Diário de Classe

O caso concreto em si mesmo: nem fácil, nem difícil, nem trágico

Autor

  • Matheus Vidal Gomes Monteiro

    é doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela Unisal e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição Constituição e Processo da UFF membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

1 de fevereiro de 2020, 8h00

Especialmente desde o positivismo jurídico normativista de Hart (com a relação textura aberta — poder discricionário) podemos notar diferenciação no momento de aplicação do Direito em graus: casos concretos de solução mais “fáceis” (easy cases), e outros, mais “difíceis” (hard cases). Postura esta que se ampliou consideravelmente a partir de adeptos das diversas Teorias da Argumentação Jurídica (TAJ) (observações aqui) e do movimento teórico-jurídico intitulado normalmente como neoconstitucionalismo (observações aqui).

Normalmente, a dogmática jurídica acompanhada de parcela da jurisprudência, descreve como “casos fáceis” aqueles nos quais “o ordenamento jurídico fornece uma resposta correta que não é discutida”, e, por outro lado, os “casos difíceis” aqueles em que “pelo menos em princípio, é possível propor mais de uma resposta correta que se situe dentro das margens permitidas pelo Direito positivo”.[i]

Numa perspectiva generalista do paradigma das TAJ os casos fáceis seriam solucionados pela subsunção, e nos difíceis se abriria um “espaço para o papel criativo do juiz em decidir a partir de princípios ou valores imanentes à lei, ou provenientes do ideal de justiça ou da própria sociedade, utilizando-se da ponderação e/ou da argumentação jurídica”.[ii] O foco teórico-prático dessas perspectivas, como sabido, mantém-se nos casos difíceis.

Abordar, então, sobre a argumentação jurídica nos conduz ao retorno a Alexy[iii], que em obra específica sobre o tema desenvolveu a ideia de que existem casos nos quais seria possível uma justificação jurídica a partir apenas de um modelo de “justificação interna”, fincado nas ideias do silogismo jurídico. Por outro lado, devido à existência de casos mais complexos — seja devido ao surgimento de afirmações alternativas de fatos operativos relativos ao dispositivo normativo em questão, “quando a aplicação de uma norma envolve suplementá-la com outras normas jurídicas esclarecedoras”; quando “há algumas possíveis consequências jurídicas”, ou, quando “as expressões usadas na formulação da norma permitem várias interpretações”[iv] —, esse primeiro modelo tornar-se-ia insuficiente, necessitando de outro, mais complexo, motivando a criação do modelo de “justificação externa”. No primeiro caso, a solução dar-se-ia através da subsunção. No segundo, a argumentação jurídica resolveria a necessidade da resposta ao caso concreto frente à complexidade do caso.

Para MacCormick[v] um caso concreto mais ou menos difícil consiste numa questão pragmática.[vi] O que o autor num primeiro momento de sua produção chamou de casos evidentes e casos exemplares[vii], num segundo momento passou a denominar de casos claros e casos problemáticos (ou casos-problema).[viii] Casos problemáticos, acompanhando sua nomenclatura, seriam casos nos quais tivesse surgido um problema de interpretação, classificação, relevância/pertinência ou relacionado à prova, e esse problema não tenha sido resolvido sumariamente pelo juiz ou juízes envolvidos. Por outro lado, casos claros seriam aqueles nos quais não se tenha “problematizado”, seja em bases concretas, seja no contexto mais teórico próprio dos juristas. [ix]

Atienza[x], por outro lado, afirma que além da distinção entre casos fáceis/casos difíceis existem os “casos trágicos” como uma terceira categoria autônoma. Nas palavras do autor: “um caso pode ser considerado trágico quando, com relação a ele, não se pode encontrar uma solução que não sacrifique algum elemento essencial de um valor considerado fundamental do ponto de vista jurídico e/ou moral […]. A adoção de uma decisão em tais hipóteses não significa enfrentar uma simples alternativa, mas sim um dilema”.[xi]

Habermas[xii], apesar de não afirmar expressamente, admite certa diferenciação entre os chamados “casos de rotina” e os casos nos quais se exigem “decisões jurídicas fundamentais”, as quais carregam consigo uma maior carga argumentativa do que os primeiros. Mesmo assim, não chega a prever procedimentos decisórios diferenciados num ou noutro caso.

Expostas algumas perspectivas teóricas sobre o tema relembramos a distinção casos fáceis/casos difíceis a partir de Hart, e Habermas (com as observações acima), Atienza, Alexy e MacCormick. Ou seja, em grande parte dos adeptos das diversas TAJ.

Sobre tema também é necessário relembrarmos Dworkin[xiii], que distingue, mas não cinde, casos fáceis de casos difíceis, diferenciando-se, pois, das TAJ.[xiv] Afirma o autor[xv], ao traçar considerações sobre a obscuridade da lei (palavras ou frases), que a distinção entre casos fáceis e difíceis não impõe a Hércules um método para diferenciá-los.[xvi] O direito como integridade explicaria e justificaria tanto os casos fáceis quanto os difíceis, e também mostraria os que são fáceis[xvii], assim,  “seu método [de Hércules] aplica-se igualmente bem a casos fáceis; uma vez, porém, que as respostas às perguntas que coloca são então evidentes, ou pelo menos parecem sê-lo, não sabemos absolutamente se há alguma teoria em operação”.[xviii]

Admitir, portanto, a distinção entre casos fáceis, difíceis ou até trágicos, vinculará àquele que assim optar, a diversas outras questões teóricas, as quais deverão seguir o mesmo paradigma teórico adotado. E isso se torna ainda mais complexo no caso de posturas ditas pós-positivistas, as quais a partir desta cisão se aproximam das características  de um positivismo jurídico normativista, e, não raro, exegético.[xix]

Sobre este aspecto relembremos que no positivismo jurídico normativista os ditos casos difíceis eram “resolvidos” pela discricionariedade e suas diversas variações.[xx] E em termos de não-ruptura teórica com tal proposta, apenas lhe produzindo adaptações, se analisarmos a perspectiva neoconstitucional a partir da admissão da cisão caso fácil/caso difícil é possível reconhecermos a manutenção dessa discricionariedade principalmente sob dois aspectos: um, a partir dos casos fáceis, nos quais a discricionariedade é “legislativa na manutenção do método subsuntivo”; outro, a partir dos casos difíceis, nos quais a discricionariedade é “judicial diante da falibilidade das posturas racionalizantes da vontade e pelo caráter retórico, em geral, primeiro decide e depois a argumentação ou ponderação servem como meros álibis interpretativos”.[xxi]

É possível, também, percebermos certa “ideologia do caso concreto”, a partir da utilização do caso concreto como álibi para a prática de decisionismos/arbitrariedades, tornando-se sinônimo de pragmatismo e desconstrutivismo, autorizando a construção de soluções  ad hoc, sem um mínimo nível de generalização para uma garantia da integridade e coerência do direito.[xxii] Neste ponto, relembrando novamente Dworkin[xxiii] (e em especial a metáfora do romance em cadeia), para além da “ideologia do caso concreto” cada julgamento traz em si um problema de igualdade: “a ideia diretriz não é — como equivocadamente se professa — que cada caso deve ser julgado como se fosse o único, como se só houvesse coisas particulares, mas, sim, que todos os casos devem ser julgados, até o limite do possível, como se fossem iguais”. [xxiv] É por isso que a decisão diante de um caso concreto gera uma responsabilidade para com o próximo, já que não podemos decidir casuisticamente, a não ser que façamos um esforço (hermenêutico) para justificarmos que o caso presente merece ter tratamento diferenciado em relação aos anteriores já decididos.[xxv]

Numa análise ampliada das TAJ a resolução dos casos difíceis dá-se pela ponderação (e suas diversas mutações), que proporcionará a “escolha do princípio aplicável” e que pode ser reconhecida como certa repristinação da “delegação positivista” tanto em Hart (zona de penumbra), como em Kelsen (perímetro da moldura).[xxvi] E sob outro aspecto podemos entender que as TAJ, ao defenderem a cisão, admitem/entendem que os casos fáceis se contentam com as análises sintático-semânticas, referenciando-se à subsunção/dedução, mas, nos casos difíceis, apelam para a pragmática, devido à insuficiência do primeiro tipo. O intérprete, portanto, é quem decide pela ponderação como “chave” metodológica para solução do caso concreto, após ter decidido que o caso concreto é difícil e necessita de métodos decisórios adicionais.[xxvii] Pela inafastabilidade da discricionariedade (rumo à arbitrariedade) no processo, talvez seja mais adequado substituirmos decide por escolhe.

Isso nos conduz a outro ponto, pois a busca pela superação das TAJ (em especial de Alexy), requer a superação da distinção caso fácil/caso difícil, da dicotomia entre questões de fato/questões de direito, e o reconhecimento do texto como evento e a norma como resultado da compreensão do texto, aplicando-se a diferença ontológica.[xxviii] Isso faz com que abandonemos os diversos cânones interpretativos (de Alexy, em específico, e dos demais defensores desta perspectiva de um modo geral), problema já reconhecido desde Kelsen e sua crítica aos ditos métodos interpretativos[xxix], pois, “se o método matematizante é inevitavelmente uma técnica que artificializa a compreensão humana, cada julgador (intérprete) poderá manipular discursivamente o resultado de um caso concreto para que corresponda àquilo que prefere, subjetivamente”.[xxx]

A superação da(s) diferenciação(ões) acima apontadas, proposta pela hermenêutica aqui trabalhada, faz com que se combata ao máximo possível a discricionariedade no momento decisório. Todo caso concreto requer uma Resposta Hermeneuticamente Adequada à Constituição (RHAC)[xxxi] (observações aqui), a qual engloba tanto sua construção quanto sua explicitação discursivamente adequada, a partir do reconhecimento e imbricação entre as racionalidades hermenêutica e apofântica (observações aqui). Assim, “o caso concreto” refere-se a qualquer caso, sem diferenciações de complexidade a priori. E por “caso concreto” deve-se entender, hermeneuticamente, que compreensão-interpretação-aplicação fazem parte de um mesmo momento, desenvolvido no primeiro nível de racionalidade, inicialmente.[xxxii]

Daí que easy/hard/tragic não dizem respeito ao “caso em si”, mas na “possibilidade — que advém da pré-compreensão do intérprete — de se compreendê-lo”, conduzindo à seguinte indagação: fácil ou difícil para quem? Tudo gira em torno das condições que o intérprete possui de entender os pré-juízos (Gadamer).[xxxiii]

Isso nos conduz ao reconhecimento da necessidade do caso concreto como condição de possibilidade para a interpretação/aplicação do direito e de sua relação com a construção da resposta adequada ao caso, e de que a fundamentação da decisão deve demonstrar o iter realizado pelo intérprete-julgador, não só justificando a decisão para o caso, mas também revelando o percurso estabelecido para a conclusão apresentada.[xxxiv] Fundamentar, pois, trata-se de um “dever constitucional e condição de validade de qualquer decisão, seja ela qual for”[xxxv] (observações aqui).

Mesmo, então, aquele caso tido como “único”, “peculiar”, “específico”, “isolado”, etc., requer uma profunda justificação demonstrando o rompimento (ou não) da cadeia de integridade do Direito, sob pena de ser considerada nula a decisão judicial.[xxxvi] Não há como se admitir, considerando-se todas as linhas anteriores, justificação de decisão judicial centrada quase que única e exclusivamente na clássica afirmação-fuga jurisprudencial: “diante das especificidades do caso concreto…”.

Daí, entendermos que o caso concreto é sempre hard: não há possibilidade de diminuição ou exclusão de deveres constitucionais oriundos da responsabilidade envolvendo a decisão/fundamentação, ou, sob outro ângulo, não podemos admitir afastamentos pontuais e arbitrários do manto constitucional dos direitos fundamentais processuais, proporcionando, numa última análise, certa autodispensa da obrigatoriedade de cumprimento do direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada ao caso concreto. [xxxvii]


[i]ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. 2 ed. Forense Universitária, 2014, op. cit., p. 273.

[ii] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014a, p. 137.

[iii] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Landy, 2001.

[iv] Ibidem, p. 219.

[v] MACCORMICK, Neil. Retórica e o estado de direito. Elsevier, 2008, p. 67-68.

[vi] O autor chega a declarar: “A questão que surge é, sobretudo, saber se há (ou se eu estou trabalhando sobre a suposição implícita de que haja) um tipo de clareza ‘ontológica’ subjacente a ao menos alguns casos de clareza pragmática”. Respondendo: “A falta de utilidade para as partes na problematização do caso apenas demonstra que a clareza do caso continua sendo tratada como um conceito pragmático”. MACCORMICK, 2008, p. 69.

[vii] MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Martins Fontes, 2006, passim.

[viii] MACCORMICK, 2008, p. 67-68.

[ix] Idem.

[x] ATIENZA, op. cit., passim.

[xi] Ibidem, p. 273.

[xii] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Vol. 1. Tempo Brasileiro, 1997, p. 76.

[xiii] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Martins Fontes, 1999, p. 423.

[xiv] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Saraiva, 2014b, p. 309.

[xv] DWORKIN, 1999, p. 422-423.

[xvi] Relembremos: “No paradigma dworkiano, é impensável a solução de uma questão jurídica recorrendo-se tão somente e exclusivamente a uma única fonte jurídica.” ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 463.

[xvii] DWORKIN, 1999, p. 317.

[xviii] Ibidem, p. 423.

[xix] STRECK, 2014a, p. 137.

[xx] STRECK, 2014b, p. 306 e ss.

[xxi] STRECK, 2014a, p. 137.

[xxii] STRECK, 2014b, p. 376 e ss.

[xxiii] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[xxiv] STRECK, 2014b, p. 557.

[xxv] Idem.

[xxvi] STRECK, 2014a, p. 418-419.

[xxvii] Assim também em STRECK, 2014a, p. 418-419 e ss.

[xxviii] STRECK, 2014b, passim.

[xxix] Ibidem, p. 247 e ss.

[xxx]SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. RT, 2015, p. 52.

[xxxi] STRECK, 2014a, 2014b, passim.

[xxxii] STRECK, 2014a, 2014b, passim.

[xxxiii] STRECK, Lenio Luiz. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014c, p. 91-93.

[xxxiv] MOTTA, Cristina Reindeolff da. A motivação das decisões cíveis como condição de possibilidade para resposta correta/adequada. Livraria do Advogado, 2012, p.3.

[xxxv] Ibidem, p. 36-37.

[xxxvi] STRECK, 2014b, p. 558 e ss.

[xxxvii] Assim também em STRECK, 2014a, 2014b, passim; SCHMITZ, op. cit., p. 153.

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    é doutor em Direito (Unesa), mestre em Direito (Unisal) e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição, Constituição e Processo da UFF, membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

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