Retrospectiva 2020

2020 e os avanços do Supremo em matéria de direitos fundamentais

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30 de dezembro de 2020, 10h06

O ano de 2020 trouxe inúmeros desafios para o país, que se viu mergulhado em uma pandemia sem precedentes e de consequências trágicas para milhões de brasileiros. Como se não bastasse, o que se observou no campo político foi uma constante tensão entre os Poderes Legislativo e Executivo, que apresentaram inúmeras dificuldades em atingir consensos e elaborar planos de enfrentamento à calamidade em saúde pública e de preservação da atividade econômica.

Nesta temporada atípica e conflituosa, no qual a jurisdição constitucional foi bastante exigida, o Supremo Tribunal Federal se notabilizou pela defesa de direitos fundamentais em importantes discussões.

Merecem especial destaque decisões que afastaram a validade de normas que, a pretexto de regular situações excepcionais no contexto de pandemia, terminaram por invadir e violar garantias individuais e institucionais de primeira importância.

Cita-se, no ponto, o referendo do Plenário à liminar concedida pela ministra Rosa Weber nas ADIs nºs 6.387, 6.388, 6.389 e 6.390, que suspendeu a eficácia da Medida Provisória nº 954/2020, impedindo o compartilhamento indiscriminado de dados pessoais custodiados por empresas de telecomunicações com o poder público.

Durante o julgamento foi reconhecida, de forma inédita no país, a prevalência do direito fundamental à proteção de dados pessoais, em consonância com precedentes de diversas cortes constitucionais pelo mundo. Além disso, a corte firmou importante posição no sentido de que "o cenário de urgência decorrente da crise sanitária deflagrada pela pandemia global da Covid-19 e a necessidade de formulação de políticas públicas que demandam dados específicos para o desenho dos diversos quadros de enfrentamento não podem ser invocadas como pretextos para justificar investidas visando ao enfraquecimento de direitos e atropelo de garantias fundamentais consagradas na Constituição".

Ainda nesse sentido, sublinha-se a ADI nº 6.353, oportunidade na qual a corte suspendeu a eficácia de dispositivos previstos na Medida Provisória nº 928/2020 que interrompiam a aplicação da Lei de Acesso à Informação a setores sensíveis da Administração Pública durante o combate à pandemia da Covid-19. A norma barrada pelo STF representava patente violação aos artigos 5º, XXXIII, e 37, caput e §3º, II, da Constituição Federal, que estabelecem a obrigação do poder público em dar publicidade e amplo acesso às informações de interesse público e coletivo, concedendo a agentes públicos liberdade para negar acesso à informação de forma imotivada.

A corte também tem se mostrado atenta aos graves ataques sofridos pelo sistema de proteção ao meio ambiente no país, sobretudo diante da vacilante atuação do poder público verificada nos últimos meses e dos crescentes números observados nos índices de degradação ambiental por todo o território nacional.

Diante da urgente situação dos biomas nacionais, quatro partidos políticos apresentaram duas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão em face das condutas omissivas da União por não adotar providências de índole administrativa em relação ao Fundo Amazônia e ao Fundo Clima (ADOs nº 59 e nº 60).

Especificamente no que se refere à ADO nº 60, convertida para a ADPF nº 708, o ministro relator Luís Roberto Barroso considerou que os fatos narrados na ação traduzem: 1) atos comissivos e omissivos persistentes que comprometem a tutela do meio ambiente e do Fundo Clima; 2) imputáveis a autoridades diversas; e ocasionam 3) violações massivas a direitos fundamentais. Enfatizou que a matéria ultrapassa o conteúdo ambiental, de modo a atingir outros direitos fundamentais, como "o direito à vida (artigo 5º, CF), à saúde (artigo 6º, CF), à segurança alimentar e à água potável (artigo 6º, CF), à moradia (no sentido de habitat), ao trabalho (artigo 7º, CF), podendo impactar, ainda, o direito à identidade cultural, o modo de vida e a subsistência de povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais".

Por esses motivos, o ministro relator convocou audiência pública a fim de compreender o estágio atual das políticas nacionais em matéria ambiental, destacando a potencial existência de "estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural". Após as manifestações de diversos órgãos públicos, entidades representativas e especialistas da área, o processo aguarda julgamento.

Ainda na seara ambiental, destaca-se a ADPF nº 748, na qual se questionou a edição de normas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que promoveram a sumária revogação de extenso arcabouço normativo que garantia ampla proteção a biomas como restingas e manguezais, bem como de localidades situadas à margem de cursos e reservatórios d'água. A inicial pontuou os diversos vícios formais e materiais nos atos apontados como objeto da arguição, que consubstanciam evidente retrocesso em matéria de direitos fundamentais, especialmente no que se refere à efetivação do artigo 225 da Constituição Federal.

Em medida cautelar já referendada pelo Plenário, determinou-se a suspensão da eficácia da Resolução Conama nº 500/2020, garantindo a vigência de normas mais protetivas até que a matéria seja analisada de forma definitiva pela corte. No voto condutor, a ministra Rosa Weber, relatora, assentou que "a Resolução nº 500, de 28 de setembro de 2020, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), ao revogar as Resoluções nºs 284/2001, 302/2002 e 303/2002, vulnera princípios basilares da Constituição, sonega proteção adequada e suficiente ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado nela assegurado e promove desalinho em relação a compromissos internacionais de caráter supralegal assumidos pelo Brasil e que moldam o conteúdo desses direitos".

É de ressaltar ainda que, apesar das urgentes controvérsias surgidas no decorrer do ano, o Supremo Tribunal Federal não deixou de exercer sua essencial função institucional de proteção aos direitos fundamentais ao dar solução a matérias relevantes que se encontravam sob análise há mais tempo.

É o caso, por exemplo, da histórica decisão proferida no âmbito da ADI nº 5.543, que reconheceu a inconstitucionalidade de qualquer critério baseado exclusivamente na orientação sexual do doador para impor restrições à doação de sangue. A ação direta ressaltou que as normas são danosas não apenas à comunidade homoafetiva, como também a todos os brasileiros que necessitam de doações sanguíneas, violando garantias constitucionais como a dignidade da pessoa humana, direito à igualdade e o princípio da proporcionalidade.

O ministro Edson Fachin, relator do denso acórdão acompanhado pela maioria, destacou a irrazoabilidade da medida: "Trata-se de discriminação injustificável, tanto do ponto de vista do direito interno, quanto do ponto de vista da proteção internacional dos direitos humanos, à medida que pressupõem serem os homens homossexuais e bissexuais, por si só, um grupo de risco, sem se debruçar sobre as condutas que verdadeiramente os expõem a uma maior probabilidade de contágio de AIDS ou outras enfermidades a impossibilitar a doação de sangue".

Em mais uma importante ação constitucional concluída no ano de 2020, a Suprema Corte reconheceu, no bojo da ADI nº 5.881, a inconstitucionalidade de dispositivos que permitiam à Fazenda Pública decretar a indisponibilidade de bens de devedores da União de forma unilateral e discricionária. Apesar de manter válida a possibilidade de que a dívida ativa possa ser averbada no registro de imóveis, a posição majoritária do Plenário assentou que, por se tratar de grave intervenção no direito fundamental à propriedade consagrada na Constituição Federal, a indisponibilidade de bens exige a apreciação prévia do Poder Judiciário, instância competente e imparcial para a análise de tal medida.

A breve retrospectiva delineada demonstra que o Supremo Tribunal Federal esteve atento ao delicado momento vivenciado pelo país, com atuação firme e constante na proteção dos direitos fundamentais sedimentados na Constituição Federal de 1988. Que venham os novos desafios em 2021!

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    é sócio-fundador do escritório Carneiros e Dipp Advogados, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt (Berlim), professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), coordenador do Grupo de Improbidade Administrativa do IDP e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF.

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    é sócio do escritório Carneiros e Dipp Advogados.

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