Opinião

Advocacia criminal da inocência

Autor

30 de dezembro de 2020, 7h11

Ao longo das últimas três décadas, houve mudança paradigmática de percepção, por parte de jornalistas, legisladores, pesquisadores, operadores forenses etc., acerca das mazelas do sistema de administração da Justiça Criminal, das quais podem resultar condenações de inocentes. Essa mudança foi insuflada pelo chamado movimento da inocência (innocence movement), originário dos Estados Unidos da América na década de 1990 [1].

Spacca
Até então, a condenação de inocente era considerada fenômeno grave e indesejável, porém de rarefeita ocorrência, sendo objeto de análise meramente casuística e isolada.

Não obstante, o sobredito movimento social não só trouxe esse fenômeno para o centro nervoso do debate acadêmico e político-criminal contemporâneo, como também substituiu sua tradicional análise casuística e isolada por perspectiva mais institucional e sistêmica.

De início, o movimento da inocência foi catalisado pela descoberta, em 1984, das aplicações forenses do exame de identificação genética. O exame de DNA, malgrado não seja infalível, caso baseado em aplicação e interpretação corretas por parte de profissional qualificado, permite a identificação (ou exclusão) da autoria da infração penal com altíssimo grau de probabilidade. Assim, a genética forense tornou possível a produção de prova científica da inocência de condenados.

Nos Estados Unidos da América, dois advogados de interesse público, Barry Scheck e Peter Neufeld, aturaram nas primeiras causas envolvendo exames de identificação genética e participaram dos debates acadêmicos e legislativos sobre admissibilidade probatória e confiabilidade do exame forense de DNA, tornando-se especialistas na matéria.

Em 1992, Scheck e Neufeld decidiram fundar o Innocence Project, inicialmente como programa de extensão vinculado à Cardozo Law School, em Nova Iorque. A inspiração foi buscada na estrutura organizacional e procedimentos administrativos da Centurion Ministries, entidade sem fins lucrativos precursora na exoneração de inocentes condenados desde 1983 [2].

O Innocence Project tem dois diferenciais: 1) foco em causas criminais envolvendo exames forenses de identificação genética; 2) atuação política com vistas ao fomento de pauta reformista do sistema de administração da Justiça Criminal.

O aumento de exonerações de inocentes condenados (inclusive à pena capital) levou à uma maior percepção midiática e social sobre a patologia das condenações criminais errôneas e suas causas sistêmicas.

Um marco histórico foi a National Conference on Wrongful Convictions and the Death Penalty, realizada em 1998 em Chicago. Com 1,2 mil participantes, essa conferência contou com depoimentos pessoais de 30 exonerados e grande repercussão midiática.

Também avulta a importância da publicação, em 2000, do livro "Actual innocence: Five days to execution and other dispatches from the wrongly convicted" [3]. Nessa obra, Scheck, Neufeld e Jim Dwyer analisaram, com base em casos concretos, as principais causas sistêmicas de condenações de inocentes, tendo logrado grande êxito editorial.

Outro marco importante foi a promulgação do Innocence Protection Act em 2004. Trata-se de legislação focada em três aspectos: 1) aumento do acesso de condenados a exames genéticos, estabelecendo protocolos técnicos e procedimentos para tanto; 2) garantia de defesa penal efetiva para acusados de delitos susceptíveis à pena de morte, definindo critérios de seleção e remuneração de defensores; 3) compensação por danos morais decorrentes de condenações criminais equivocadas.

Talvez o desdobramento mais importante do movimento social em apreço tenha sido a criação, em 2005, de rede informal — composta por entidades sem fins lucrativos, clínicas de prática jurídica (vinculadas a instituições de ensino superior), defensorias públicas, escritórios de advocacia etc. — dedicada à assistência jurídica pro bono a condenados que buscam provar sua inocência, e ao debate político-legislativo sobre causas sistêmicas de condenações errôneas [4].

Atualmente, a chamada Rede da Inocência (Innocence Network) é composta por 69 entidades ao redor do globo, sendo organicamente estruturada com base em declaração de princípios, critérios de admissão, diretrizes éticas e sobre melhores práticas etc [5].

Segundo Robert Norris, o surgimento do movimento da inocência se deveu à confluência de três fatores: 1) o alicerce organizacional estabelecido pela Centurion Ministries e pelo Innocence Project; 2) as ideias visionárias de Scheck e Neufeld sobre o uso forense do exame de DNA como instrumento para a exoneração de inocentes condenados; 3) a eleição dos erros no sistema de administração da Justiça Criminal como objeto de análise de acadêmicos e jornalistas [6].

O movimento social em digressão tem importância histórica comparável à revolução do devido processo (due process revolution), feita durante a gestão de Earl Warren à frente da Suprema Corte norte-americana (1953-1969) [7]. Há mesmo quem caracterize o movimento da inocência como sendo o novo movimento das liberdades civis do século 21 [8].

Segundo o National Registry of Exonerations, desde 1989 já houve 2.706 exonerações de inocentes condenados, que causaram a perda de mais de 24,6 mil anos de vidas em liberdade [9].


 

Como nem todo caso criminal comporta exame forense de DNA (mais comum em crimes contra a vida ou sexuais, quando há material biológico coletável na cena do crime), nem todo condenado tem acesso à assistência jurídica, e há standard probatório rigoroso para a desconstituição de condenações definitivas, tal amostragem do National Registry of Exonerations pode representar a ponta do iceberg, havendo quantidade substancialmente maior de erros judiciários ora despercebidos.

 

Inegável mérito do movimento social em tela é o seu legado de casos concretos nos quais houve comprovação empírica de condenações de inocentes.

Importante pesquisa empírica sobre 250 desses casos revela as principais causas sistêmicas de erros judiciários: 1) inexistência de gravação de interrogatórios policiais, conducente a abusos e coações (v.g. induções de falsas confissões de suspeitos); 2) ausência de procedimento duplo-cego de reconhecimento pessoal (a pessoa reconhecedora e o policial responsável pelo ato desconhecem a verdadeira identidade do suspeito reconhecível), da qual resultam reconhecimentos equivocados, sugeridos ou não confiáveis; 3) falta de confiabilidade de métodos científicos forenses, ou erros e vieses de peritos na aplicação e interpretação desses métodos; 4) carência de gravação e divulgação à defesa de acordos entre informantes e autoridades públicas, que são talhados sob medida para robustecer a teoria do caso do acusador; e 5) deficiências estruturais da defesa técnica (v.g. baixa remuneração, inexistência de controle jurisdicional, indisponibilidade de assistente técnico e investigador particular, não compartilhamento de elementos informativos pela polícia e acusador etc.), das quais resultam sua falta de efetividade [10].

Entre nós, houve avanços no enfrentamento da condenação de inocentes e suas causas sistêmicas: 1) criação do Innocence Project Brasil pelos advogados Dora Cavalcanti, Flávia Rahal e Rafael Tucherman [11]; 2) pesquisas científicas sobre a acurácia e confiabilidade de certos meios de prova [12]; e 3) decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça adotando perspectiva mais institucional e sistêmica sobre erros cometidos durante o reconhecimento pessoal de suspeitos [13].

Não há dúvida que o movimento da inocência desafia interessantes linhas de pesquisa acadêmica e pautas de política criminal, repercutindo inclusive no modelo de ensino universitário da prática forense penal [14].

Nada obstante, por limitações de espaço e tempo, este texto é focado na seguinte questão: o atual marco deontológico é adequado para a advocacia da inocência, ou esta deve ter regime deontológico próprio (diferenciado da advocacia criminal tradicional) [15]?

O precitado marco contemporâneo estabelece o direito e o dever do advogado de assumir o patrocínio da causa criminal, independentemente da sua opinião pessoal sobre a culpa ou inocência do acusado (artigo 25 do Código de Ética e Disciplina da OAB).

Por outro flanco, no movimento da inocência há diretriz deontológica distinta, que condiciona a assunção do patrocínio da causa a juízo de valor do advogado reconhecendo a inocência factual do condenado, ao final do processo de triagem do caso.

Outra diferença relevante é que, na advocacia tradicional, o dever do advogado é propiciar defesa efetiva ao acusado, mantendo-se neutro em relação a quaisquer interesses (econômicos, morais, sociais, políticos etc.) mais amplos que porventura estejam em jogo no caso concreto.

Já os artífices da advocacia da inocência são ativistas políticos que consideram o Direito um meio de modificação da realidade social, buscando atingir objetivos políticos que transcendem os interesses individuais do condenado (v.g. extinção da pena de morte; reformas legislativas e institucionais que enfrentem causas sistêmicas de erros judiciários etc.).

Outra importante questão na advocacia da inocência diz respeito aos critérios e ao standard probatório para se considerar o condenado factualmente inocente, justificando a assunção do patrocínio da causa.

Fora os dois casos mais incontroversos (condenação por fato naturalístico inexistente, ou por fato criminoso praticado por terceiro), há casos que se situam em zona de penumbra (v.g. condenação por conduta praticada ao abrigo de causa legal justificante e exculpante; condenação por fato mais grave do que o efetivamente cometido etc.) [16].

A advocacia da inocência também enseja consideráveis mudanças na dinâmica e na ética da relação advogado-cliente.

Ao contrário da advocacia criminal tradicional, na advocacia da inocência a assunção do patrocínio da causa não se dá só por solicitação, ou disponibilidade de recursos, do cliente. Tal assunção pressupõe processo de triagem do caso, com investimento de considerável quantidade de tempo e recursos humanos e materiais (estudo dos autos do processo, entrevista com o condenado, investigação defensiva etc.), podendo resultar no declínio do patrocínio da causa, à míngua da sobredita inocência factual.

Ademais disso, muitos advogados da inocência exigem que candidatos a clientes assinem contrato concordando com diversas condições, entre as quais renúncias ao sigilo profissional e potenciais conflitos de interesses [17].

A complexidade e o rigor do processo de triagem de casos é muito importante, pois eles reforçam a credibilidade da entidade, e das causas cujo patrocínio é por ela assumido, perante a opinião pública e o sistema de administração da Justiça Criminal.


Também é relevante analisar se a advocacia da inocência pode ser exercida em conjunto com a advocacia criminal tradicional. Em princípio a resposta é positiva, desde que sejam observadas as sobreditas diferenças deontológicas, e que o profissional sempre deixe clara a capacidade na qual está atuando em cada caso concreto.

 

Cabe registrar algumas preocupações doutrinárias quanto ao movimento da inocência [18].

 

Em primeiro lugar, condenados culpados — mesmo com base em acusações excessivas, penas desproporcionais, nulidades processuais, provas inadmissíveis, sujeitos a desvios e excessos na execução da pena etc. — são excluídos da assistência jurídica. Tal exclusão pode ser interpretada como postura arrogante (ou de superioridade moral) por parte dos advogados da inocência, face aos defensores criminais tradicionais.

Além disso, há risco de captura do debate político-criminal pelo discurso da inocência factual, desvalorizando outros problemas sistêmicos relevantes. A consequência pode ser o desaparecimento da importante distinção entre culpa factual e culpa legal empiricamente demonstrada, e o enfraquecimento da presunção de inocência.

Por fim, a ênfase do ensino universitário da prática forense penal na advocacia da inocência traz risco de futuros operadores jurídicos assimilarem cultura de triagem e patrocínio só de acusados factualmente inocentes, como se os demais fossem menos merecedores de defesa efetiva.

 

 

[1] NORRIS, Robert. Exonerated: A history of the innocence movement, pp. 30 e ss. New York: New York University Press, 2017.

[3] SCHECK, Barry; NEUFELD, Peter; DWYER, Jim. Actual innocence: Five days to execution and other dispatches from the wrongly convicted. New York: Doubleday, 2000.

[4] McMURTRIE, Jacqueline. The innocence network: From beginning to branding, In: COOPER, Sarah Lucy (Ed.). Controversies in innocence cases in America, pp. 21-37. London: Routledge, 2016.

[6] NORRIS, Robert. Op. cit., pp. 115 e ss.

[7] FINDLEY, Keith. Innocence found: The new revolution in American criminal justice, In: COOPER, Sarah Lucy (Ed.). Controversies in innocence cases in America, pp. 03-20. London: Routledge, 2016.

[8] MEDWED, Daniel. Innocentrism, In: University of Illinois Law Review, pp. 1.549-1.572, 2008.

[10] GARRETT, Brandon. Convicting the innocent: Where criminal prosecutions go wrong. Cambridge: Harvard University Press, 2011.

[12] Vide, por exemplo: BRASIL. Ministério da Justiça. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses (Série Pensando o Direito, n. 59). Brasília: Ministério da Justiça, 2015.

[13] STJ, 6ª Turma, HC 598.886-SC, Rel. Min. Rogério Schietti, DJe 18.12.2020.

[14] FINDLEY, Keith. The pedagogy of innocence: Reflections on the role of innocence projects in clinical legal education, In: Clinical Law Review, n. 13, pp. 1.101-1.148, 2006.

[15] RISINGER, Michael; RISINGER, Lesley. The emerging role of the innocence lawyer, In: COOPER, Sarah Lucy (Ed.). Controversies in innocence cases in America, pp. 123-138. London: Routledge, 2016.

[16] FINDLEY, Keith. Defining innocence, In: Albany Law Review, v. 74, n. 03, pp. 1.157-1.208, 2010-2011.

[17] Por exemplo, permitindo que o advogado: 1) acesse quaisquer comunicações entre o candidato a cliente e seus antigos patronos; 2) use quaisquer informações e elementos informativos obtidos (diretamente do candidato a cliente, ou da investigação defensiva) em favor de terceiro que provavelmente é inocente; 3) compartilhe o resultado do processo de triagem com outras entidades congêneres; 4) renuncie ao mandato, caso o cliente minta para o advogado, ou sejam descobertas novas provas incriminadoras.

[18] SMITH, Abbe. In praise of the guilty project: A criminal defense lawyer’s growing anxiety about innocence projects, In: University of Pennsylvania Journal of Law and Social Change, v. 13, n. 04, pp. 315-329, 2009-2010.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!