do inquérito policial. Aliás, um reclame antigo de parcela considerável da doutrina, que via nessa sistemática o exercício de uma função judicial “anômala de caráter persecutório”,[10] com viés tipicamente inquisitório, na contramão do modelo constitucional acusatório de 1988.[11]

A nova sistemática, constante do artigo 28 do CPP, dispõe que que tanto a decisão quanto os procedimentos correlatos de notificação e revisão decorrentes do arquivamento do inquérito policial, com ou sem recurso da vítima, incumbem ao Ministério Público.[12] Não há mais qualquer interferência do órgão judicial.

Importante destacar que a ideia de um controle ministerial hierárquico para o arquivamento do inquérito policial já havia sido incluída em anteprojetos e projetos anteriores de reforma do Código de Processo Penal. É o que se via do anteprojeto originário de José Frederico Marques de 1970, bem como de sua versão revisada pela subcomissão coordenada por José Carlos Moreira Alves (artigo 267).

Aliás, sua disciplina constou expressamente nos arts. 259 e 260 do Projeto de Lei n. 633, de 1975, na versão encaminhada à época, pelo Poder Executivo, à Câmara dos Deputados. Nesse particular, vale reproduzir na íntegra o disposto no citado artigo 259, in verbis: “Se o órgão do Ministério público entender que não há fundamento razoável para propor a ação penal, determinará o arquivamento do inquérito policial. § 1º O arquivamento será suscintamente fundamentado, com remessa de cópia ao Conselho Superior do Ministério Público. § 2º Se o Conselho entender que deva ser proposta a ação penal, será designado outro órgão do Ministério Público para oferecer a denúncia. § 3º Até vinte dias após o arquivamento, o ofendido ou seu representante legal poderá recorrer ao Conselho Superior do Ministério Público, em petição fundamentada dirigida ao órgão recorrido, o qual, depois de mandar juntar-lhe os autos, determinará que sejam enviados ao Conselho”.

De modo semelhante, a matéria foi tratada pela comissão de juristas, criada em 2008, por ato do Senado Federal, responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. A proposta de mudança foi explicitada nos seguintes termos: “(…) retirou-se, e nem poderia ser diferente, o controle judicial do arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação. No particular, merece ser registrado que a modificação reconduz o juiz à sua independência, na medida em que se afasta a possibilidade de o Ministério Público, na aplicação do artigo 28 do atual Código, exercer juízo de superioridade hierárquica em relação ao magistrado. O controle do arquivamento passa a se realizar no âmbito exclusivo do Ministério Público, atribuindo-se à vítima legitimidade para o questionamento acerca da correção do arquivamento”.[13]

Nesse sentido, o teor dos artigos 37 e 38 do Projeto de Lei do Senado n. 156/2009.[14] A propósito, a redação atual do artigo 28 do CPP, conferida pela Lei n. 13.964/2019, é praticamente idêntica à constante no artigo 38 do então PLS 156/09. O que, sem dúvida alguma, apesar de possíveis críticas, deve ser considerado um importante passo no sentido de um sistema processual penal acusatório.[15]

É bem verdade, no entanto, que o seu potencial transformativo pode ser completamente esvaziado a partir de uma cultura inquisitória. Não sem motivo a grande responsabilidade da academia no sentido de apontar os desvios autoritários da jurisprudência brasileira e denunciar as tentativas arbitrárias de contrarreforma processual de quaisquer das agências penais ou demais instâncias sociais.

Post scriptum. Não se pode desconsiderar, ao menos até deliberação plenária do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário, que o tema em discussão nesta coluna teve eficácia suspensa por decisão liminar do Min. Luiz Fux, em sede de Medida Cautelar na ADI 6299/2019, proferida na data de 22 de janeiro de 2020.  

 


[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Da Decisão Cautelar de Arquivamento do Inquérito Policial. In: NORONHA, João Ricardo (Coord.); ANDRADE, Pedro Felipe C. C. de (Org.). Revista Jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná. v. 1. Curitiba: Juruá, 2017, p. 81.

[2] A chamada “richiesta di archiviazione per infondatezza della notizia di reato” consta expressamente no art. 408 do CPP italiano. Há, no entanto, outros dispositivos a respeito do procedimento de arquivamento da investigação preliminar (ex.: arts. 409 – 411 do CPP).

[3] TONINI, Paolo. Lineamenti di Diritto Processuale Penale. 12 ed. Milano: Giuffrè Editore, 2014, p. 308.

[4] Decreto-Lei n. 78/1987. Artigo 97. “(…) 3 – Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos (…) 5 – Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

[5] Decreto-Lei n. 78/1987. Artigo 278. “1 – No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento. 2 – O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento”.

[6] Artículo 258. Notificaciones y control judicial. “Las determinaciones del Ministerio Público sobre la abstención de investigar, el archivo temporal, la aplicación de un criterio de oportunidad y el no ejercicio de la acción penal deberán ser notificadas a la víctima u ofendido quienes las podrán impugnar ante el Juez de control dentro de los diez días posteriores a que sean notificadas de dicha resolución. En estos casos, el Juez de control convocará a una audiencia para decidir en definitiva, citando al efecto a la víctima u ofendido, al Ministerio Público y, en su caso, al imputado y a su Defensor. En caso de que la víctima, el ofendido o sus representantes legales no comparezcan a la audiencia a pesar de haber sido debidamente citados, el Juez de control declarará sin materia la impugnación. La resolución que el Juez de control dicte en estos casos no admitirá recurso alguno”.

[7] “El problema es que para todos los delitos en que no haya reconocida en la averiguación previa una víctima u ofendido, que son la mayoría, no existe medio de control judicial y el ministerio público será la única autoridad facultada para resolver definitivamente, de forma discrecional, sobre la procedencia de los criterios de oportunidad” (DAZA, Alfonso Pérez. El Principio de Oportunidad en el Código Nacional de Procedimientos Penales. Revista del Instituto de la Judicatura Federal, n. 38, p. 39-65, 2014, p. 63).

[8] Artigo 28 do CPP – Redação Anterior à Lei n. 13.964/2019: “Artigo 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.

[9] Não custa lembrar que, no caso do Ministério Público da União, compete às câmaras de coordenação e revisão do Ministério Público Federal (artigo 62, IV, da LC n. 75/93), do Ministério Público Militar (artigo 136, IV, da LC n. 75/93) e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (artigo 171, V, da LC n. 75/93) manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral.

[10] PACHECO, Denilson Feitoza. Direito Processual Penal: teoria, crítica e práxis. 07 ed. Niterói: Impetus, 2010, p. 190.

[11] Nesse sentido: DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 05 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 237; FISCHER, Douglas; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Comentários ao Código de Processo Penal e Sua Jurisprudência. 05 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 72; PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 179.

[12] A mesma sistemática deve ser aplicada em relação ao arquivamento de outros elementos de informação de natureza criminal que não constituam autos de inquérito policial. Ex.: relatórios de investigação de outros órgãos públicos ou de particulares.

[13] BRASIL. SENADO. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009.

[14] Projeto de Lei do Senado n. 156/2009. Artigo 37. “Compete ao Ministério Público determinar o arquivamento do inquérito policial, seja por insuficiência de elementos de convicção ou por outras razões de direito, seja, ainda, com fundamento na provável superveniência de prescrição que torne inviável a aplicação da lei penal no caso concreto, tendo em vista as circunstâncias objetivas e subjetivas que orientarão a fixação da pena”. Artigo 38. “Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o Ministério Público comunicará a vítima, o investigado, a autoridade policial e a instância de revisão do próprio órgão ministerial, na forma da lei. § 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. §2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”.

[15] “Para uma estrutura processual penal como a brasileira, o sistema hierárquico funcionaria como verdadeira evolução, notabilizando a independência do MP e oferecendo ao ofendido a possibilidade de participar da discussão a respeito do arquivamento” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Da Decisão Cautelar de Arquivamento do Inquérito Policial…, p. 82).

Autores

  • é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Criminologia. Professor em cursos de Graduação e Pós-graduação

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