Opinião

O prefeito de São Paulo e o subsídio: a constitucionalidade de seu reajuste

Autor

  • Luiz Alberto dos Santos

    é advogado consultor legislativo do Senado mestre em Administração doutor em Ciências Sociais professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)

29 de dezembro de 2020, 16h12

Em artigo publicado no Estadão nesta terça-feira (29/12), o economista Pedro Nery, consultor legislativo do Senado, aponta várias "inconstitucionalidades" na lei municipal que elevou o subsídio do prefeito de São Paulo a partir de 2022.

Segundo a Lei nº 17.543, de 23 de dezembro, resultante do Projeto de Lei nº 173/18, a partir de 1º de janeiro o subsídio mensal do prefeito do município de São Paulo passará a ser de R$ 35.462 e o do vice-prefeito, de R$ 31.915,80. Os secretários municipais passarão a receber R$ 30.142,70.

Mas esses valores só entrarão em vigor em 2022. Diversamente do que diz o doutor em Economia, não há inconstitucionalidade alguma na lei.

Primeiro, quanto à alegada questão do "vício" de iniciativa: a Constituição Federal, no seu artigo 29, V, prevê que os subsídios do prefeito, do vice-prefeito e dos secretários municipais serão "fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal", observado o teto de remuneração nacional (ministro do STF) e na forma de subsídio em parcela única.

O subsídio do prefeito, na forma do artigo 37, XI, é o limite de remuneração para os servidores municipais. Na medida em que esse "limite" permaneça congelado, em afronta, aí, sim, ao artigo 37, X, da Constituição, que prevê revisão geral anual para a preservação do poder aquisitivo, o que se tem é inconstitucionalidade por omissão, reconhecida mais de uma vez pelo STF, mas que se submete à disponibilidade orçamentária, como decidiu a corte em 2019, no polêmico RE 905357.

Assim, não houve qualquer vicio na iniciativa do Legislativo, e o que se deveria questionar é o absurdo de uma norma legal dessa natureza submeter-se à sanção do chefe do Executivo. Trata-se de mais uma das "trapalhadas" da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que no plano federal não é observada, visto que o subsídio do presidente da República, do vice-presidente e o dos ministros de Estado é fixado por decreto legislativo, não sujeito à sanção presidencial.

Mas a EC 19, de 1998, previu que o subsídio do prefeito seria fixado "por lei", o que tem sido interpretado como lei em sentido formal e material, e não somente material, como ocorre no plano federal.

Quanto à vedação contida na Lei Complementar 173 e na própria LRF, não há também que se falar em "inconstitucionalidade", pois a lei municipal que altera o teto não concede qualquer reajuste a nenhum servidor, mas tem efeito indireto, ao reduzir a "redução" de salários mediante a aplicação do teto. Se lei municipal anterior tiver fixado a remuneração de servidores, como fiscais, procuradores etc., acima do teto vigente, o novo teto apenas passa a permitir que o que a lei anterior concedeu seja aplicado, mas não tem efeito geral, como reajuste.

E o que a LRF e sua irmã mais nova, a Lei Complementar 173, disciplinam é o aumento de vencimentos e subsídios dos servidores públicos e "membros de Poder", e não dos agentes políticos. A redação do artigo 8º da LCP 173 impede, até 31/12/2021, na hipótese de calamidade pública reconhecida pelo Poder Legislativo, "conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública".

Ocorre que essa lei, sim, é claramente inconstitucional, não somente por invadir a prerrogativa dos entes subnacionais, como por negar vigência à própria Carta Magna, no que prevê o direito à correção inflacionária. Mas o STF ainda não se pronunciou sobre isso.

A vedação contida no atual artigo 21, II, da LRF, que considera "nulo de pleno direito" o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato do titular de poder ou órgão, refere-se a ato administrativo, e não a lei em sentido formal e material.

Já o inciso III, ao considerar nulo o "ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão", não se aplica ao caso, pois não se trata de reajuste "parcelado", mas à vigência do novo subsídio.

E quanto ao inciso IV, que considera nula a aprovação, a edição ou a sanção, por chefe do Poder Executivo, por presidente e demais membros da mesa ou órgão decisório equivalente do Poder Legislativo, por presidente de tribunal do Poder Judiciário e pelo chefe do Ministério Público, da União e dos Estados, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, quando resultar em aumento da despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo, ou resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo, tampouco se aplica ao caso da fixação de novo valor a título de subsidio, que, por definição constitucional, é o teto remuneratório no município. Não se trata quer de alteração de remuneração de qualquer cargo efetivo ou carreira, e as condições subsequentes (resultar em aumento de despesa com pessoal) são expressamente vinculadas ao conteúdo da lei (plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público). Nenhuma dessas condições está presente no caso.

Além disso, a Prefeitura de São Paulo, até outubro deste ano, teve receitas correntes líquidas de R$ 49,5 bilhões e uma despesa total com pessoal e encargos de R$ 18,1 bilhões, comprometendo com essa despesa 36,6% de sua receita líquida. A LRF fixa como limite máximo 50%, ou seja, o novo subsídio do prefeito, ainda que tenha reflexos sobre a remuneração de parcela dos servidores, está muito longe de afetar a situação fiscal do município.

Por outro lado, a Lei Orgânica do Município de São Paulo prevê no seu artigo 14, VI, que compete privativamente à Câmara Municipal "fixar, por lei de sua iniciativa para viger na legislatura subseqüente até 30 (trinta) dias antes das eleições, os subsídios do Prefeito, Vice-Prefeito, Secretários Municipais e Vereadores" e "respeitadas as disposições dos artigos 37, X e XI, 39, §4º e 57, §7º, da Constituição Federal", considerando-se mantido o subsídio vigente, na hipótese de não se proceder à respectiva fixação na época própria, atualizado o valor monetário conforme estabelecido em lei municipal.

Assim, a LOM de São Paulo homenageia o princípio da revisão geral, duplamente, e prevê que, mesmo sem a fixação de novo subsídio, o seu valor deve ser atualizado monetariamente.

Embora tenha tido o cuidado de afastar a aplicação do novo "teto" no inconstitucionalmente fixado período de "defeso" da Lei Complementar 173, contornando, ainda, qualquer óbice quanto ao igualmente inválido artigo 21 da LRF, o reajuste concedido apenas fixa novo valor que considera uma correção menor do que a inflação verificada desde 2012, quando foi definido o valor ainda em vigor (R$ 24.117,62). O menor dos índices de inflação apurado, acumulado desde então, elevaria o subsídio do prefeito para R$ 38.125,13, mas por força do artigo 37, XI, da CF, o valor fixado observou o limite de 90,25%, que é o teto aplicável a todos os servidores estaduais (subsídio dos desembargadores).

Esgrimir a Constituição requer alguns cuidados. Não se pode usar a Carta Magna, desrespeitada diuturnamente quando convém aos governos e seus apoiadores, economistas ou não, como uma "ameaça" contra ela mesma. Interpretar o sistema com serenidade, sina ira et studio, é imperativo.

O sistema constitucional, já complexo, vem sendo deturpado por emendas mal construídas, como a EC 19/98, e a recente EC 103/2019 — a "reforma" da Previdência. Essa anarquia produzida pelos "reformistas-fiscalistas" não requer o auxilio luxuoso dos que interpretam equivocadamente o sistema para gerar ainda mais confusão.

Buscar argumentos contra o aumento do subsídio não demanda usar o "terrorismo jurídico" dos que defendem o fiscalismo acima de tudo, e o mercado acima de todos. Ser contra o aumento do subsídio é uma posição política, mais do que administrativa ou econômica, num contexto de grave crise fiscal que congela o salário da esmagadora maioria dos agentes públicos, e em que o aumento desse subsidio pode até ser visto como privilégio, quando baseado em reposição de perdas inflacionária que atingiram a todos os servidores, e não somente o prefeito e seus secretários.

Mas, se o debate é "jurídico", inconstitucionalidade na aprovação da lei paulista não há, a não ser a omissão que comete ao protelar a sua vigência e ter alcance limitado a agentes políticos.

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