Justiça Tributária

O Supremo Tribunal Federal e o impacto das renúncias fiscais estaduais

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

28 de dezembro de 2020, 8h02

Spacca
A coluna de hoje, última do ano, é curta e objetiva. Certos assuntos prescindem de muitas palavras, e todos sabemos que as decisões (judiciais, administrativas, pessoais etc.) devem seguir o texto das normas jurídicas, sob pena de anarquia. Sabemos também que as palavras são imprecisas e vagas, e mesmo quando reunidas em frases, sua imprecisão permanece, embora reduzida. O problema se potencializa quando devem ser lidas de forma sistemática, o que deve ser o padrão nas análises jurídicas.

O Supremo Tribunal Federal deve ser o guardião da Constituição; não pode ser seu dono. Isso implica em afirmar que seus membros devem se submeter ao que nela consta, não só quanto às regras de organização, mas também quanto às de conduta. Pode até ser feita alguma espécie de interpretação extensiva, embora limitada, o que diverge do conceito de interpretação criativa. Porém, sempre estará limitado ao texto da Constituição.

Os dois parágrafos escritos acima podem ser resumidos ao se afirmar que: (1) o STF deve obediência à Constituição; (2) a interpretação pode até ser extensiva, mas não criativa; e (3) não se interpreta o Direito em fatias, como um salame, mas de forma sistemática.

Tudo isso para dizer, com todo o respeito, que o STF errou na interpretação que vem fazendo do artigo 113 do ADCT, o que se cristalizou na ADI 6.074, tendo por relatora a ministra Rosa Weber, cujo voto arrostou a maioria da corte, com exceção dos ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, que dela divergiram.

Foi lido pela maioria o artigo 113 do ADCT, como uma fatia e não de forma sistemática. Vamos ao texto:

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Lida isoladamente essa norma contempla todos os entes federados, pois nela nenhum é excepcionado. Este foi o posicionamento da douta maioria.

Todavia, a interpretação jurídica deve ser sistemática. O artigo 113 do ADCT foi acrescido à Constituição pela Emenda 95, que introduziu os artigos 106 a 114 no ADCT, dispondo o que segue, de forma textual, com grifos apostos:

Art. 106. Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 107 a 114 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

A partir desta norma se pode constatar que o artigo 113 do ADCT está dirigido apenas a um dos entes federativos, a União, e não à toda a federação.

O caso concreto envolve renúncias fiscais de IPVA em Roraima, que foram declaradas inconstitucionais com base no artigo 113 do ADCT. A reportagem desta ConJur explica bem o julgamento e inclusive traz a íntegra dos votos.

Em breve resumo, a ministra relatora ancorou seu entendimento na ADI 5.816, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, já analisada em outra coluna, que inclusive serviu de amparo para o voto dissidente do ministro Edson Fachin. A relatora também usou como precedente a ADPF 662, relatada pelo ministro Gilmar Mendes, sendo que, neste caso, o ato atacado provinha do âmbito federal de governo. Sem precisar de maiores explicações, constata-se a inadequação do segundo precedente invocado para o caso em apreço, pois diverso o âmbito federativo.

Não resta dúvida que são necessárias regras financeiras mais precisas para os estados, mas, infelizmente, isso não foi aprovado pelo Congresso Nacional, e, portanto, não consta da Constituição, diversamente do que vem sendo interpretado pelo STF.

Temo essas leituras apressadas que vêm sendo feitas pelo STF acerca de sua própria jurisprudência. Viu-se algo semelhante na relativização do princípio da reserva legal tributária, já comentado.

A pressa é inimiga da perfeição, e muitas vezes, sob o pretexto de julgar rápido, julga-se mal. O risco é a formação de precedentes tortos, que servirão para diversos outros julgamentos, acabando por consolidar visões deturpadas do que está escrito nas normas jurídicas, que, bem ou mal, devem ser respeitadas, sob pena de anarquia, como acima mencionado.

É preciso redobrar as atenções em 2021.

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