direito civil atual

PLs podem causar prejuízos para a defesa coletiva dos consumidores

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28 de dezembro de 2020, 15h22

O propósito de atualizar a Lei da Ação Civil Pública, contido nos Projetos de Lei 4.441/2020 e 4.778/2020, é salutar e contempla aspectos interessantes que inovam o diploma normativo nº 7.347/85, que disciplina a temática. No entanto, existem sérias ameaças para a defesa coletiva dos interesses e dos direitos dos consumidores, bem como de diversos outros de natureza transindividual e individual homogênea. Na presente coluna, não se tenciona exaurir o conteúdo dos aludidos prospectos legislativos, mas tão somente abordar as regras que sobremaneira afetarão a tutela processual de uma multiplicidade de destinatários finais de bens que sofrem com as agruras mercadológicas. Práticas e cláusulas arbitrárias, que se repetem com frequência no plano fático, têm sido objeto de questionamento em um mesmo feito processual coletivo, beneficiando uma multiplicidade de pessoas. Contudo, desagradam aos agentes econômicos que pressionam por alterações normativas que serão tema desta abordagem. Dividir-se-á a análise em duas partes que versam sobre os seguintes pontos: as dificuldades enfrentadas pelos autores legitimados, para que continuem encetando medidas judiciais coletivas; e os efeitos da coisa julgada.

ConJur
A aprovação dos PLs, em epígrafe, causará óbices para que o Ministério Público permaneça desenvolvendo a sua missão de ingressar com ações civis públicas em prol dos consumidores [1]. Como é cediço, o parquet utiliza o inquérito civil como lastro de tais instrumentos e, de acordo com o artigo 20 do PL 4.778, não se considerará suficientemente motivada a sentença, "se baseada exclusivamente na apuração de fatos ocorrida no inquérito civil". Há uma ressalva quanto à sua efetividade no bojo do ato decisório, exigindo-se que seja realizado "mediante autorização judicial, com contraditório". Fulmina-se o aparato manejado pela instituição, que vem servindo de sustentáculo probatório e viabilizando que as medidas judiciais coletivas sejam alavancadas. Outro ponto que desvela a restrição indevida do labor ministerial encontra-se no dispositivo 30, parágrafo 6º, do mesmo aludido PL, segundo o qual o termo de ajustamento de conduta somente adquirirá validade por todo o território nacional se levado à homologação judicial, precedida de audiência pública.

Obstáculos para que os entes associativos, que congreguem consumidores ou demais interessados, possam manejar ações coletivas são vislumbrados naqueles projetos, fragilizando a atuação da sociedade civil organizada [2], ainda em estágio proemial no Brasil. O artigo 6º, inciso V, do PL 4.441, passa a impor a indispensável e prévia autorização estatutária ou assemblear como pressuposto de toda e qualquer medida deste jaez. Ademais, em consonância com o seu parágrafo 2º, incisos I a IV, foram estabelecidos requisitos destinados à aferição da legitimidade das associações civis, de modo similar ao sistema norte-americano. Serão observados, dentro outros, pressupostos de natureza material, temporal e procedimental. No que concerne aos primeiros, averiguar-se-ão o número de integrantes e a capacidade financeira necessária ao custeio das despesas processuais; quanto ao segundo, apurar-se-ão e o tempo de constituição e o grau de representatividade perante o grupo; por derradeiro, tornar-se-á obrigatório o exame do histórico na defesa judicial e extrajudicial. Nota-se um transplante de regras vigentes em outros países [3], mas que, no nosso, suscita uma análise cuidadosa, visto que a realidade do associativismo brasileiro não é a mesma que a de demais localidades. A dificuldade de agregamento dos sujeitos e da sua estruturação, bem como a carência de incentivos econômicos, são fatores que amenizam um facere profícuo nesta seara.

Ainda no espectro dos entraves que atingirão os entes legitimados na sua missão de zelar pela sociedade e pelos consumidores, o PL 4.441, no artigo 2º, parágrafo 1º, incisos I e III, propõe inaceitável modificação nos tradicionais conceitos de direitos difusos e individuais homogêneos. Não podendo ser apropriados individualmente nem identificados os seus titulares, os primeiros são denominados de "dessubstantivados", "sem dono" ou "esparsos" e ainda de interesses "de série", pois os seus portadores são desconhecidos [4]. Em razão dos sujeitos estarem distribuídos em coletividades ou segmentos sociais, que apresentam dimensões diferenciadas, a identificação destes não se faz cabível, daí resultando o caráter difuso [5]. Nessas situações, a vinculação entre os sujeitos envolvidos na questão deriva de circunstâncias fáticas e não se faz necessário um prévio liame jurídico. Ora, de modo distinto, o sobredito PL insere a exigência de que seja detectado "grupo composto por pessoas ligadas entre si por circunstâncias de fato".

Em determinadas situações fáticas, os interessados podem ser identificados e o bem jurídico perseguido repartido especificamente entre esses, sendo cabível a solução individual dos problemas. A ocorrência de uma origem comum e a homogeneidade constatadas viabilizam, no entanto, a discussão das questões conflituosas em conjunto. A economia processual justifica a reunião destes conflitos individuais em uma mesma lide, bem como a tentativa salutar de se evitar decisões antagônicas [6]. Foram, assim, tais interesses intitulados como individuais homogêneos, pois, admitem pacificação particularizada, mas derivam de um mesmo evento. Deve-se salientar que a origem comum não significa que tenham advindo de um fato ocorrido em um mesmo momento, pois não se exige unidade temporal, mas tão-somente identidade de evento. Entrementes, o PL 4.441 exige que um "núcleo de homogeneidade que justifique o tratamento conjunto", afetando instituto jurídico consolidado [7] e que contribui para se evitar a atomização de lides individuais que tanto assoberba a estrutura jurisdicional brasileira.

Novos requisitos da petição inicial concernente às ações coletivas passam a compor o rol do artigo 319 do Código de Processo Civil, competindo ao autor atender exigências de cunho informacional e documental, nos moldes do artigo 11, I a III, do PL 4.441. A especificação do grupo, "cujo direito se busca reconhecer e, quando possível, os critérios para identificação dos seus membros", é a primeira imposição. A demonstração das razões pelas quais "é um legitimado adequado para a condução do processo coletivo" consiste na segunda; e ainda deverá efetivar a juntada de certidão sobre a inexistência de medida judicial "com o mesmo pedido, causa de pedir e interessados registrada no cadastro de ações coletivas do Conselho Nacional de Justiça". Constituem providências interessantes que possibilitam melhor delimitar o teor, a amplitude e as consequências destes feitos, porém a mera exposição constante nos pressupostos fáticos atinentes já atende aos dois aspectos acima mencionados. Quanto à segunda determinação, para que possa ser atendida, torna-se crucial que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público tornem efetiva a Resolução Conjunta nº 02/2011 sobre a implementação do cadastro das ações coletivas. Hodiernamente, a despeito de ter decorrido quase uma década, não se consegue pesquisá-las e identificá-las de modo rápido e facilitado, lançando-se apenas o nome do fornecedor na busca [8]. Aguarda-se também a concretude de duas relevantes deliberações do CNJ, quais sejam: a Resolução nº 339/2020 e a Recomendação nº 76/2020.

Em sede das ações coletivas que tratem de questões de natureza consumerista, o artigo 87 do CDC abdicou da regra geral, deixando de exigir o adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas. O artigo 116 do CDC, em seguida, alterou o dispositivo 18 da Lei nº 7.347/85, estendendo o benefício para os autores de todas as demandas coletivas, não o mantendo restrito às lides consumeristas. Atualmente, nenhum dos entes legitimados para a tutela coletiva, independentemente da sua natureza, quer de Direito público ou privado, está obrigado a antecipar valores para as atividades processuais [9]. A mens legis dessa previsão normativa foi incentivar a tutela processual coletiva, facilitando-a, máxime por dois principais motivos: a substituição processual exercida pelos entes e a defesa de múltiplos interesses e direitos [10]. Ambos PLs, em comento, eliminam esta regra e ordenam a aplicação das normas "relativas às custas e à sucumbência do Código de Processo Civil". Nessa senda, a atuação dos legitimados nos feitos processuais coletivos ficará ainda mais refreada; o que se congraça com a intenção espúria dos litigantes habituais no polo passivo.

No campo das ações coletivas, a coisa julgada está disciplinada no artigo artigo 103 do CDC e, diante da natureza dos interesses e direitos tutelados, vai se espargir. Com relação aos interesses ou direitos difusos e coletivos, havendo julgamento improcedente da medida judicial coletiva por insuficiência de provas, qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de novos elementos probatórios. Insculpiu-se tal regra em virtude das prováveis dificuldades dos entes legitimados para conseguirem reunir provas sobre a matéria em apreço- é a chamada coisa julgada secundum eventum probationis. Se as provas forem concebidas como satisfatórias e não proporcionarem o julgamento favorável da demanda, sendo prolatada sentença reconhecendo a sua improcedência, ulterior ação, com o mesmo objeto, ainda que intentada por outro legitimado, não poderá ser intentada.

Caso aprovado o PL 4.441, a fragilidade probatória impedirá que seja intentada nova medida judicial, eis que, de acordo com o seu artigo 25, § 1º, a coisa julgada coletiva "também se forma quando a improcedência decorrer de insuficiência de prova". Outrossim, dispõe o § 2o que somente admite-se que seja reproposta, fundada em prova nova, "se demonstrar que esta não poderia ter sido produzida no processo anterior e que tem aptidão para, por si, reverter o resultado da decisão". A demonstração do caráter transindividual das lides não tem sido tarefa de fácil consecução pelos legitimados em decorrência da exígua efetividade do quanto disposto no artigo 7º da Lei nº 7.347/85, não se comunicando frequentemente, ao Ministério Público, as questões repetitivas. A melhoria dos recursos materiais e humanos disponíveis para a coleta destes dados e a real implementação do cadastro, acima mencionado, são fundamentais à consecução satisfatória desta tarefa. As breves digressões lançadas pressupõem um agir conjunto dos entes, que manejam o processo coletivo em benefício dos consumidores, com o fito de que as atualizações normativas prejudiciais não venham a ser acatadas.


[1] Cf.: ALVES, João. O Ministério Público e a Defesa do Consumidor. In: PINTO MONTEIRO, António de Matos (Dir.). Estudos de Direito do Consumidor. Coimbra: Centro de Direito do Consumo, nº 7, 2005, p. 457 a 474.

[2]Cf.: Urbinati, N. & Warren, M. (2008). The concept of representation in contemporary democratic theory. Annual Review of Political Science, 11: 387-412.  Warren, M. (2001). Democracy and association. Princeton, NJ: Princeton University Press, 89.

[3] WATSON, Alan. Legal transplants (an approach to comparative law). 2. ed. The University of Georgia Press: Georgia, 1993, p. 78.

[4] VILLONE, Massimo. La collocazione istituzionale dell'interesse difuso. La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato. Milão: Giuffrè, 1976, p. 73.

[5] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 67 e ss.

[6] GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil pública refém do autoritarismo. Revista de Processo 96. São Paulo: Editora: Revista dos Tribunais, out./dez./1999, p. 236-247. TARUFfO, Micheli. Intervento. In Le azioni a tutela di interessi collettivi: Atti del convegno di studio (Pavia, 330-336), giugno 1974). Padova: Cedam, 1976, p. 334-335.

[7] VERBIC, Francisco. Procesos Colectivos. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2007, p. 369.

[8] Dispõe o artigo 60 do citado PL que "o Conselho Nacional de Justiça fará relatórios anuais sobre as ações civis públicas, os compromissos de ajustamento de conduta e os demais acordos coletivos, com utilização de taxonomia unificada, a ser definida conjuntamente com o Conselho Nacional do Ministério Público".

[9] GIDI, Antônio. Las acciones colectivas y la tutela de los derechos difusos, colectivos e individuales en Brasil. Un modelo para países de derecho civil. Cidade do México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, Universidad Nacional Autónoma de México, 2004,  p. 09-11.

[10] Antônio Herman Vasconcellos e Benjamin aduz que "a única hipótese de condenação dos autores, na hipótese de improcedência das ações coletivas parece-nos evidente, configura-se apenas quando estes tiverem agido com comprovada má-fé na interposição ou desenvolvimento da demanda". MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos e; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 1635.

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