Opinião

Reforma tributária e o fim da multa qualificada

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

3 de fevereiro de 2020, 6h48

A pauta fiscal de 2019 foi tomada por um único grande assunto: a reforma do Sistema Tributário Nacional. De um modo geral, as discussões circundaram propostas de reforma do modelo de tributação do consumo estruturado na Constituição Federal de 1988. As principais proposições têm duas características em comum: todas pretendem “melhorar o ambiente de negócios” e são veiculadas por Propostas de Emenda à Constituição.

Não tenho nada contra objetivos grandiosos, mas desde o início suspeitávamos que o risco de se focar em uma reforma constitucional sistêmica era de que provavelmente nenhum resultado seria alcançado em 2019. Não é impossível, talvez seja até provável, que nenhuma das propostas de reforma constitucional avance significativamente em 2020.

Enquanto isso, há medidas importantes para a melhoria do ambiente de negócios, que sequer foram cogitadas no ano que passou. Uma delas seria o fim da multa qualificada na esfera tributária federal. De fato, a esta altura pode-se afirmar três coisas: uma multa de 150% não é razoável; a Receita Federal vem aplicando a multa qualificada, que deveria ser a exceção, a situações que não se enquadram em sua hipótese de incidência; a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais sobre o tema é oscilante, por vezes chancelando a aplicação desta multa quando ela deveria ser rechaçada.

A chamada multa qualificada está prevista no artigo 44, § 1º, da Lei 9.430/96, cuja redação é a seguinte:

“Artigo 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:

I – de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata;      

[…]

§ 1º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis. […].” (Destaque nosso)

Como estabelece este dispositivo, a multa de ofício pode ser duplicada quando há sonegação, fraude ou conluio, definidos nos artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502/64, transcritos a seguir:

“Artigo 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária:

I – da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais;

II – das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.

Artigo 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.

Artigo 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas, visando qualquer dos efeitos referidos nos artigos 71 e 72.” (Destaques nossos)

O conluio não é um conceito independente. Ele depende, para sua caracterização, da prática de sonegação, fraude ou ambas. Portanto, os conceitos relevantes, neste caso, são os de sonegação e fraude.

A definição de sonegação não deveria desafiar as capacidades hermenêuticas de qualquer intérprete. A lei dispõe de forma bastante clara que para que haja sonegação tem que ter ocorrido uma ação ou omissão dolosa, cuja finalidade tenha sido impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária da ocorrência do fato gerador ou das condições pessoais do contribuinte.

Nota-se que a sonegação tem um espaço bem restrito de caracterização. Se todas as informações foram disponibilizadas às autoridades fiscais, e surge um conflito de qualificação – por exemplo, contribuinte entende que as consequências fiscais de seus atos são “A”, enquanto o Fisco entende que são “B” – de sonegação não se trata, uma vez que todas as informações estavam à disposição da fiscalização.

De outro lado, a fraude tem a ver com comportamentos dolosos que visam impedir a ocorrência do fato gerador, ou excluir ou modificar suas características essenciais. A doutrina, de forma absolutamente tranquila, aponta que a fraude prevista no artigo 72 da Lei 4.502/64 é a fraude penal. Como aponta Marco Aurélio Greco, “o § 1º do artigo 44 não se aplica às hipóteses de fraude civil ou fraude à lei, incidindo apenas nas hipóteses que configurarem fraude ao Fisco ou configurarem sonegação no sentido penal”.[i]

Tudo o que foi brevemente exposto nos parágrafos anteriores não é novidade para quem trabalha com o Direito Tributário. Da mesma maneira, infelizmente não é novo que a Receita Federal tem usado a qualificação da multa, que deveria ser um instrumento excepcional para coibir situações criminosas, como um mecanismo banal para punir os contribuintes em situações de discussões qualificatórias, como ocorre, por exemplo, nas controvérsias sobre os limites do planejamento tributário legítimo.

Autores que têm uma visão que abre mais espaço para o controle do planejamento fiscal, como é o meu caso, o do professor Marco Aurélio Greco e o do saudoso professor Ricardo Lobo Torres, manifestam entendimento no sentido de que a caracterização da fraude e da sonegação no campo do planejamento tributário deve ser excepcional.[ii] Greco afirma, categoricamente, que a multa de 150% deve ser “a exceção da exceção”.[iii]

Nada obstante, por mais que esta deva ser uma medida excepcional, não é isso que a prática tem mostrado. Pelo contrário, a aplicação da multa qualificada, em autos de infração que desconsideram e requalificam atos e negócios jurídicos praticados pelos contribuintes, considerados planejamentos fiscais ilegítimos, tornou-se tão corriqueira quanto abusiva. Ao invés de ser a exceção da exceção a aplicação da multa de 150% tornou-se a regra, como se os contribuintes fossem sonegadores e fraudadores contumazes.

Assim, o contribuinte além de ter que suportar o peso de interpretar e aplicar uma legislação complexa, principalmente em um campo não legislado como os limites do planejamento tributário legítimo, tem que se expor à extorsiva multa de 150% sobre o valor do crédito tributário, que ainda abre as portas para questionamentos criminais absolutamente absurdos. Como construir um bom ambiente de negócios quando o empresário tem que lidar constantemente com a ameaça da persecução penal?

Não é o propósito deste texto entrar em um debate técnico detalhado sobre a interpretação do artigo 44, § 1º, da Lei 9.430/96 e dos artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502/64. Podemos até fazer isso em outro momento, mas o objetivo deste texto é conclamar o legislador federal a dar um basta neste problema pela raiz. Não se quer melhorar o ambiente de negócios? Este artigo oferece uma forma rápida, simples e que deve despertar poucas resistências em seu trâmite congressual: a revogação ou pelo menos a restrição da aplicação da multa qualificada.

O caminho mais eficaz seria, a meu ver, a pura e simples revogação do § 1º do artigo 44 da Lei 9.430/96. A legislação brasileira já prevê consequências criminais para os atos praticados pelos contribuintes de forma fraudulenta ou com vistas à sonegação de informações ao Fisco, na Lei 8.137/90 e dispositivos do Código Penal. Não é necessária a dupla penalização, que acaba resultando em sanções impróprias a contribuintes que podem ser tudo, menos criminosos. Ademais, a própria multa de ofício de 75% já é demasiado alta.

A segunda possibilidade seria uma mudança na redação deste dispositivo, limitando as possibilidades de desvio na sua aplicação.

Uma primeira sugestão seria o fim da referência aos artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502/64. É no mínimo surpreendente que, em 2020, a sistemática de aplicação da multa qualificada esteja presa a uma lei da década de 1960.

Além de deixar de fazer referência à Lei 4.502/64, entendo que o ideal seria que a multa qualificada tivesse um artigo próprio, ao invés de ser um parágrafo do artigo 44 da Lei 9.430/96.  Então, minha proposta alternativa seria a revogação do aludido § 1º, com a inclusão, nesta lei, de um artigo 44-A com a seguinte redação:

“Artigo 44-A. Havendo prova irrefutável de que o sujeito passivo praticou ato que impediu que as autoridades fiscais tomassem conhecimento da ocorrência do fato gerador do tributo, ou se valeu da prática de atos ilegais, com a finalidade de reduzir o montante do tributo devido, ou de evitar ou diferir o seu pagamento, a multa prevista no inciso I do artigo 44 poderá ser aplicada até o limite de 150%.

§ 1º. Em nenhuma hipótese a multa prevista no caput será aplicada se o sujeito passivo tiver declarado os atos praticados às autoridades fiscais, através de sua escrituração contábil e fiscal digital.

§ 2º. A desconsideração de atos e negócios jurídicos praticados pelo contribuinte sob argumento da ocorrência de abuso de direito, de falta de propósito negocial, de simulação, de abuso de formas jurídicas, de fraude à lei, ou qualquer outro equivalente, não autoriza a aplicação da multa prevista no caput.

§ 3º. A aplicação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, quando editada a lei regulando o procedimento ali previsto, não autoriza a aplicação da multa prevista no caput deste artigo.

§ 4º. A autoridade fiscal e o órgão de revisão graduarão a multa prevista no caput, até o limite ali previsto, considerando a culpabilidade, os motivos, as circunstâncias, o contexto histórico e as consequências do ato praticado pelo sujeito passivo."

Um dispositivo nessa linha limitaria a aplicação da multa de 150% ao que sempre deveria ter sido o seu objetivo: penalizar de forma diferenciada comportamentos criminosos dos contribuintes, sem deixar qualquer margem de dúvida quanto à sua inaplicabilidade aos casos de divergência interpretativa da legislação, ou no contexto dos debates sobre planejamento tributário.

Vivemos tempos estranhos no campo do Direito Tributário. Como um autor filiado à defesa da solidariedade como um valor estruturante do Sistema Tributário Nacional, da visão aberta do princípio da legalidade tributária, da inexistência da dita tipicidade cerrada no Direito Tributário, do dever constitucional de pagar tributos – justos e em conformidade com o disposto na Constituição Federal –, da existência de limites aos planejamentos tributários legítimos, às vezes me assusto com a distorção que se verifica na aplicação concreta de posições teóricas como a minha.

Por isso, há momentos onde é necessária uma nova reflexão sobre a finalidade da legislação e a sua aplicação. Minha avaliação é de que o artigo 44, § 1º, da Lei 9.430/96 está sendo distorcido pela prática. É hora, então, de uma intervenção do legislador. Nem toda reforma tributária, nem toda melhora no ambiente de negócios, requer uma PEC. Neste caso, bastaria uma lei ordinária federal, quem sabe até mesmo uma Medida Provisória.


[i] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 271.

[ii] Ver: ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário na Obra de Marco Aurélio Greco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 89-93; TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento Tributário: Evasão Abusiva e Evasão Fiscal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 128-129.

[iii] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 267.

 

Autores

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

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