Opinião

O reflexo nas empresas dos acordos de não persecução penal

Autores

  • Warley Freitas de Lima

    é advogado professor da Universidade do Vale do Paraíba membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa doutorando em Direito na Instituição Toledo de Ensino (ITE- Bauru) mestre em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal - Lorena) e especialista em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho (UGF-RJ).

  • Robson Martins

    é pós-doutorando doutor e mestre em Direito e procurador da República.

31 de dezembro de 2020, 6h34

Com a edição da Lei nº 13.964/19, que comemorou um ano no último dia 24, houve a possibilidade de acordos de não persecução penal, com a finalidade de conferir maior celeridade às investigações e às atividades jurisdicionais e do Ministério Público brasileiro (Brasil, 2019).

Trata-se de uma inovação no sistema processual penal brasileiro, pois é "(…) mais um instrumento de ampliação do espaço negocial, pela via do acordo entre MP e defesa" (Lopes Junior, 2020, p. 220). A Constituição Federal, em seu artigo 98, inciso I, já previa a criação, pela União e pelos Estados, dos "(…) juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo , permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau" (Brasil, 1988. s.p.).

Atendendo ao apelo do constituinte, a Justiça Consensual Penal foi introduzida no país na Lei 9.099/95. Assim, há mais de 25 anos há a previsão de suspensão condicional do processo, bem como de transações penais (Brasil, 1995).

Também foi editada a colaboração premiada, especialmente introduzida através do artigo 3-A da Lei 12.850/2013, que determina: "O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos" (Brasil, 2013, s.p.).

Quanto à colaboração premiada, verifica-se que esta se diferencia do acordo de não persecução penal porque, essencialmente, possui um fator ativo do autor do delito, já que este produz provas contra os demais integrantes da organização criminosa, ou seja "consiste no meio especial de obtenção de prova — técnica especial de investigação" (Masson, 2020, p. 166)

O prêmio ao colaborar é diverso do acordo de não persecução penal, pois poderá inclusive obter perdão judicial, diferentemente do ANPP, em que sempre haverá imposição de algumas sanções. Mas há pontos de contato entre os dois institutos, pois o autor do delito "(…) coopera com os órgãos de persecução penal confessando seus atos e fornecendo informações objetivamente eficazes quanto à identidade dos demais sujeitos do crime, à materialidade das infrações penais por eles cometidas, a estrutura da organização criminosa, a recuperação de ativos, a prevenção de delitos ou a localização de pessoas" (Masson, 2020, p. 167).

No que tange ao acordo de não persecução penal, posteriormente à celebração do acordo entre o MP e a defesa, há a homologação por parte do juízo da vara criminal competente, possibilitando a resolução de conflitos criminais de forma mais célere e menos morosa, uma vez que se utiliza de meios de reparação distintos do encarceramento e evita o transcorrer da ação penal.

Torna-se claro, portanto, que "se fizermos um estudo dos tipos penais previstos no sistema brasileiro e o impacto desses instrumentos negociais, não seria surpresa alguma se o índice superasse a casa dos 70% dos tipos penais passíveis de negociação, de acordo" (Lopes Junior, 2020, p. 220).

Desde que preenchidos os requisitos legais, a possibilidade de negociação atinge também os chamados "crimes do colarinho branco", que são graves crimes corporativos, cometidos com grande frequência em ambientes empresariais por motivação financeira/econômica, porém, sem violência.

Os "crimes de colarinho branco" mais cometidos no contexto empresarial, podem-se mencionar, de forma exemplificativa: corrupção ativa, fraude, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, crimes contra o sistema financeiro, crimes contra a ordem econômica, falsificação, extorsão, suborno e apropriação indébita, entre outros.

Considerando essa nova estratégia de persecução penal, adentrando as peculiaridades do caso concreto, as empresas precisarão de novo viés de desafio para trilhar o espaço empresarial. É que quando um de seus colaboradores estiver na condição de investigado pelo cometimento de um crime empresarial, o acordo de não persecução penal exigirá, pelo Parquet, como condição para sua efetivação, a confissão formal e circunstanciada por parte do colaborador investigado.

Tal conduta trará ao infrator, pessoa física, punição mais branda, contudo, não isentará de forma alguma a responsabilização objetiva da empresa e as consectárias punições civis e administrativas.

Na maioria dos processos criminais nos quais ocorre investigação pelo cometimento de algum dos crimes classificados como "crime de colarinho branco" serão resolvidos por meio de negociação junto à defesa e ao MP, nos termos da lei. Nesse viés, com esses esclarecimentos, pode-se aprofundar o estudo a respeito do grande impacto que tal medida negocial causará nas investigações criminais no âmbito empresarial.

O combate aos referidos delitos na seara empresarial ganha uma complexidade superior, considerando a grande possibilidade dos envolvidos possuírem alto poder econômico, influência e autoridade decorrente de cargos elevados dentro de certa empresa. Ademais, importante salientar que acompanhados dos delitos de "colarinho branco" há geralmente os delitos vinculados à corrupção na administração pública:

"(…) Essa confluência de fatores implicaria que nesses ambientes sociais teria sido gerado uma espécie de círculo vicioso que alimenta a desconfiança social, incentiva o funcionamento parcial das instituições governamentais e, em última instância, produz uma corrupção enraizada e onipresente que é muito difícil de combater. Dessa forma, naqueles sistemas políticos em que as políticas governamentais são ineficientes, parciais (buscam o benefício de determinados grupos sociais) e corruptas, o desenvolvimento de um senso de solidariedade social é impossível e a confiança particularizada em diferentes grupos sociais é estimulada acima da confiança generalizada em toda a sociedade" (Sanches, 2016, p. 2).

É que a falta de confiança na administração pública, acaba se traduzindo em outras ilegalidades, em um círculo vicioso de crimes e desmandos:

"(…) Quando isso acontece, quando a confiança predominante é aquela colocada na própria família, clã, etnia ou partido político, a política nessa sociedade se torna 'um jogo de soma zero entre grupos conflitantes' (Rothstein e Uslaner, 2005: 45-46). Não aparecem nessas sociedades regras informais que promovam a produção de bens públicos, como o respeito aos espaços públicos ou as regras básicas de convivência social. Em vez disso, criaram uma prática social predatória do 'salve-se quem puder' que impossibilita o poder público de ter os recursos e incentivos necessários para a realização de políticas que promovam a solidariedade social necessária para se sentirem envolvidas na mesma comunidade. Pelo contrário, as políticas governamentais serão incentivadas por uma lógica particularista e parcial que abundará na espiral do círculo vicioso" (Sanches, 2016, p. 2).

Grande parte dos delitos cometidos no contexto laboral por dirigentes ou funcionários de grandes, médias ou pequenas corporações empresariais, faz parte do mencionado rol de "crimes de colarinho branco" e comportam a aplicação do acordo de não persecução penal, conforme aludido anteriormente.

Importante, então, que as empresas adotem posturas de compliance, ou seja, possuindo órgãos internos de aferição de integridade, de legalidade, com controles eficazes internos e externos, políticas e diretrizes claras estabelecidas para os dirigentes e colaboradores. Tal novel postura deve assegurar, a todo custo, o cumprimento das regras estatais e empresariais pré-estabelecidas, com definição de órgão de regulamentação e padrão direcionado à estruturação de seu viés empresarial.

Embora tenhamos um longo caminho pela frente, para enfrentarmos a macrocriminalidade e principalmente os crimes de "colarinho branco", verifica-se que a nova legislação tornará a justiça penal inovadora, mais justa e eficiente:

"Os dados apresentados neste livro sobre a persistente realidade carcerária brasileira, somados à surpreendente quantidade de crimes do colarinho branco noticiadas diariamente na imprensa, podem passar a enganosa impressão que nada mudou no Brasil. Mas essa é apenas uma fotografia do momento, que não reflete a evolução que vivenciamos. As duas frentes da seletividade do nosso sistema têm sido atacadas: os crimes econômicos, a passos lentos, estão sendo removidos da sombra tranquila da impunidade: e os Poderes Legislativo e Judiciário, assim como a própria sociedade, vêm despertando para os males da cultura do aprisionamento, com a criação de medidas despenalizadoras, a realização de mutirões carcerários, a implantação de audiências de custódia e o afastamento de leis desproporcionalmente rigorosas ou violadoras de direitos fundamentais" (Cruz, 2020, p. 365-366).

Torna-se inevitável, portanto, que a organização empresarial terá de lidar com um aumento nos casos em que será apontada sua responsabilidade objetiva, diante de confissão de colaboradores investigados.

Assim, as empresas, diante dos maiores riscos de serem responsabilizadas por possíveis condenações de seus colaboradores, no geral serão induzidas a não compactuarem com posturas antiéticas, corruptas e criminosas.

Verifica-se que para a empresa obviamente será mais vantajoso prezar pela adoção de melhores posturas de integridade e ética coorporativa — o que inibirá a quantidade de cometimento de "crimes de colarinho branco" no ambiente empresarial, bem como o cometimento de outras práticas ilegais.

As corporações empresarial deverão se reorganizar administrativamente, voltando sua gestão e cuidados de forma mais intensa à sua cultura corporativa e postura moral, legal e ética de seus dirigentes e funcionários, devendo sustentar sempre um desestímulo a condutas fraudulentas e criminosas, seja por parte das lideranças ou dos colaboradores.

A consequência clara de tais práticas será uma sociedade mais justa, com práticas comerciais e empresariais eficientes e transparentes, voltando-se para a paz social e diminuindo a incidência enorme de crimes no Brasil, inclusive a própria corrupção endêmica na Administração Pública.


Referências bibliográficas
— BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Diário Oficial da União. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 22 dez. 2020.

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Autores

  • é advogado, professor da Universidade do Vale do Paraíba, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, doutorando em Direito na Instituição Toledo de Ensino (ITE- Bauru), mestre em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal - Lorena) e especialista em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho (UGF-RJ).

  • é procurador da República, professor dos cursos de pós-graduação latu sensu do Centro Universitário Internacional e da Instituição Toledo de Ensino, doutorando em Direito na Instituição Toledo de Ensino, mestre em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense e especialista em Direito Notarial e Registral, bem como Direito Civil pela Universidade Anhanguera.

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