Opinião

A tutela do Direito Penal sobre a prostituição

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30 de dezembro de 2020, 12h35

A curiosidade sobre o tema foi despertada por duas obras: a tese de doutorado da professora Heidi — "Exploração Sexual e Direito Penal" [1] — e a série "Baby" [2], exibida na Netflix e dirigida por Anna Negri e Andrea de Sica.

A prostituição infantil retratada na trama tem origem em um caso real que chocou Roma: "Baby Squillo" [3]". O caso começou a ser investigado em 2014 [4], quando duas amigas de 13 e 14 anos, provenientes de famílias de nome e de alto status, que possuíam dinheiro e moravam em um bairro nobre de Roma, começaram a se prostituir. O caso chocou a cidade por conta da idade das meninas e o motivo pelo qual elas faziam aquilo: a liberdade exercida e experimentada por elas; para se divertirem e garantirem certos luxos, além da constante busca por aventura e adrenalina.

Um dos nomes famosos investigados no caso, e que acabou sendo sentenciado, foi Mauro Floriani, ex-oficial da polícia financeira e marido da neta de Mussolini, Alessandra Mussolini. Na época dos fatos, os dois estavam profundamente envolvidos com a política, quando Mauro foi visto em diversas fotos saindo com uma das adolescentes. Com isso, este se declarou culpado perante a Justiça, tendo como fixação de pena o pagamento de multa no valor de 1,2 mil euros e a decretação de prisão por um ano. O tamanho do escândalo e a comoção do público fizeram com que o caso ficasse conhecido [5].

A temática que se quer abordar nesse texto não é a exploração sexual infantil, mas o fato de que as garotas estavam fazendo aquilo porque acreditavam que estavam fazendo algo incrível, que permitia a diversão, o luxo e a realização de vontades destas.

Por isso a utilização da tese de doutorada da professora Heidi. Ela aborda o tema da prostituição e os posicionamentos dos dois mais importantes movimentos feministas: aquele que é contrário à prostituição por coisificar a mulher, onde impera a opressão de gênero; e o outro favorável a esse tipo de trabalho, porque entende a possibilidade da mulher ser capaz de consentir, encarando aquilo como uma escolha.

As diferentes visões da prostituição pelo movimento feminista
A prostituição já foi tratada de diferentes formas pela sociedade: de forma a culpabilizar as prostitutas; ou apenas os clientes, ou ambos e o resultado disso é que a prostituição nunca deixou de existir independente do modelo que se adotasse. O que se vê atualmente é que as meretrizes estão tendendo a reivindicar um modelo legalizador/laboral, no qual suas atividades passam a serem reconhecidas e seus direitos sociais e trabalhistas garantidos [6]. Onde há esse tipo de concepção, se observa que a prostituição é vista sem sua carga moral, o que parece mais adequado à profissão e ao Direito.

Parte do movimento feminista, que tem viés marxista-socialista, entende que a prostituição não está ligada à livre escolha das mulheres, mas que esse tipo de trabalho é decorrente das estruturas sociais e de um sistema de exploração capitalista e opressor, inserido num sistema patriarcal. Para este, a prostituição é apenas uma consequência do trabalho assalariado, que corrompe qualquer um. Como modo de solução, seria necessária a superação do capitalismo econômico.

Do outro lado, o posicionamento do feminismo radical é que a prostituição tem como objetivo o controle da sexualidade feminina e que perpetua a heterossexualidade, além de considerar que a própria natureza da prostituição é forçada. A solução proposta foi o lesbianismo, como forma de resistência. O entendimento é que as prostitutas traem a causa ao manterem relações com seus agressores, mesmo que por livre decisão. As radicais também veem a prostituição como resultado da estrutura patriarcal e limitadora da liberdade feminina.

Ou seja, em ambas as visões, a prostituta é a vítima, pois o livre arbítrio destas é totalmente deixado de lado, seja por considerar que este está sendo motivado pela lógica econômica atuante, seja por desconsiderar a capacidade das mulheres de escolherem se prostituírem. Sendo assim, essa atividade sempre era considerada desviante ou como escravidão sexual.

Hoje há movimentos que entendem que a prostituição está inserida numa cultura de consumo, sendo apenas uma resposta às necessidades socioeconômicas, não deixando de levar em conta que a sexualidade masculina é privilegiada na sociedade. Sendo assim, hoje o movimento feminista é separado por duas convicções: a que é absolutamente contra à prostituição e a que entende que a legalização da atividade é necessária para proteção das mulheres.

O binômio exploração x escolha
A discussão sobre exploração ou escolha não é nova e nem fácil, como é retratado pela série, em que as menores prostitutas não são exploradas por um cafetão, não sendo vítimas porque elas escolheram livremente estar trabalhando com aquilo. Por conseguinte, diversas vezes a segurança das garotas foi colocada em risco.

Por isso o argumento da defesa de que deve haver uma proteção ao trabalho dos que se prostituem e que decidem livremente ganharem dinheiro com seus corpos. De acordo com essa concepção, os prostituídos devem ter seus direitos e liberdades igualmente respeitados.

A impressão é que a consideração de que as mulheres são incapazes de escolher tendem a infantilizá-las, além de que considerá-las como vítimas e traidoras do feminismo, o que acaba por fazer uma distinção entre boas e más mulheres, o que é bem preocupante. De acordo com esse entendimento, as mulheres "escolhem" porque não tem outra opção. Essa visão é problemática por deixar de lado a prostituição masculina, transexual e travesti, além de deixar de lado o entendimento principal que o feminismo prega: a igualdade entre os gêneros, tomando como verdade que necessariamente as prostitutas seriam exploradas, tratadas como objeto e posicionadas inferiormente no mercado de trabalho e a resposta para essas demandas não são respondidas com a criminalização da prostituição.

Essa leitura é bem divergente da mostrada na série: as amigas que se prostituíam escolheram aquilo como forma de poder ter acesso a roupas e acessórios de luxo e, principalmente, por acharem divertido o mistério da vida dupla (tanto é que a série foi acusada de romantizar a prostituição [7]).

Sendo assim, não necessariamente as oportunidades sociais e educacionais é que levam essas mulheres à prostituição (é claro que não se pode esquecer do fato de que esta liberdade é exercida por menores de idade, mas isso será tratado a diante). Tanto Ludovica, quanto Chiara, as personagens principais de "Baby", demonstram ter plena consciência do que estão fazendo e por qual motivo. É claro que outras nuances acabam por adentrar o drama teen, mas inicialmente elas estavam exercendo seus respectivos direitos de escolha.

Por fim, para reforçar o argumento aqui trazido, a professora Heidi ao analisar trabalhos e pesquisas sobre o tema para seu doutorado, acaba por demonstrar que muitas são as comprovações que a maioria das profissionais do sexo o fazem por dinheiro, por ser uma atividade mais bem remunerada do que outras, ou seja, essas não se prostituem por questões sociais, educacionais ou de coerção/exploração [8].

A diferença entre prostituição e exploração sexual
Diante disso, é preciso fazer-se entender que a prostituição e a exploração sexual são completamente diferentes. Apenas a exploração sexual é que deve ser combatida pelo Direito Penal, garantido assim que quem escolhe se prostituir seja devidamente protegido e não atingido pela criminalização indevida, carregada de julgamentos religiosos e moralistas.

O que o Direito Penal tutela não diz respeito ao juízo moral das pessoas, o que ele tutela é o respeito à liberdade das pessoas escolherem. Há uma diferença absurda entre a prostituição voluntária e a prostituição forçada e apenas a segunda é que deve ser criminalizada.

Ao fim, a consideração a que se chega é que o feminismo que é contrário à prostituição acaba por reforçar a estigmatização dessas mulheres, carregando em seu discurso um julgamento moral de que a sexualidade das mulheres deve ser repreendida e que apenas num relacionamento fechado ou num matrimônio é que esta pode exercer seus direitos sexuais.

Segundo Heidi, o reforço da estigmatização dessas mulheres através desse tipo de pensamento faz com o sistema judicial despreze e marginalize as putas [9] [10]. Ademais, diante de toda a argumentação trazida pela professora, não há dúvidas que a prostituição deva ser descriminalizada, retirando-se aspectos morais da atividade; cabendo a necessidade de regulamentação trabalhista, de modo a fazer com que os trabalhadores do sexo tenham seus direitos garantidos, sendo devidamente respeitados pela sociedade.

Código Penal: a consideração do consentimento
O Código Penal, em seus artigos 149-A, V, 228, 229 e 230, não faz nenhuma distinção entre a presença ou ausência de consentimento, ou seja, aquele que realiza a exploração sexual se aproveitando da prostituição alheia e aquele que tira proveito da prostituição com consentimento da pessoa prostituída são equiparados pela lei [11].

Portanto, é evidente que o CP necessita de reformas profundas ao tratar sobre o tema, distinguindo e definindo corretamente o que seria a exploração e excluindo supra legalmente a antijuridicidade da conduta se houver consentimento do prostituído. Tal atitude favorecia a reforçaria a desestigmatização daqueles que escolhem se prostituir, além de garantir que os direitos destes, como a dignidade, a liberdade de escolha e a segurança, fossem respeitados, de modo a melhorar as condições de vida destes.

A prostituição desejada e consentida pelas menores no caso 'Baby Squillo' x prostituição e exploração infantil
O trabalho até aqui formulado chamou atenção para o assunto da prostituição, opinando significativamente pela autonomia das mulheres e defendendo o poder de escolha destas. Entretanto, a série "Baby" não foi trazida meramente por tratar desse tema, mas para questionar a liberdade de vontade das menores de idade.

Até então, na bolha social vivida pela maioria das pessoas e por conta de todo estigma e preconceito para com os prostituídos, o trabalho destes na maioria das vezes acabou sendo considerado como degradante. Contudo, ao estar-se diante do elenco de "Baby" e ao se ter acesso às apurações do processo "Baby Squillo", outra face da prostituição foi evidenciada e que em muito foi necessária para que se chegasse a conclusão deste trabalho: a prostituição era um meio escolhido pelas meninas, sem qualquer influência ou coercitividade e vivida de uma forma feliz pelas duas.

Entretanto, a intenção deste trabalho não é glamourizar a profissão, muito menos normalizar a exploração de menores (assunto que também está presente na série e no caso, por envolver outras menores advindas de outro contexto social, que eram agenciadas e exploradas). Contudo, é preciso ressaltar que "Baby" explora aspectos muito sutis e complexos das relações humanas que não nos permitem ter uma visão maniqueísta, sendo difícil definir com precisão o que seria certo ou errado, o que deveria ser criminalizado ou não e se a vontade das garotas deveria imperar ou não.

Sendo assim, como o objetivo do trabalho é ser sucinto, a temática da prostituição consentida objetivada pelas garotas e a exploração sexual infantil poderá ser retomada e trabalhada em uma posterior continuação deste texto.

 


[1] FLORENCIO, H. R. Exploração sexual e direito penal. 2019. Tese doutorado em direito penal. Faculdade de Direito da USP.

[2] DE SICA, A (temporadas 1 e 2). "Baby" [série] Direção: Anna Negri (temporada 1) e Letizia Lamartire (temporada 2). Produção: Marco De Angelis e Nicola De Angelis. Roma: Netflix, 2018-2020. Disponível em: plataforma de streaming Netflix.

[3] NADEAU, B. L. Mussolini Family Tied to Underage Sex Ring. The Daily Beast. 12 de jul. de 2017. Disponível em: <https://www.thedailybeast.com/mussolini-family-tied-to-underage-sex-ring?ref=scroll>. Acesso em: 30 de nov. de 2020.

[4] AFP. Marido da neta de Mussolini é investigado por sexo com menores. Correio Braziliense. 11 de mar. de 2014. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2014/03/11/interna_mundo,416900/marido-da-neta-de-mussolini-e-investigado-por-sexo-com-menores.shtml>. Acesso em: 1 de dez. de 2020.

[5] PAES, M. O caso real de baby netflix | caso real x série. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6yHL-drVYJ4>. Acesso em: 1 de dez. de 2020.

[6] FLORENCIO, H. R. Exploração sexual e direito penal. 2019. Tese doutorado em direito penal. Faculdade de Direito da USP. p. 49. Segundo as pesquisas feitas pela professora e divulgadas nessa tese, esse modelo é praticado nos países baixos, na Alemanha, na Austrália, na Nova Zelândia e no Estado de Nevada nos Estados Unidos.

[7] PAZ, J. da. Acusada de romantizar prostituição, Netflix se envolve na terceira polêmica do ano. UOL. 4 de dez. de 2018. Disponível em: <https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/acusada-de-romantizar-prostituicao-netflix-se-envolve-na-terceira-polemica-do-ano–23611?cpid=txt>. Acesso em: 1 de dez. de 2020.

[8] FLORENCIO, H. R. Exploração sexual e direito penal. 2019. Tese doutorado em direito penal. Faculdade de Direito da USP. p. 60

[9] Não se considera neste trabalho o termo pejorativo atribuído à esta palavra. Aqui, o termo "puta" se refere aqui àquelas mulheres que decidem livremente sobre sua vida sexual.

[10] FLORENCIO, H. R. Exploração sexual e direito penal. 2019. Tese doutorado em direito penal. Faculdade de Direito da USP. p. 70.

[11] FLORENCIO, H. R. Exploração sexual e direito penal. 2019. Tese doutorado em direito penal. Faculdade de Direito da USP. p. 83.

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