retrospectiva 2020

O que vimos neste ano no Direito da Arte e o que esperar de 2021

Autores

  • Marcílio Franca

    é membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam Holanda) da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul docente da Universidade Federal da Paraíba ex-professor visitante das faculdades de Direito das Universidades de Pisa Turim e Ghent pós-doutor em Direito no Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba.

  • Inês Virgínia Soares

    é desembargadora no TRF-3 doutora em Direito pela PUC-SP pós-doutora em Estudos da Violência pela USP autora de publicações nas áreas de patrimônio cultural e direitos humanos e colíder do grupo de pesquisa Arqueologia da Resistência.

29 de dezembro de 2020, 10h04

A safra de efemérides culturais de 2020 era enorme: os 250 anos de Beethoven, os centenários de Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Federico Fellini, os 40 anos sem Nelson Rodrigues, os cem anos de falecimento de Modigliani, os 500 anos da morte de Rafael, os 70 anos da tevê brasileira, os 25 anos da Convenção Unidroit de 1995, os 50 anos da Convenção Unesco de 1970 e os 20 anos do Decreto 3.351/2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais Imateriais.

Nada disso pôde ser relembrado como havíamos previsto, por causa do pandêmico pandemônio que assolou o mundo a partir de meados de fevereiro. De todo modo, com força e criatividade chegamos ao final do ano. É hora de um balaço.

A vida vem em ondas num indo e vindo infinito
A lembrança desta pandemia vai perdurar, sem dúvida, em meio às famílias, mas também em espaços públicos, com os memoriais edificados no Brasil e no exterior. No Rio de Janeiro, houve a inauguração de um monumento em aço oxidado, com 39 metros de comprimento e pesando quase três toneladas, batizado de "Memorial In-finito", de autoria do coletivo Crisa Santos Arquitetos. Sua instalação dentro do Cemitério da Penitência, no bairro do Caju, com espaço para inscrição de quatro mil nomes, chama atenção. Afinal, é óbvio ou inusitado lembrar das vidas perdidas para a Covid-19 — e homenageá-los com um monumento — no mesmo local em que seus restos mortais já estão depositados? O work in progress, com a possibilidade de inserção de novos nomes de falecidos, seria uma forma de dizer um basta para as mortes ou uma aceitação resignada do desastre sanitário?

Outras iniciativas foram marcadas pela transitoriedade e pelo viés educativo/conscientizador: em muitas cidades, máscaras foram colocadas em monumentos existentes, estátuas de dinossauros e até em grutas. Iniciativas muito interessantes de memoriais virtuais surgiram e prosperaram.

Tudo que se vê não é
Um fenômeno cultural que ganhou força mundo afora em 2020 foi o da "arte nas janelas", em que balcões, sacadas, varandas e terraços de prédios transformaram-se em palcos e tribunas para uma vizinhança ávida por acesso à cultura ao vivo.

O cotidiano virtualizou-se. Nos meios jurídicos, ao converter plenários e salas de audiência em reuniões via Meet ou Zoom, a e-jurisdição, como num samba de Noel, instalou desde logo um debate cultural: com que roupa eu vou?

O isolamento social tirou o público dos teatros, óperas e casas de espetáculos e levou os shows, números artísticos e apresentações para o lar das pessoas em um novo formato, as lives. A atmosfera caseira e intimista mostrou Ivete Sangalo de pijama, na "Live das Lives" de 2020, flagrou uma operação policial no meio de um pagode e exibiu uma bebedeira do sertanejo Gustavo Lima, que resultou em intervenção do Conar contra ações publicitárias de bebida alcóolica.

Nas produções cinematográficas, vale a pena recordar dois thrillers produzidos antes da pandemia, mas que estrearam apenas este ano no país: "The Burnt Orange Heresy" e "Queen & Slim". O primeiro filme, além de marcar a volta de Mick Jagger ao cinema, é puro art law. O segundo assinala a estreia da diretora negra Melina Matsoukas e é um prenúncio das tensões raciais nos Estados Unidos, que explodiriam depois do assassinato do negro George Floyd por policiais brancos.

Em razão de protestos ligados ao movimento Black Lives Matter, na sua Bristol natal, Banksy chegou a propor uma nova ocupação ao um pedestal vazio, após a retirada de uma estátua do traficante de escravos Edward Colston por manifestantes. O monumento foi jogado no rio e, cerca de um mês depois, uma estátua da ativista Jen Reid, que liderou a derrubada do antigo monumento, ocupou o pedestal.

O episódio renderia discussões instigantes sobre direito à memória coletiva, não apenas sob a ótica da disputa de narrativas que está por trás de cada monumento, mas também pela própria proposta para ocupação do espaço, com a escolha de uma pessoa viva para ser homenageada, sem maior debate com a população e sem a espera do assentamento da memória. Numa outra concepção igualmente instigante e com suporte teórico, a ideia de Bansky era que se retratasse em bronze o instante em que a estátua foi derrubada pela multidão.

Nem o padre São José de Anchieta ficou incólume. A lista de obras pichadas, removidas ou danificadas é longa e sua distribuição geográfica, pródiga.

Há tanta vida lá fora, aqui dentro sempre
No nosso balanço de 2019, havíamos antecipado que as mudanças climáticas ocupariam um lugar de destaque na agenda cultural em 2020. A tendência se confirmou e a relatora especial das Nações Unidas para os direitos culturais, Karima Bennoune, apresentou à Assembleia Geral da ONU, em outubro de 2020, um relatório minucioso sobre "climate change, culture and cultural rights". Em 2021, a Comissão de Direito Internacional da ONU continua a aprofundar esse tema também.

2020 foi um ano para lembrar o status constitucional do direito de despedida dos mortos, como liberdade e Direito Cultural. Além das perdas de pessoas referenciais na área cultural para a Covid-19, a doença também trouxe experiências de dor, vividas coletivamente, que afetaram o exercício do luto.

A imposição do distanciamento social e a obrigação do isolamento ainda trouxeram danos a outros bens que compõem o patrimônio imaterial. Festas populares, procissões, celebrações, fazeres não puderam ser realizados em 2020, a começar pelo tradicional São João nordestino, com enorme impacto social e econômico.

Tudo muda o tempo todo no mundo
Os museus sofreram muito nos últimos meses. Durante os períodos de lockdown, com segurança reduzida, foram alvo de ladrões. Preocupados com a migração da criminalidade organizada para os delitos com obras de arte, o Conselho Internacional de Museus (Icom) e a Interpol emitiram um conjunto de recomendações para reforçar a segurança das coleções.

Na retrospectiva de 2019, havíamos mencionado a Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus (Icom), realizada em setembro de 2019, em Kyoto, Japão, na qual houve uma discussão acalorada e certa polêmica em torno de uma nova conceituação dos museus. A pandemia chegou para mostrar que os conceitos dos equipamentos culturais passam pelo uso de novas tecnologias e que a virtualização é um elemento essencial para a participação e integração efetiva e real do público e dos artistas.

Nesse panorama de crise econômica, os debates em torno do deaccessioning certamente serão recorrentes em 2021. A Associação de Diretores de Museus de Arte (AAMD) chegou a rever a sua tradicional posição contra a alienação de peças de uma coleção museológica e emitiu uma nota admitindo a situação.

Neste ano, uma luta de décadas do povo negro teve uma vitória importante com a transferência de um acervo de mais de 500 peças sagradas de religiões afro-brasileiras, que formavam uma seção chamada "museu da magia negra", dentro do Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, para o Museu da República, considerado, pelos religiosos do candomblé e umbanda, um destino condizente com o valor do conjunto de objetos e com a história de luta e resistência cultural.

No final de outubro, a Polícia Federal deflagrou a "Operação Santana Raptor", que investiga o tráfico de fósseis na região da Chapada do Araripe, sul do Ceará. A região é especialmente famosa entre paleontólogos por sua enorme variedade de fósseis bem preservados e, há anos a PF e o Ministério Público Federal combatem ali quadrilhas especializadas no tráfico internacional de fósseis, que fazem chegar aos mercados norte-americano, europeu e japonês bens culturais muito valorizados.

Em novembro, a polícia alemã apreendeu cerca de 60 fósseis ilicitamente extraídos da Chapada do Araripe, avaliados em cem mil euros, que seriam comercializados online pela empresa alemã Fossils Worldwide.

Há poucos dias, uma nova controvérsia originou-se a partir de um fóssil encontrado na Chapada do Araripe, em 1995. Um artigo científico publicado na revista Cretaceous Research no dia 13 de dezembro dava conta de que aquele esqueleto era, na verdade, a mais nova espécie de dinossauro brasileiro, o cearense Ubirajara jubatus, de 110 milhões de anos. A comunidade científica nacional prontamente acusou os autores do estudo (oriundos da Alemanha, Reino Unido e México) de terem retirado ilegalmente o fóssil do Brasil com base em um documento sem valor, pedindo ao Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe, Alemanha, a sua repatriação. É de se antever uma longa batalha judicial e diplomática, cujo fim é imprevisível.

Como uma onda no mar
O último relatório Hiscox Online Art Trade identificou um boom dos leilões online: as gigantes Christie's, Sotheby's e Phillips revelaram um aumento de 436% de suas operações digitais. Os resultados preliminares da Sotheby’s indicam US$ 3,5 bilhões em vendas em leilão e mais US$ 1,5 bilhão em vendas privadas.

No Brasil, dois leilões, em particular, movimentaram o mercado multiplataforma em 2020 e chamaram a atenção de juristas, experts e curiosos. Em setembro, com direito até mesmo a transmissão ao vivo pela televisão a cabo, sob o martelo do leiloeiro James Lisboa, foi disputada a Cid Collection, ligada à falência do Banco Santos. O ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira e o Museu de Arte Contemporânea da USP ainda tentaram, sem sucesso, impedir o leilão. Com o dólar em alta, os arrematantes certamente fizeram aquisições bem abaixo dos preços internacionais de artistas como Frank Stella e Cildo Meireles.

Um dos destaques do leilão do Banco Santos foi um estudo de Tarsila do Amaral para o seu quadro Operários (1933), arrematado por R$ 1,3 milhão. Às vésperas de comemorarmos o centenário da Semana de Arte Moderna (em 2022), este foi, definitivamente, um ano especial para a obra de Tarsila: o seu autorretrato cubista "A Caipirinha" foi arrematada por R$ 57,5 milhões, no outro leilão mais comentado do ano, depois de uma disputa judicial envolvendo um empresário alvo da "lava jato" e uma dúzia de bancos credores.

Em Berlim, a prestigiosa coleção Mário Calábria, embaixador do Brasil na antiga República Democrática Alemã entre 1978 e 1985, foi leiloada com sucesso pela casa Grisebach nos primeiros dias de dezembro. Ver as peças da coleção Calábria, pode ser um bom motivo para assistir "Nunca Deixe de Lembrar", recém chegado ao streaming, filme do diretor alemão Florian Henckel von Donnersmarck, sobre a arte e os artistas durante os regimes nazista e comunista na Alemanha.

Não adianta fugir nem mentir
No âmbito legislativo, o assunto mais comentado do ano quanto à política e gestão culturais foi, sem dúvida, a Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020), que permitiu a transferência de R$ 3 bilhões da União para Estados e municípios executarem ações emergenciais voltadas ao setor cultural, um dos mais afetados pela pandemia do Covid-19.

Em agosto, o deputado federal Felício Laterça (PSL-RJ) apresentou o Projeto de Lei 4293/20, que altera a Lei de Crimes Ambientais para tipificar o crime de falsificar assinatura em obra de arte, punindo-o com pena de um a três anos de reclusão. Quem vende, leiloa ou adquire obra falsificada, sabendo que não é original, recebe a mesma pena. Segundo a proposta, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) deve manter relação de artistas nacionais tombados que servirá de referência para punir eventuais falsificações.

Vale mencionar também a Medida Provisória nº 1.012, do último dia 1º, pela qual o presidente da república prorrogou, por dois anos, a vigência do Plano Nacional de Cultura.

Na França, após anos de debates, a Assembleia Nacional aprovou, em 17 de dezembro, uma lei sobre a restituição de um conjunto de bens culturais à África. São 26 esculturas, hoje no Museu Quai Branly, em Paris, que voltarão ao Benin, e uma espada (emprestada do Hospital do Exército da França ao Museu das Civilizações Negras em Dacar), que será repatriada permanentemente para o Senegal.

Tudo passa, tudo sempre passará
Não é necessário muito esforço para antever que uma das apostas para 2021 é a maior valorização da cultura negra, de sua religião e de sua história, com mais discussão sobre ocupações dos espaços públicos, renomeação de ruas, praças etc. e implementação de projetos museológicos e exposições, inclusive com intersecção entre gênero e raça.

Os embates jurídicos em torno do leilão da Cid Collection (Banco Santos) e, mais recentemente, da coleção do doleiro Dário Messer mostraram como é necessária uma melhor regulação das coleções de arte e, em particular, do papel dos museus públicos como fiéis depositários de obras de arte. A Unidroit já sinalizou que o tema das coleções seguirá em sua agenda de trabalhos, dada a sua importância.

Outro tema da agenda jurídico-artística que ganhará força nos próximos meses é, certamente, o da expertise de obras de arte. Uma oferta maior exigirá cuidados e cautelas, reforçando a importância de experts e a exigência da due diligence. Nesse mesmo cenário, os programas de compliance das empresas devem abraçar com maior frequência a temática das obras de arte.

No segundo semestre de 2021, o Brasil voltará a ocupar a presidência pro tempore do Mercosul e um dos temas da agenda será, certamente, a proteção do patrimônio cultural regional. Já ficou decidido que Ouro Preto (MG) sediará o III Seminário Internacional sobre Patrimônio e Turismo no Mercosul (III Sempat). O nosso bloco regional é pioneiro em reconhecer com um selo oficial a importância do patrimônio material e imaterial vinculados à identidade dos povos do Cone Sul.

Se toda essa retrospectiva foi embalada até aqui pela composição "Como Uma Onda", de Lulu Santos e Nelson Motta, podemos continuar com os mesmos compositores para encerrar esse texto com um pedacinho de "A Cura": "Enquanto isso, não nos custa insistir / Na questão do desejo, não deixar se extinguir / Desafiando de vez a noção / Na qual se crê que o inferno é aqui / Existirá / E toda raça então experimentará / Para todo mal, a cura". Que venha 2021!

Autores

  • Brave

    é procurador-chefe da força-tarefa do patrimônio cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba, professor de Direito da Arte na Universidade Federal da Paraíba, pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália), membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association e árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam, Holanda).

  • Brave

    é desembargadora federal no TRF da 3ª Região (SP), doutora em Direito pela PUC-SP, pós-doutora no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), especialista em Direito Sanitário pela UnB e autora do livro "Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro' (editora Forum).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!