Retrospectiva 2020

O Direito dos Seguros em movimento

Autor

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

31 de dezembro de 2020, 10h04

1) Introdução
O ano de 2020 foi atípico. Marcado por uma das maiores pandemias da história, não apenas o setor de seguros, mas toda a sociedade vivenciou um período de intensa reflexão e transformação.

O presente texto possui o afã de revisitar os principais acontecimentos no Direito dos Seguros. Para tanto, dividir-se-á a abordagem em três planos: 1) normativo; 2) jurisprudencial; e 3) acadêmico.

2.1) Cenário normativo
Os contratos de seguro privado seguem tendo como principal fonte de tratamento legal o Código Civil, que deve ser interpretado com diversos outros diplomas, à guisa de ilustração, o Código de Defesa do Consumidor, o Decreto-Lei nº 73/1966, a Constituição da República e a Lei Geral de Proteção de Dados — que, à exceção da parte de sanções administrativas, entrou em vigor em setembro. Mas não só.

Tendo em vista as especificidades em jogo e a necessidade de solvência dos seguradores, tradicionalmente o setor de seguros é muito regulado, contando com uma ampla gama de atos normativos. Desde março de 2019, a Superintendência de Seguros Privados (Susep), órgão responsável pelo controle e fiscalização dos mercados de seguro, previdência privada aberta, capitalização e resseguro no Brasil passou a ter uma nova superintendente. Solange Vieira, a primeira mulher a ocupar esse cargo, tem uma pauta liberal e vem tomando medidas louváveis para a modernização do setor de seguros brasileiro. A flexibilização de algumas regras e o incentivo à inovação e à concorrência entre seguradores, que guiaram a atuação de Vieira em 2020, almejam a redução das barreiras regulatórias e dos preços dos seguros, bem como o aumento do número de consumidores.

Um exemplo da referida busca de modernização é a Circular Susep nº 598, de 19/3/2020, que dispõe sobre autorização, funcionamento por tempo determinado, regras e critérios para operação de produtos e envio de informações das sociedades seguradoras participantes exclusivamente de ambiente regulatório experimental (Sandbox Regulatório) que desenvolvam projeto inovador mediante o cumprimento de critérios e limites previamente estabelecidos. O tema também foi alvo de uma Resolução do Conselho Nacional de Seguros Privados (nº 381/2020) e, em outubro, contou com a seleção de 11 insurtechs.

No que tange à preocupação com o adequado nível de proteção dos consumidores, cabe realçar a Circular Susep nº 613, de 11/9/2020, que disciplina o atendimento às reclamações dos consumidores por meio da plataforma digital consumidor.gov.br, e a Resolução CNSP nº 382, de 4/3/2020, cujos objetivos foram criar a figura do "cliente oculto" e disciplinar o relacionamento das entidades reguladas pela Susep e intermediários com o cliente de produtos securitários. São explicitados, nessa sede, os princípios da "ética, responsabilidade, transparência, diligência, lealdade, probidade, honestidade, boa-fé objetiva, livre iniciativa e livre concorrência" (artigo 3°), visando a garantir que as entidades reguladas tratem adequadamente os clientes e, como corolário, fortaleçam a confiança no sistema de seguros privados brasileiro.

O trabalho de fôlego desempenhado na regulação dos seguros durante este ano é captado pela análise dos números envolvidos: mais de 16 resoluções CNSP, 24 circulares Susep e 23 consultas públicas. Para além das novidades trazidas pelos SROs (Sistemas de Registro de Operações) e os ILS (Instrumentos Ligados a Seguros), são dignos de nota, ainda, os seguintes pontos:

"i) Possibilidade de contratação de seguro no exterior – redução das cartas negativas (Circular SUSEP nº 603/2020) e contratação em moeda estrangeira (Resolução CNSP nº 379/2020);
ii) Modernização no sistema de cadastro de corretores de seguros (SUSEP x autorregulação);
iii) Novos prazos para guarda de documentos (Circular SUSEP nº 605/2020);
iv) Possibilidade de Contratação de Resseguro por EFPC e operadoras de saúde (Resolução CNSP nº 380/2020;
v) Possibilidade de Alteração de Registro de Ressegurador (Circular SUSEP nº 606/2020);
vi) Estabelecimento de prazos máximos pelo regulador para análise de atos (Portaria SUSEP nº 7.677/2020);

vii) Novas regras para auditoria independente, gestão de risco e solvência (alterações na Circular SUSEP nº 517/2015 e na Resolução CNSP nº 321/2015)" [1].

A toda evidência, não é simples a missão de se manter atualizado frente a tal conjunto de regras; menos ainda, a tarefa de se fazerem as necessárias conexões. O tamanho do desafio é sentido de maneira inicial, e talvez com maior impacto no âmbito que se passa a examinar.

2.2) Cenário jurisprudencial
O dado normativo brasileiro, visto de relance acima, é marcado por alguns dispositivos legais rigorosos com os segurados faltosos, o que acaba por gerar relativizações, não raro excessivas, pelo Judiciário.

Nos últimos anos, houve avanços na compreensão da modalidade contratual em tela pelos tribunais, acompanhados, porém, de alguns retrocessos. Ultrapassa a presente abordagem apontá-los um por um; nesta sede, impõe-se dar nota do que ocorreu de essencial em 2020.

Correndo o risco de simplificações redutoras, é possível apontar algumas decisões judiciais importantes, como: 1) "no contrato de seguro coletivo em grupo cabe exclusivamente ao estipulante, e não à seguradora, o dever de fornecer ao segurado (seu representado) ampla e prévia informação a respeito dos contornos contratuais, no que se inserem, em especial, as cláusulas restritivas" [2]; 2) é "decenal o prazo prescricional aplicável para o exercício da pretensão de reembolso de despesas médico-hospitalares alegadamente cobertas pelo contrato de plano de saúde (ou de seguro saúde), mas que não foram adimplidas pela operadora" [3]; 3) os "vícios estruturais de construção estão cobertos pelo seguro habitacional obrigatório vinculado ao crédito imobiliário concedido pelo Sistema Financeiro da Habitação – SFH, ainda que só se revelem depois da extinção do contrato" [4]; e, além disso, a 4) reafirmação de que "a rescisão de contrato de seguro por falta de pagamento deve ser precedida da interpelação do segurado para sua constituição em mora, bem como deve ser observada a extensão da dívida e se ela é significativa diante das peculiaridades do caso" [5]

Sem maior desenvolvimento das linhas argumentativas — incabível nesta ocasião —, não se pode deixar de levar em conta as especificidades inerentes aos referidos julgados. No horizonte do STJ existem temas espinhosos, que igualmente requerem cautela para que não haja generalização de entendimentos forjados em hipóteses fáticas peculiares, como a questão da prescrição no seguro, objeto de incidente de assunção de competência (IAC) nos seguintes termos: "Esta Corte Superior não se defrontou, ainda, com importante tese engendrada pela recorrente, no sentido de, em contrato de seguro facultativo, ser ou não anual o prazo da prescrição em todas as pretensões que envolvam segurado e segurador, não apenas as indenizatórias" [6]

A solução dessa e de outras questões ainda sem respostas está intimamente ligada ao papel (e contribuição) da academia. Como foi a sua atuação em 2020? É o que se traz à ribalta.

2.3) Cenário acadêmico
Didaticamente, pode-se dividir este tópico em quatro partes: 1) lives; 2) cursos; 3) congressos; e 4) publicações.

Em relação ao primeiro ponto, no início da pandemia da Covid-19 e com o distanciamento social em seu ápice, houve um expressivo aumento de lives tratando do Direito dos Seguros. Nesse particular, sobressaem as feitas pela seção brasileira da Aida, as Pimentelives, bem como as lives produzidas pela TV ConJur e pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro [7].

Em termos de cursos, tiveram destaque os realizados pelo Instituto Connect de Direito Social — ICDS ("Impactos da Pandemia Covid-19 nos seguros privados") e pela Escola da Magistratura Ajuris ("Covid-19 e suas repercussões nos contratos de seguro"). A Escola de Negócios e Seguros (outrora denominada Escola Nacional de Seguros) continua tendo um papel fundamental na área, especialmente os seus MBAs; e a Escola Superior de Advocacia de São Paulo (ESA OAB-SP) também merece aplausos em virtude dos cursos que vem desenvolvendo.

No que toca aos congressos, os grandes eventos especializados foram cancelados ou postergados, como o XIV Congresso Brasileiro de Direito de Seguro e Previdência (Aida Brasil) e o 9° Encontro de Resseguro (CNseg). Sem embargo, no mês de novembro o VIII Congresso Intercontinental de Direito Civil, realizado pela Academia Brasileira de Direito Civil, teve uma versão online com relevante painel de seguros.

O ano de 2020 ficará marcado, porém, pelo salto — quantitativo e qualitativo — nas obras securitárias publicadas no país. Entre as alvissareiras contribuições que se tem notícia, mister sublinhar as seguintes: 1) "Direito do Seguro e a Universidade de Salamanca Temas polêmicos e atuais", organizada por Paulo Cremoneze e Marcio Malfatti; 2) "Reflexões sobre o agravamento do risco nos seguros de danos", de autoria de Ernesto Tzirulnik e 3) "Direito dos Seguros", de Maurício Gravina.

O subscritor deste texto teve a honra de publicar duas obras pela editora Revista dos Tribunais, uma na posição de autor ("Tratamento de Dados Pessoais e Discriminação Algorítmica nos Seguros") [8] e uma como coautor e coorganizador ("Temas Atuais de Direito dos Seguros, Tomos I e II"). Essa última, coorganizada pelo professor Ilan Goldberg, contou com 87 especialistas colaborando em 68 artigos e teve o seu lançamento partilhado em dois eventos da TV ConJur [9].

Ainda no que se refere às publicações, deve ser realçado, por fim, o prestígio da Revista Jurídica de Seguros, bem como o crescente relevo de excelentes veículos informativos na área securitária [10].

3) Do fim ao recomeço
Em interessante matéria sobre o que esperar do setor de seguros em 2021, pode-se ler: "Investir em pessoas, tecnologia, comunicação e adotar um modelo de negócios 'ganha-ganha', ou seja, que beneficie a todos. Essas são as quatro palavras chaves citadas nas expectativas de dezenas de executivos" [11].

Não se poderia encerrar esta sinopse do que de essencial ocorreu no Direito do Seguros sem se deixar uma mensagem para o futuro. Se, como se registrou, 2020 foi um ano de intenso movimento nas áreas normativa, jurisprudencial e acadêmica, 2021 promete não ser diferente.

Para além da renovação dos vetustos atos normativos que regulam boa parte do setor de seguros, espera-se que também continuem pujantes — e cada vez mais técnicas — as produções acadêmica e jurisprudencial que versem sobre o Direito dos Seguros. A cada um dos partícipes dessa engrenagem caberá a tarefa de fazer a sua parte…

Ainda envolto na pandemia, é fato notório que o próximo ano será desafiador. Mas é preciso ter esperança de dias melhores e resiliência para alcançá-los; pois, conforme espirituosa lição de Claire Cook: "Se o plano A não funcionar, o alfabeto tem mais 25 letras 204 se estiver no Japão" [12].

 


[1] BASSANI, Bárbara. (Res)seguros: Retrospectiva SUSEP 2020 / Perspectivas 2021. Disponível em: https://www.editoraroncarati.com.br/v2/phocadownload/tozzini17122020.pdf. Acesso em: 28 dez. 2020.

[2] STJ, REsp. 1.825.716-SC. rel. min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 27/10/2020.

[3] STJ, REsp. 1.756.283-SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, j. 11/3/2020.

[4] STJ, REsp. 1.804.965-SP, rel. min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, j. 27/5/2020.

[6] STJ, IAC no REsp nº 1.303.374/ES, 2ª Seção, j. 14/6/2017. Desde 26/11/2020, os autos estão conclusos para julgamento do ministro Marco Buzzi, após pedido de vista na sessão de julgamento do dia 25/11/2020.

[8] Cf.: https://www.conjur.com.br/2020-jun-02/livro-aborda-discriminacao-algoritmica-seguros-tema-inedito-brasil. Para ter acesso à resenha da obra, consulte-se: SILVA, Rodrigo da Guia. Resenha à obra “Tratamento de Dados Pessoais e Discriminação Algorítmica”. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/561. Acessos em: 27 dez. 2020.

[10] No que tange às revistas especializadas, podem ser referidas: i) Caderno de Seguros; ii) Revista Apólice; iii) Opinião.Seg; e iv) Conjuntura CNseg. O endereço eletrônico da Roncarati afigura-se também como uma excelente fonte de conteúdo na área, bem como os sites Conjur, CQCS, Migalhas, JOTA.info e o blog Sonho Seguro.

[11] BUENO, Denise. Série – O que esperar de 2021? – Saiba o que pensam os principais porta vozes do setor de seguros. https://www.sonhoseguro.com.br/2020/11/serie-o-que-esperar-de-2021-saiba-o-que-pensam-os-principais-porta-vozes-do-setor-de-seguros/. Acesso em: 27 dez. 2020.

[12] COOK, Claire. Seven Year Switch. New York: Marshbury Beach Books, 2015. (eBook). (Tradução livre).

Autores

  • Brave

    é advogado, doutor em Direito Civil pela UERJ, mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo - Alemanha), professor do ICDS – Instituto Connect de Direito Social e da Escola de Negócios e Seguros, diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).

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