Opinião

Licenciamento de software ISS vs ICMS – crítica ao parecer da PGR

Autor

  • Alberto Macedo

    é mestre e doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP MBA em Gestão Pública Tributária pela Fundação Dom Cabral (FDC) professor Insper e Fipecafi assessor especial da Secretaria Municipal da Fazenda de SP representante de SP na Câmara Técnica Permanente da Abrasf membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação da ACSP e ex-subsecretário da Receita Municipal de SP.

1 de fevereiro de 2020, 6h47

Poderíamos aqui tecer algumas críticas ao parecer da Procuradoria Geral da República na ADI 5.958/DF, dentre elas, a de que ele não entendeu que o Convênio ICMS 106/17 extrapolou o texto constitucional, quando, desconsiderando o regime constitucional de tributação do ICMS nas operações interestaduais, parte na origem e parte no destino (incisos VII e VIII do §2º do artigo 155), previu, como presunção absoluta, a tributação de “mercadorias digitais” totalmente no destino.[1][2]

Mas, equívocos como o supracitado não suplantam um equívoco maior, que é o de os referidos convênio e parecer ignorarem a premissa dos conceitos constitucionais de mercadoria e de serviço. Uma abordagem equivocada dessa premissa fez a PGR construir três pilares argumentativos em seu parecer na ADI 5.958 (e também nas ADI 5.576/SP e 5.659/MG) que devem ser revistos: (i) a possibilidade de um conceito jurídico de “mercadoria digital”; (ii) o critério prateleira vs encomenda como requisito do conceito constitucional de serviço; e (iii) o superado entendimento (conforme RE-RG 651.703/PR) de serviço como obrigação de fazer. Vamos analisar cada um deles.

A impossibilidade de um conceito constitucional de “mercadoria digital”, à luz do RE-RG 651.703
A ADI-MC 1.945/MT, impetrada em 1998, julgada pelo STF em 2010 em cautelar, tem sido utilizada pelo Convênio e pelo parecer para defender ser possível a existência de um conceito constitucional de mercadoria virtual. Segue trecho da emenda:

“8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados (…). Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis.” (grifo nosso)

Realmente, os dispositivos da Constituição e das leis em geral possuem abertura semântica que sempre permite a sua adaptação aos novos tempos. Um mesmo texto pode, em épocas distintas, ter acepções distintas. Exemplo: o conceito de “livro e o papel destinado à sua impressão”, para fins da imunidade cultural, prevista no artigo 150, VI, ‘d’, da Constituição, sofreu evolução conotativa que hoje abarca a denotação e-book (RE-RG 330.817/RJ, 2017), apesar de o texto constitucional fazer expressa referência ao papel. Isso é possível porque como em 1988 não era imaginável o e-book como mais um meio de difusão da cultura, não seria correto afastá-lo hoje da imunidade, o que obstaculizaria essa difusão, além disso o conceito constitucional de livro não faz fronteira com outro conceito constitucional qualquer.

Mas, tal evolução conceitual não é possível no caso do conceito constitucional de mercadoria, bem material, que demanda tangibilidade e transferência de titularidade; pois essa evolução causaria uma inconstitucional involução do conceito constitucional de serviço de qualquer natureza, que é justamente o de bem imaterial, em contraposição a bem material, decidido no RE-RG 651.703, destruindo a fronteira entre ambos, e licença de uso do software é justamente um bem imaterial.

O entendimento do conceito de serviço como bem imaterial prevaleceu no STF até 2000, e foi acertadamente recuperado em 2016, no RE-RG 651.703, como demonstra o trecho a seguir, onde inclusive tivemos a honra de contribuir para sua fundamentação:

“Porquanto, a Suprema Corte, no julgamento dos RREE 547.245 e 592.905, ao permitir a incidência do ISSQN nas operações de leasing financeiro e leaseback sinalizou que a interpretação do conceito de “serviços” no texto constitucional tem um sentido mais amplo do que tão somente vinculado ao conceito de “obrigação de fazer”, vindo a superar seu precedente no RE 116.121 [locação de guindastes], em que decidira pela adoção do conceito de serviço sinteticamente eclipsada numa obrigação de fazer.” (…)

“A finalidade dessa classificação (obrigação de dar e obrigação de fazer) escapa totalmente àquela que o legislador constitucional pretendeu alcançar, ao elencar os serviços no texto constitucional tributáveis pelos impostos (por exemplo, serviços de comunicação – tributáveis pelo ICMS; serviços financeiros e securitários – tributáveis pelo IOF; e, residualmente, os demais serviços de qualquer natureza – tributáveis pelo ISS), qual seja, a de captar todas as atividades empresariais cujos produtos fossem serviços, bens imateriais em contraposição aos bens materiais, sujeitos a remuneração no mercado.” (grifos nossos)

O equívoco do julgamento do RE 176.626 SP, 1998, de entender o licenciamento de software padronizado como uma mercadoria, ficou escondido por detrás dos suportes físicos disquete e CD-ROM (e pelo fato de só se pagar pela licença uma única vez – licença perpétua). Afinal, a caixinha do Windows 3.1©, realmente, tinha toda a cara de uma mercadoria, tangível, mas juridicamente não o era, como nos alerta Fábio Ulhoa Coelho:

“Quando o consumidor ‘adquire’, no mercado, o software de um jogo para instalar em seu computador pessoal, o que se verifica, juridicamente falando, não é compra e venda, mas o licenciamento de uso do bem intelectual pela empresa de informática detentora dos direitos a ele relativos”.[3]

Esses suportes físicos foram se tornando desnecessários com a evolução da internet, passando esta a ser o meio pelo qual se adquiria a licença de uso do software, seja via download, seja depois, no Software as a Service – SaaS[4]. Ficou claro então que aqueles antigos suportes físicos eram meros meios de transporte (assim como o é a internet, com o download) do software entre a loja, que possuía o direito de distribuição ou de licenciamento, e o computador do usuário, onde o software seria instalado. A diferença hoje é que, no SaaS, em vez de o software ser instalado no computador do cliente, esse software é quase sempre usado na nuvem (em servidores de Data Centers), para onde os dados do cliente são levados, ou mesmo lá produzidos.

De fato, pagava-se pelo uso, e não pelo disquete ou CD-ROM. No SaaS, que, em essência, também é um licenciamento de software, o pagamento passa a ser periódico, baseado no modelo por assinatura. Esse modelo de negócio escancara a impossibilidade de o SaaS ser considerado uma mercadoria digital, pois se esse pagamento cessar, o cliente não mais terá direito ao uso do programa. Como assim uma mercadoria, ainda que virtual, em que, se eu deixar de pagar a assinatura, essa mercadoria vai deixar de ser minha? Subverter-se-ia completamente o conceito constitucional de mercadoria, igualando-o ao de cessão de uso e de licenciamento.

O RE-RG 651.703 PR superando a classificação prateleira vs encomenda
O parecer da PGR afirma ainda que “se o bem ou mercadoria digital (softwares, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres) é posto para venda no comércio (seja por meio físico ou digital), incidirá o ICMS. Todavia, se esses produtos digitais forem desenvolvidos por encomenda do adquirente, incidirá o ISS.”

Ora, o STF, no RE-RG 651.703, deixou claro que também abandonou, de forma indireta, o conceito dicotômico prateleira vs encomenda, ao restabelecer o conceito de serviço como bem imaterial. De fato, a personalização e encomenda não são requisitos do conceito constitucional de serviço, mas sim critérios aplicáveis a qualquer bem de mercado, seja ele material ou imaterial. Tanto isso é verdade, que hoje podemos comprar um carro pela internet de forma totalmente personalizada e por encomenda[5], e não é por isso que este carro passará a ser um serviço.

Já a tangibilidade e a transferência de titularidade são sim requisitos do conceito constitucional de mercadoria, traçando assim a fronteira entre os conceitos de mercadoria (bem material) e de serviços de qualquer natureza (bem imaterial).

Quando muito, personalização e encomenda poderão ser critérios trazidos pela lei complementar, no seu papel de prevenir o conflito de competência material entre ICMS e ISS. Mas, para tal, deve estar expressamente prevista, o que atualmente, na lista de serviços, só acontece para os serviços de prótese sob encomenda (4.14) e obras de arte sob encomenda (40.01), não havendo qualquer restrição à incidência do ISS a um serviço de licenciamento de software por encomenda no subitem 1.05.

O influxo conceitual de serviço como bem imaterial, da Ciência Econômica para o Direito Empresarial e para a Constituição
Nossa obra citada no RE-RG 651.703 comprova que o conceito de serviço como bem imaterial, em contraposição a mercadoria, foi construído na Ciência Econômica, no século XVIII, e posteriormente incorporado ao Direito Empresarial, cujo marco foi o Código Civil italiano de 1942, juridicizando os conceitos econômicos[6] “empresário”, “atividade econômica” e “bens e serviços”.

Essa incorporação pelo Direito Privado brasileiro é percebida de forma mais explícita no artigo 966 do Código Civil[7] (cópia do artigo 2.082 do Código Civil italiano), mas foi-se dando por décadas, com esses conceitos sendo incorporados na jurisprudência, doutrina, leis esparsas e Constituições brasileiras anteriores. Na jurisprudência, decisões desconsideravam a teoria de atos de comércio, por exemplo, julgando renovação compulsória de contrato locatício em favor de prestadores de serviço à luz do critério empresarialidade.[8] Na doutrina, Requião ensina que “(…), persistem os juristas no afã de edificar em vão um original conceito jurídico de empresa, como se fosse desdouro para a ciência jurídica transpor para o campo jurídico um bem elaborado conceito econômico”[9] (grifo nosso). Na legislação esparsa, a lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico (4.137/62) juridicizou o conceito de bens e serviços, por exemplo, com o artigo 74, inciso ‘a’ (“a distribuição de bens ou o fornecimento de serviços”); e §2º: “mercado relevante de bens ou serviços”.[10]

As Constituições brasileiras, por sua vez, já vinham incorporando conceitos econômicos desde a de 1891, com seu artigo 24[11]. Na de 1934, inaugurou-se o conceito de “Ordem Econômica e Social”. Na de 1946 aparece a expressão “bens e serviços”[12]. Na de 1967 explicitamente previram-se os conceitos de empresa e de atividade econômica, no artigo 163, caput [13], redação esta repetida no artigo 170 da de 1969. Na de 1988, além do capítulo “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, destaca-se a dicotomia bens (produtos) vs serviços nos artigos 152; 170, VI; e 173, §1º.

Portanto, o influxo conceitual de bens e serviços — assim como o de empresa e o de atividade econômica — foi sendo incorporado pelas Constituições brasileiras desde a de 1891 até a atual, não só indiretamente, por intermédio do Direito Privado, mas também diretamente a partir da Ciência Econômica. E, com certeza, nessa juridicização não se entendia e não se entende, como objeto dessa atividade econômica, algo mais restrito do que todo o universo de produção e circulação de bens e serviços, nestes incluídas atividades como cessões de direitos em geral, usos de bens (tangíveis ou intangíveis) em geral e licenciamentos.[14]

Por fim, registre-se que Washington de Barros Monteiro, em “Das modalidades de obrigações”, ensina que a única importância prática que a classificação dar, fazer ou não fazer apresenta é que ela diversifica o processo de execução da sentença.[15]


1 Os entendimentos aqui defendidos pelo autor são feitos na qualidade de pesquisador e docente, e não necessariamente coincidem com entendimentos da Administração Tributária paulistana ou de qualquer entidade municipalista a respeito.

2 Os argumentos aqui apresentados estão expostos de forma mais detalhada nos nossos: MACEDO, Alberto. Licenciamento de Software e Software as a Service (SaaS). A Impossibilidade do Avanço do Conceito Constitucional de Mercadoria Como Bem Imaterial e Suas Implicações na Incidência do ISS, do ICMS e dos Tributos Federais. In: PISCITELLI, Tathiane (Coord.). Tributação de Bens Digitais: a disputa tributária entre estados e municípios. Notas sobre o Convênio ICMS 106/2017 e outras normas relevantes. FGV-SP. São Paulo: Ed. InHouse, 2018, p.67-137; e MACEDO, Alberto. ISS – O Conceito Econômico de Serviços Já Foi Juridicizado Há Tempos Também pelo Direito Privado. In: XII Congresso Nacional de Estudos Tributários – Direito Tributário e os Novos Horizontes do Processo. MACEDO, Alberto [et all]. – São Paulo: Editora Noeses, 2015, p. 1-79. Este último citado e utilizado como fundamentação no RE-RG 651.703 PR, 2016.

3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. vol.4. Direito das Coisas. Direito Autoral. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.412.

4 O SaaS, um dos modos de computação em nuvem, é composto por uma gama de serviços que podem ser resumidos em licenciamento de uso de software (serviço principal), processamento ou armazenamento de dados (serviço acessório), e suporte técnico em informática (serviço acessório).

5 8 “(…), o Range Rover Velar (…) conta com um configurador que permite montar um veículo totalmente exclusivo, sendo possível combinar equipamentos, motores (são três disponíveis) e padrões de acabamento de forma livre, ao gosto do cliente.” Disponível em <https://carros.uol.com.br/noticias/redacao/2017/08/06/da-para-comprar-carro-pela-internet-marcas-comecam-a-entrar-na-onda.htm>. Acesso em 10.01.2020.

6 Ressalte-se que incorporação de conceitos advindos da Ciência Econômica para o Direito não se confunde com interpretação econômica, esta sim vedada no nosso ordenamento.

7 artigo 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. (grifos nossos)

8 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 14ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p.10.

9 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. v.1. 24ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, p.50, 2000.

10 Exemplos também são as leis 8.078/90; 8.245/91; 8.955/94; 8.934/94; 9.279/96.

11 que previa que “o Deputado ou Senador não pode também ser Presidente ou fazer parte de Diretorias de bancos, companhias ou empresas que gozem favores do Governo federal definidos em lei. (grifo nosso).”

12 Art 30 – Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar: (…) III – quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços.

13 Art 163 – Às empresas privadas compete preferencialmente, com o estímulo e apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas. (grifos nossos)

14 Atente-se que, para conferir segurança jurídica ao Ordenamento, essa abertura semântica do conceito constitucional de serviço de qualquer natureza, por ser bastante ampla, encontra, como contraponto, um fechamento seguro em lista taxativa. Esse mecanismo (de lista) já foi superado há tempos na legislação do IVA (imposto sobre o valor adicionado) mundo afora, mas ainda persiste no Brasil.

15 MONTEIRO, Washington de Barros. Das modalidades de obrigações. Dissertação para concurso à cátedra de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: s.e., 1959, p.60.

Autores

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    é mestre e doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP; MBA em Gestão Pública Tributária pela Fundação Dom Cabral – FDC. Professor de Direito Tributário no Insper, FGV, IBDT e IBET. Assessor Especial da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo. Ex-subsecretário da Receita Municipal. Ex-presidente do Conselho Municipal de Tributos.

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