Senso incomum

Júri: soberania e reforma: por que a honra não está "entre as pernas"

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31 de dezembro de 2020, 8h00

Spacca
1. Júri pode absolver por legitima defesa da honra?
Venho escrevendo de há muito sobre o tema “júri”. Um dos temas: Pode haver recurso contra decisão do júri, se o júri decide por íntima convicção?

O assunto voltou à pauta (Folha de S. Paulo — que até fez editorial) depois da morte da juíza do Rio de Janeiro (feminicídio) ocorrido na véspera de Natal. Tentarei enfrentar os temas.

Depois da reforma do júri, feita em 2008, o júri passou a ser indagado em um dos quesitos "se o réu deve ser absolvido". Como não se pergunta as razões do sim (e nem do não), nunca se saberá qual foi o motivo da absolvição. Por quê? Porque o júri decide por íntima convicção, um resquício solipsista que afronta o dever de fundamentação previsto na CF no artigo 93, IX. Problema: Como podemos reivindicar limites àquilo que nasce já como a própria falta de limitação?

A tese da soberania plena é uma aporia. Afinal, de que modo se pode aferir se o jurado absolveu alguém por clemência, pena, raiva da vítima ou quejandos? Uma pergunta sem resposta. Claro: de pronto se poderia objetar: pode absolver, porém não pode "conceder algo como perdão", isto é, não pode absolver baseado em tese antijurídica (algo como legitima defesa da honra, para ficar no ponto). OK. Todavia, como saber o motivo pelo qual os jurados absolveram, se isso é um segredo? Para anular um julgamento, o Tribunal se basearia na discussão em plenário? E se o advogado invocar uma tese jurídica e pedir também simplesmente "absolvam por espírito cristão"? Por qual das "teses" o jurado disse "sim"? Ora, a intima convicção já é antijurídica. Daí minha pergunta:

Se se decide por íntima convicção, já não é mais direito. Afinal, o que é o direito senão o filtro institucional das íntimas convicções…?

2. Entre a cruz e a espada: o que fazer?
Ao mesmo tempo que é defensável a soberania dos vereditos, será defensável a legitima defesa da honra? Então, como resolver esse impasse? Se o júri é soberano, há que levar a tese às últimas consequências. Não dá para dizer: sou favorável à plena soberania, mas… Uma oração adversativa…

Avancemos. Em 2019, a 1ª Turma do Supremo rejeitou a realização de um segundo Júri contra um homem que, no primeiro, foi absolvido pela tese da legitima defesa da honra. Registre-se que o ministro Alexandre de Moraes se deu conta do problema, quando advertiu para o impacto que o entendimento poderia ter em relação ao feminicídio.

Como Promotor de Justiça, quando me deparava, no júri, com a alegação de legitima defesa da honra, fazia "das tripas o coração" para convencer os jurados de que a honra não está entre as pernas. Mas a tese não morre, pelo jeito. Mas, de novo: tese desse tipo só existe e se forma por causa da íntima convicção. E da falta de accountabillity.

O assunto está em repercussão geral. O Supremo Tribunal Federal deverá decidir acerca da soberania do júri e seus limites. Veja-se: não está em jogo a tese da legítima defesa da honra. Está em jogo a tese da soberania. O STF deverá responder à pergunta: Há limites em um veredito absolutório?

Sigo. Celso de Mello tinha posição favorável: a lei consagrou ao jurado o poder de julgar inclusive contra as provas e com base no sentimento de clemência e compaixão. Essa também é a posição (e o cito por todos os defensores) de Fabio Tofic, para quem "mandar fazer outro julgamento esvazia o próprio modelo de julgamento".

O Ministro Gilmar, então, pergunta — daí a RG:

"Na prática, se o júri, soberano em suas decisões nos termos determinados pela Constituição, pode absolver o réu ao responder positivamente ao quesito genérico sem necessidade de apresentar motivação, isso autorizaria a absolvição até por clemência e, assim, contrária à prova dos autos?"

Veja-se o imbróglio. Se o jurado pode responder "sim" ou "não" sem fundamentar, de que modo podemos contestar as razões-que-não-conhecemos e às quais a-lei-não-colocou-imites?

Isto é: se antes havia limites à soberania, em 2008 o legislador, aparentemente, acabou com eles, quando estabeleceu o quesito genérico, peremptório: o réu deve ser absolvido? Ou seja: pode absolver por qualquer razão, inclusive imitando Mersault, do Estrangeiro (Camus): por causa do sol. Absolveu porque, quando da resposta ao quesito, o sol bateu nos olhos.

Portanto, eis o ponto: esse "sim" pode ser, por exemplo, na hipótese de o advogado defender a tese da legitima da defesa da honra ou simplesmente pedir que "os jurados absolvam por porque Jesus também perdoou". Como dizer que a decisão contrariou a prova dos autos, se os jurados estão dispensados de fundamentar? Se não podemos saber as razões pelas quais os jurados disseram sim, vamos sindicar a tese defensiva? Ou revisar os autos? Mas o recurso é sobre o quê? O recurso é da decisão. E a decisão, nos moldes atuais, não há como saber de suas razões. Decisão sem ratio. Como objetar aquilo que dispensado está de apresentar as razões que servem de fundamento?

Esse é o busílis.

Problema: se o STF negar a soberania, de que modo será feita a sindicância da decisão, se ela é por íntima convicção? Já de antemão os jurados deverão ser avisados do que não podem fazer? Porém, se é intima convicção… E o raciocínio se torna tautológico. O Brasil é um país de aporias institucionais e casos fáceis viram difíceis e se tornam trágicos.

3. A alternativa: reformar!
A terceira via já propus aqui por mais de uma vez. Reformar o júri. Não há proibição constitucional de exigir fundamentação dos jurados. O que é clausula pétrea é o sigilo das votações. Íntima convicção não tem previsão constitucional. Mais: cláusula pétrea proíbe extinguir o júri, mas não impede o seu aperfeiçoamento. Aliás, a intima convicção sequer foi recepcionada pela CF-88.

Logo, é possível transformar o júri por simples lei ordinária. Penso como Aury Lopes Jr. O modelo espanhol pode ser — ao menos em uma pequena parte — nossa inspiração.1 O júri espanhol garante e exige motivação por parte dos jurados, que respondem quesitos em um formulário próprio, relacionadas ao processo, culpabilidade do acusado e comprovação dos fatos. Claro que lá não existe esse "quesito genérico" (o réu deve ser absolvido?). A deliberação será secreta e as portas cerradas e nenhum jurado poderá revelar o que nela ocorreu. Já a votação é nominal, em grupo e em voz alta, por ordem alfabética, votando por último o jurado escolhido como porta-voz (o primeiro a ser sorteado). O quórum de condenação não é maioria simples.

Veja-se: Parcela dos países europeus que possuem júri exigem fundamentação, o que pode ser visto, para além de Espanha, nos escabinatos da Alemanha, Portugal, França.

Insistindo: Assim como eu, Aury tem como foco de preocupação o gravíssimo problema da falta de fundamentação. Há como resolver. Pensamos que que o júri é uma opção constitucional e que precisa, por isso, ser respeitado, sem que se abra mão do debate constante, do repensar contínuo de suas rotinas de acertos e erros, da necessidade de sua reengenharia permanente. O júri precisa ser presentificado e reestruturado, para dar conta do nível de exigência do processo penal e da sociedade do século XXI.

Reformulemos o Júri. Para que não fiquemos em uma aporia como essa: "soberania versus consequências indesejáveis". Arrumemos a terceira via possível quando ela é possível.

Ou não? Há quem diga que vale a pena pagar o preço, isto é, vale a pena o plenário do júri ser soberano e absolver por qualquer motivo. Inclusive por legitima defesa da honra. Isso seria um efeito secundário. Será?

De minha parte, não consigo admitir o tribunal sem accountabillity. Sem fundamentação. Claro que júri não pode tudo. Nem o STF pode tudo. Vamos aceitar uma versão "jurificada" do realismo jurídico — algo tipo 'direito é aquilo que o júri diz que é'? Não me parece adequado. Porque não me parece constitucional.

4. Assim, em resumo, dez teses:

  1. Desde 2008 vige o quesito genérico; um quesito desse jaez não pode conviver com a decisão de íntima convicção;

  2. íntima convicção é incompatível com o dever de fundamentação (art. 93, IX, CF);2

  3. não desconheço que a Corte Interamericana admite a íntima convicção, assim como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos diz que a falta de exteriorização da fundamentação do veredito não vulnera em si mesma a garantia da motivação. Porém, o veredito deve permitir que, à luz das provas e o debate na audiência, quem o valorizar possa reconstruir o curso lógico da decisão dos jurados, que terão agido de forma arbitrária no suposto de que esta reconstrução não fosse viável conforme pautas racionais;

  4. porém, parcela dos países Europeus exigem fundamentação, como expliquei acima; e aqueles que mantém o sistema sem fundamentação não possuem um quesito genérico sem desdobramentos, como é o nosso caso;

  5. um quesito como “o réu deve ser absolvido” remete ao guilty or not guilty, com a diferença de que nos EUA os jurados discutem entre si (como na Espanha); nos EUA se exige unanimidade;

  6. ou seja, o que a Corte Interamericana e a Corte Europeia dizem não “resolve” o problema brasileiro;

  7. registro que muitos Estados das Américas que mantém júri estabelecem expressamente diferentes garantias de interdição da arbitrariedade na decisão.3 Gizo: interdição da arbitrariedade na decisão, como Canadá, Estados Unidos, Nicarágua, Panamá, El Salvador, e as províncias argentinas de Buenos Aires, Chaco, Neuquén e Rio Negro;

  8. em termos de teoria do direito e filosofia do direito, a íntima convicção é insindicável (como saber o “íntimo”?);

  9. daí o problema central, sejamos a favor ou contra a soberania plena: se se considerar que uma decisão por íntima convicção é passível de reforma, é porque a instância revisora rejulga a causa; e, assim, substitui-se ao júri, mesmo que devolva ao primeiro grau; logo, não há, aí, qualquer soberania do júri;

  10. o STF aprecia matéria constitucional; no julgamento da soberania do júri, não pode reescrever o CPP; logo, terá de ficar nos limites da jurisdição constitucional, com as seguintes opções:

(a) confirma a soberania plena (tese Celso de Mello), impedindo a sindicância dos motivos (quaisquer que sejam) que levaram à absolvição do réu;

(b) faz uma interpretação conforme, dizendo que o júri tem soberania, desde que suas decisões não violem direitos fundamentais4;

(c) faz uma nulidade parcial sem redução de texto, dizendo que o dispositivo que estabelece o quesito genérico será inconstitucional se entendido no sentido de que o jurado possa até mesmo contrariar a prova dos autos (seja lá o que signifique contrariedade a uma prova que reside na íntima convicção do jurado)5,

(d) por fim, ainda poderá propor uma inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, fazendo um apelo ao legislador para que promova a adequação da legislação à Constituição, enfim, ao dever de fundamentação e ao próprio duplo grau de jurisdição. Aqui pode estar o ponto de estofo: reformar o júri – e quem tem de fazer isso é o parlamento! Urgentemente!

5. Mais do que dogmática, é uma questão paradigmático-filosófica
Como assinalei, sem reforma do júri teremos apenas paliativos ou até o agravamento do problema. Democracia é incompatível com julgamentos sem fundamentação.

Do que disse acima, tenho que, muito mais que uma questão técnica ou dogmática, estamos diante de uma questão teorética também, porque diz respeito àquilo que entendemos como direito. É um assunto que transcende jurisdições ou sistemas jurídicos específicos: a própria ideia de direito é antitética à íntima convicção. Direito é accountability, é responsabilidade institucional. Não é mera questão de poder, não é mero instrumento.

Direito é (nem) mais do que uma prática social, (bem mais do que) uma regra de reconhecimento etc. Direito é uma prática intersubjetiva, interpretativa, argumentativa, que, com esse caráter, é justamente condição de possibilidade para uma democracia de verdade. E não há democracia de verdade sem direito, e não há direito sem procedimento, sem respeito aos princípios que orientam a prática e permitem que ela seja o melhor que pode ser. E não há nada disso sem… accountability.

A íntima convicção é antidemocrática porque anticonstitucional, porque antijurídica, porque dela nada se pode dizer e porque dela nada se pode exigir. Esse é o ponto. E permito-me insistir no repto:

Se se decide por íntima convicção, já não é mais direito. Afinal, o que é o direito senão o filtro institucional das íntimas convicções…?

Ou, para arrematar: se a íntima convicção pode "corrigir" o direito (ou pode valer mais do que o direito), quem corrige a "íntima convicção"? Sem precisar voltar ao tema, pode-se dizer que "íntima convicção" é uma carta branca para que a moral substitua o direito.

Post scriptum: Feliz 2021!

Hoje, 31 de dezembro, último dia do ano da pandemia. Desejo a todos os leitores um ano de vacinas! Um ano sem negacionismo, essa praga contemporânea. E aproveito para anunciar o livro novo Ensino, Dogmática e Negacionismo Epistêmico, da Editora Tirant le Branch!


1 Cf. https://www.conjur.com.br/2014-ago-08/limite-penal-tribunal-juri-passar-reengenharia-processual

2 Incrível: li em um artigo assinado por dois advogados-professores que a íntima convicção está no artigo 5º./CF.

3 CIDH – Caso V.R.P, VPC v. Nicarágua.

4 Ver nesse sentido os pedidos na ADPF, protocolada dia 30 de dezembro, liderada pelo competente e aguerrido advogado e professor Paulo Iotti, em nome do PDT. A ação defende que a “soberania dos veredictos do Júri não lhe permite proferir decisões arbitrárias e violadoras de direitos fundamentais, mas apenas decisões coerentes com as provas dos autos e com o Direito em vigor”. Outra hipótese – ao meu ver não distante da tese de Iotti – é a tese esboçada pela ministra Carmen, em outro julgamento: "Inexistindo provas que corroborem a tese da defesa ou sendo concedida clemência a casos que, por ordem constitucional, são insuscetíveis de graça ou anistia, a decisão do TJ que anula a absolvição fundada em quesito genérico é compatível com a garantia da soberania dos vereditos do Tribunal do Júri."

5 É preciso entender que intima convicção está atrelada a um paradigma filosófico, o da filosofia da consciência; se aceitarmos essa versão solipsista plena do paradigma moderno, jogaremos por terra não somente as conquistas do paradigma da intersubjetividade, como, até mesmo, todos os esforços empiristas para combater o autoritarismo e as barbáries do sujeito moderno.

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