MP no Debate

A prevenção de acidentes no trânsito e a indústria das multas

Autor

  • Ricardo Prado Pires de Campos

    é procurador de Justiça aposentado presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.

3 de fevereiro de 2020, 13h38

Não raras vezes se vê boas iniciativas serem deturpadas por interesses não muito nobres, ou para usar o jargão popular: “de boas intenções, o inferno está cheio”.

O Código de Trânsito Brasileiro foi, em parte, transformado nisso: um inferno para a vida dos motoristas, notadamente nas grandes cidades e para quem vive e trabalha no trânsito: taxistas e caminhoneiros são os maiores atingidos; mas em muitos lugares, nenhum motorista escapa. E tudo por um motivo muito nobre: reduzir as vítimas dos acidentes de trânsito. Contra o que, diga-se, ninguém, em são consciência, será contra. Contudo, na hora de pavimentar o caminho ao Paraíso, criaram o segundo inferno: a indústria das multas e das CNHs suspensas.

A indústria automobilística e de apartamentos já começam a sentir os efeitos: muitos jovens não querem mais guiar.

No ano passado, o Poder Executivo encaminhou projeto de lei à Câmara dos Deputados para promover mudanças no Código de Trânsito, inclusive no limite de pontuação para a suspensão da habilitação para dirigir, passaria de 20 para 40 pontos. Todavia, a proposta não encontrou ressonância na Casa Legislativa, pois, o nosso trânsito continua fazendo um número muito significativo de vítimas, e estamos longe de atingir os objetivos necessários e assumidos com a Comunidade Internacional.

É preciso tornar o trânsito mais seguro, mas, também, é preciso permitir que caminhoneiros, taxistas, e motoristas em geral possam continuar utilizando seus veículos para o trabalho, o lazer e demais atividades do cotidiano.

É verdade que as multas altíssimas, a cassação de habilitações e as suspensões aos milhares têm produzido resultados na redução dos acidentes, embora, ainda, estejamos longe do ideal.

O problema é que, nem sempre, as autuações e punições são criteriosas. As multas elevadíssimas, estratosféricas, viraram fonte primária de arrecadação. Estados e Municípios punem motoristas não porque eles guiam mal ou colocam em risco a vida alheia, mas, sim, porque querem o dinheiro do contribuinte.

A indústria das multas já foi noticiada inúmeras vezes pela imprensa, o próprio Presidente da República fez menção a ela quando encaminhou o projeto de alteração do CTB — Código de Trânsito Brasileiro — visando o aumento do limite de pontos da CNH.

Os motoristas do país sabem muito bem o que significa a denominada indústria das multas.

Todo mundo entende a necessidade de se punir um motorista que dirige embriagado, que abusa excessivamente da velocidade ou que participa de racha em via pública, pois, tais comportamentos são de alto risco e os acidentes causados, nessas circunstâncias, em geral, são fatais.  

Todavia, não tem o menor sentido suspender ou cassar a habilitação de um motorista porque ele desrespeitou um rodízio, porque esqueceu de acender o farol do carro durante o dia, ou não portava o documento do veículo, e mais inúmeras outras situações.

O Código de Trânsito prevê número enorme de infrações, algumas são voltadas à segurança das pessoas, outras para assegurar à fluidez do trânsito, mas, há, também, as que servem para garantir a arrecadação e a atualização dos registros públicos, como por exemplo as infrações dos artigos 232 e 241: “Conduzir o veículo sem os documentos de porte obrigatório” ou “Deixar de atualizar o cadastro de registro do veículo ou de habilitação do condutor”. Ambas consideradas infrações leves, mas que resultam em 3 pontos no currículo do condutor.

A multa por desrespeito ao rodízio (artigo187), por exemplo, é considerada infração média e resulta em quatro pontos na carteira. Ora, o Governo durante anos estimulou a compra de veículos pelas pessoas, isso movimenta a economia, gera empregos e progresso, além de muita arrecadação tributária, apesar das concessões concedidas aos fabricantes.

Ocorre que as Prefeituras das grandes cidades não fizeram investimentos condizentes com a magnitude da produção automobilística, resultado: as vias públicas não comportam mais tantos veículos. Aí, surge o jeitinho brasileiro: proíbe-se o contribuinte de circular com seu veículo em determinados dias da semana, e se ele o fizer, tome multa e pontos na carteira.

O contribuinte pagou os impostos devidos na compra do carro (IPI, ICMS e outros), o contribuinte paga, anualmente, o IPVA, se for para a estrada, paga o pedágio, e, na cidade, paga as multas, porque, embora tenha pago seus impostos, nem assim tem o direito de circular.

O que tais multas têm a ver com a segurança do trânsito? O que tais multas têm a ver com o número de mortes ou vítimas do trânsito? Absolutamente, nada.  Tem relação apenas com a fúria arrecadatória de alguns governantes de plantão.

O motorista que esqueceu do rodízio ou ficou preso no congestionamento, porventura, não sabe dirigir? Está colocando alguém em perigo de morte ou de lesão?  Claro que não.

É uma infração administrativa, está descumprindo uma determinação da Prefeitura. Devemos assegurar a Prefeitura o direito de regulamentar o trânsito, mesmo quando, por vezes, não tem razão? Sim, é necessário que a autoridade pública possa impor suas determinações, mas sempre dentro de limites razoáveis.

Há limites para o cidadão, há limites para o motorista, deve haver limites para as autoridades de trânsito, e, também, para a ganância do Estado e das Prefeituras em tirar o dinheiro e o sono dos contribuintes.

Há infrações em que apenas a multa seria suficiente, em outras, a retenção do veículo é mais eficaz, e há aquelas em que a suspensão imediata da carteira de habilitação se justifica, como naquelas em que haja perigo iminente para a vida das pessoas, por exemplo: velocidade muito exagerada  e incompatível com o local, embriaguez ao volante ou participação em rachas e corridas não autorizadas; mas isso já está na legislação (artigos 218, III, 165 e 174).

Todavia, nada justifica retirar o direito de dirigir da população, se não for por razões extremamente razoáveis, nem a expropriar seu patrimônio. Dezenas de infrações ao Código de Trânsito não trazem risco à vida ou à incolumidade física das pessoas; não justificam a suspensão ou cassação da habilitação do caminhoneiro, do taxista, nem do motorista que utiliza seu veículo para o trabalho, estudo ou lazer.

Muitas infrações consideradas graves pelo CTB, punidas com 5 pontos, não colocam em risco a vida ou a integridade física das pessoas. Exemplos: estacionamento irregular (artigo 181, III, VIII, XI e XVII), farol desregulado (artigo 223), usar equipamento de som com volume ou em frequência não autorizada (artigo 228), conduzir o veículo com a cor alterada (artigo 230, VII), e outras mais.

 Em verdade, o Código traz um exagero na cumulação de punições e em valores. Na cumulação porque prevê para a mesma infração: a multa; os pontos na carteira; mais a retenção ou apreensão do veículo e ou da CNH em diversos casos. As multas, graças as sucessivas alterações na legislação, passaram a ter seus valores multiplicados por 2, por 3, 5, 10 e até 20 vezes (mais de cinco mil reais); tornando-se verdadeira expropriação, impagável para muitos.

Se a sinalização de trânsito visando punir o motorista infrator estivesse colocada nos locais onde ocorrem os acidentes com vítima, estaria tudo certo; mas muitas estão nos lugares de maior trânsito, apenas com a finalidade de pegar o motorista desatento, mesmo que não haja risco algum à segurança.

Visando corrigir alguns exageros, a Presidência da República encaminhou projeto de lei ao Congresso Nacional, mas até o momento, não se chegou a consenso para uma solução.

Por um lado, os abusos por parte das Prefeituras e Estados são evidentes, de outro, não se pode realizar uma reforma que comprometa a segurança do trânsito. Contudo, é preciso agir.

Aumentar o número de pontos para a suspensão da habilitação pode soar como autorização para as pessoas descumprirem as regras, o que, obviamente, não é benéfico.

Fazer os órgãos de trânsito se voltarem mais para a educação dos motoristas, do que para as punições, seria o ideal, mas ainda pouco provável; pois, a sanha arrecadatória é incontrolável até que o Congresso ou os Tribunais coloquem limites rígidos a esses exageros.

As estatísticas demonstram que os maiores problemas no trânsito, envolvendo lesões e mortes, decorrem de excesso de velocidade em primeiro lugar, embriaguez ao volante, ultrapassagens em locais proibidos e falta de atenção.

Falta de atenção é um critério vago e difícil de definir, mas algumas condutas se tornam claras se devidamente tipificadas, como dirigir falando ao celular.

Excesso de velocidade acima de 50 por cento da máxima permitida, atualmente, implica na suspensão imediata da habilitação (art.218, III); mas aqui se está tratando da segurança das pessoas, é mais razoável, especialmente quando se sabe que a maior parte dos acidentes graves e fatais são causados exatamente pelo excesso de velocidade.

Os atropelamentos causados a 40 km por hora, resultam em uma morte a cada 5 pessoas; se a velocidade sobe para 50 km/h, o número de mortes se eleva para 3 em cada 5. Ou seja, a proporção sobe de 20 para 60%. E se a velocidade do veículo chegar a 60 km/h, a chance de sobrevivência do pedestre é praticamente nenhuma.  

Esses dados estatísticos demonstram a necessidade de se manter controle rigoroso sobre a velocidade dos veículos, especialmente no trânsito urbano, onde o fluxo de pessoas é intenso. Nas rodovias não há possibilidade de se manter as velocidades extremamente baixas. O país é enorme, as distâncias são gigantescas, as rodovias estão a cada dia melhores e os veículos mais seguros e eficientes. Reduzir riscos é preciso, impedi-los totalmente, ainda, é impossível.  

No lugar de se aumentar a pontuação de 20 para 40 pontos, poderia ser utilizada a alternativa inversa: a redução do número de pontos por infração ou até a isenção de pontos em casos em que a conduta não cause perigo à segurança das pessoas, embora importe em algum embaraço à administração.

No sistema atual, as infrações gravíssimas somam 7 pontos na carteira, as graves 5, as médias 4 e as leves 3 pontos.   Seria mais razoável, e mais justo com os motoristas, se as infrações leves resultassem em 1 ponto, as médias 2, as graves 3 ou 4, e as gravíssimas de 5 a 7, conforme o caso. Afinal, estacionar na vaga de deficientes e idosos sem credencial é relevante, mas considerar como gravíssimo (art.181, XX) em shopping center por exemplo, contém certa dose de exagero. Uma multa razoável e a remoção do veículo, já previstas, parecem suficientes.

Assim, a revisão do Código de Trânsito, no que tange ao valor das multas e ao critério de pontuação para suspensão das habilitações, é medida que se faz urgente como exigência de justiça para todos os motoristas, notadamente nas grandes cidades, e urgentíssima para àqueles que necessitam dos veículos para o exercício de seu trabalho.

Reduzir a pontuação das infrações para 1, 2, 3 e 5, nos casos de infrações leves, médias, graves e gravíssimas, produziria um efeito imediato significativo nessa área; e permitiria mais tempo para uma revisão mais profunda das punições do CTB, pois, essas, ao longo dos anos, vem crescendo de forma sistemática e abrangente.

Em alguns casos, as punições mais severas foram corretas como nas hipóteses dos crimes de homicídio qualificado pelo uso de álcool, na participação em corrida não autorizada (racha) com resultado morte e, também, nas lesões graves nessas circunstâncias. Determinadas condutas são gravíssimas e devem ser punidas de forma exemplar: a legislação atual passou a permitir o encarceramento, pois, as penas mínimas passaram para 5 anos de reclusão nas hipóteses de crimes qualificados pelo resultado morte (arts.302 § 3º e 308 § 2º, na redação das Leis de 2014 e 2017).

Punições, em muitos casos, podem ser necessárias para colocar as pessoas no rumo certo, mas em doses exageradas causam sentimento de injustiça e revolta. Podem produzir efeito contrário. Necessário, ainda, observar que muitos dos motoristas infratores contumazes das leis de trânsito são pessoas que vivem à margem da legislação: para um assaltante dirigindo um carro roubado, passar por radares em excesso de velocidade, não traz qualquer consequência. O veículo não está em seu nome, ele não pagará a multa e nem terá a CNH suspensa, aliás, por vezes, sequer a possui.  A multa e os pontos sobrarão para o proprietário do veículo roubado que terá um enorme trabalho para demonstrar que não foi o responsável.

O rigor das punições do CTB atinge muito mais ao trabalhador, especialmente o caminhoneiro e o taxista, os quais vivem no trânsito e dele retiram o seu sustento e de suas famílias, do que as pessoas que vivem à margem da lei de forma deliberada.

Esperemos que os Poderes constituídos tenham acuidade suficiente para encontrar o caminho correto que, mantendo o foco na redução dos acidentes como objetivo, consiga não penalizar em demasia os motoristas, em especial àqueles que não colocam em risco a vida das pessoas, mas apenas tentam se locomover pela cidade sem ser alvo da ganância desmedida dos responsáveis pelos cofres públicos.

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