Público x Privado

O feminicídio, a dignidade da pessoa humana e o rule of law

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28 de dezembro de 2020, 20h47

A virada de um ano para outro é sempre um tempo de comemoração. Comemorar a superação das dificuldades sofridas, comemorar os sucessos alcançados, comemorar as promessas e as novas oportunidades que podem surgir no ano que se iniciará. É a promessa (mesmo que simbólica) de que tudo poderá melhorar, especialmente nós mesmos.

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Mas neste ano de 2020 presenciamos diversos eventos que demonstram que o Brasil precisa superar muito as suas deficiências quando se trata de dignidade humana, igualdade e respeito humano (uso a expressão respeito, pois o desrespeito foi o que demonstraram os fatos ocorridos).

Primeiramente, a deputada Isa Penna sofre assédio pelo deputado Fernando Cury em frente às câmeras do Plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). A seguir, um juiz, também do Estado de São Paulo, desdenha da aplicação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 2006) afirmando em uma audiência que "uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém bate em ninguém de graça". Por fim, os trágicos feminicídios ocorridos no final do ano, com seis mulheres mortas por ex-maridos/companheiros. Desses casos, o que acabou se destacando foi o da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, do Estado do Rio de Janeiro, brutalmente assassinada pelo ex-marido na frente das filhas.

A intensidade dessas tragédias obrigou até aqueles tradicionalmente negacionistas a manifestar repúdio e consternação. O Conselho Nacional de Justiça, mais proativo, indicou o apoio a projeto de lei que criminaliza o stalking (conduta de perseguir alguém insistentemente). Tramitam na Câmara do deputados pelo menos sete projetos desde 2009, tendo sido aprovado no último dia 10 um PL que criminaliza com pena de um a quatro anos de prisão a perseguição obsessiva (stalking). Atualmente tal prática é reprovada na Lei de Contravenções Penais, artigo 65, consistente na conduta de molestar ou perturbar a tranquilidade de alguém por acinte ou motivo reprovável, com uma pena de 15 dias a dois meses de prisão ou multa.

No meu sentir, dois fatos destacaram-se nessas tragédias. O primeiro foi que a conduta reprovável partiu não de pessoas ignorantes (no sentido substantivo e adjetivo da palavra), mas daqueles que compõem a elite da nossa sociedade e são plenamente cientes das leis que regem o nosso país. Um deputado estadual e um juiz não podem alegar ignorância substantiva da lei (ficando restritos ao sentido adjetivo da palavra).

O segundo fato que se destacou foi que a agressão contra as mulheres não só é disseminada, mas alcança todas as classes sociais e econômicas do Brasil. Não é possível mais querer negar a intensidade com que isso macula o nosso país, mesmo tendo uma Constituição com princípios e normas avançadas na fixação de direitos e garantias individuais, particularmente no que se refere ao da dignidade da pessoa humana.

Vale aqui registrar, no tema, a precisa declaração do ministro Gilmar Ferreira Mendes sobre as agressões contra as mulheres ocorridas neste final de ano.

"O gravíssimo assassinato da Juíza Viviane Arronemzi mostra que o feminicídio é endêmico no país: não conhece limites de idade, cor ou classe econômica. O combate a essa forma bárbara de criminalidade quotidiana contra as mulheres deve ser prioritário". 

No particular, mantendo em mente a tragédia ocorrida nos feminicidios noticiados, é importante destacar a fragilidade do nosso sistema institucional, em que "autoridades", sejam elas membros do Parlamento, sejam juízes, demonstram um descaso para com as nossas leis e valores jurídicos, comprovando que o rule of law (expressão que alcança não apenas a segurança jurídica, mas principalmente o seu pressuposto, que é o do respeito à lei) ainda é um objetivo longe de ser alcançado no Brasil.

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