Observatório Constitucional

Li e jurisprudência sobre autorização emergencial para vacina contra a Covid

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28 de dezembro de 2020, 13h21

Após quase um ano de enfrentamento da pandemia da Covid-19, começam a surgir os resultados das pesquisas científicas sobre vacinas capazes de prevenir e combater um vírus ainda pouco conhecido. As notícias dos primeiros imunizantes sendo aplicados em alguns países, embora apenas com autorização de uso emergencial, trazem esperança e, ao mesmo tempo, causam ansiedade na população brasileira.

Tentando se antecipar às demandas sociais e científicas decorrentes da crise sanitária, o Congresso Nacional providenciou uma legislação especial com medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, que soma-se à legislação sobre ações e serviços de saúde, bem como à legislação sobre vigilância sanitária já existente.

Natural, portanto, que diante de dificuldades novas, em cenário mundial inédito, surjam dúvidas quanto às normas que deverão ser observadas por nossos agentes públicos ao adotarem medidas de combate à pandemia, de modo a desencadear a judicialização da matéria, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal. Por sorte, a judicialização da saúde é matéria muito conhecida do STF, o que possibilitou a Corte analisar com grande brevidade as ações propostas neste contexto de emergência sanitária.

As últimas sessões de julgamento da Corte esse ano, inclusive, destinaram-se à análise da constitucionalidade da Lei 13.979, especificamente em relação às medidas relacionadas à vacinação contra a Covid-19.

Embora a intenção das ações diretas fosse discutir a constitucionalidade ou não da norma que possibilita a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (art. 3o., III, d), antecipando uma discussão que só será útil quando o país tiver vacinas disponíveis em número suficiente para, de forma gratuita, imunizar toda a população (ou pelo menos para a parcela da população que as autoridades sanitárias entenderem que devam ser vacinadas), o ponto mais importante da decisão tomada pelos Ministros se refere à interpretação dada ao art. 3o., VIII e Parágrafo 7o-A, da referida lei (autorização excepcional e temporária para importação e distribuição de vacinas sem registro na Anvisa).

A resposta da Corte foi muito clara e assertiva ao declarar a constitucionalidade da norma impugnada, lembrando que é medida necessária não só para assegurar a saúde individual como a saúde coletiva, e que sua compulsoriedade insere-se no contexto normativo já existente, que prevê a possibilidade de vacinação de caráter obrigatório no âmbito do Programa Nacional de Imunização – PNI (lei), com conseqüências indiretas previstas em lei nos casos de negativa de imunização.

No entanto, o ponto mais importante para o momento presente, em que se negocia a aquisição de vacinas em uso na Europa e nos EUA, encontra-se nos debates entre os Ministros, quando especificaram o alcance da norma que permite a autorização excepcional e temporária para importação e distribuição de vacinas já autorizadas pela FDA, pela EMA, pela PMDA ou pela NMPA. Explico a razão.

As vacinas que estão em desenvolvimento no país, a da Oxford (pela Fiocruz) e a da Sinovac (pelo Instituto Butantã), ainda não solicitaram autorização de uso emergencial ou registro à Anvisa ou a qualquer outra autoridade sanitária internacional. Os imunizantes que estão sendo aplicados por várias nações, da Pfizer e da Moderna, não possuem registro (autorização definitiva) em nenhuma autoridade sanitária, tendo recebido, apenas, autorização para uso emergencial pelas autoridades sanitárias dos países em que são produzidos e em que estão sendo distribuídos.

Assim, enquanto esperamos as vacinas em produção no país concluírem suas etapas de científicas para solicitação de registro (quer definitivo, quer emergencial), resta ao país tentar adquirir as que se encontram em fase mais avançada. O Ministro da Saúde, inclusive, informou à Câmara dos Deputados o interesse do governo e a existência de negociações para a aquisição da vacina da Pfizer, mas colocou como empecilho para a conclusão da compra e início da vacinação a necessidade de autorização da Anvisa. No mesmo sentido, o Presidente da República mencionou que entre o governo e a vacina existe a Anvisa.

Aqui, portanto, a linguagem do direito, da medicina e da ciência precisarão se encontrar, de modo a dar segurança aos agentes públicos na tomada de suas decisões e, ao mesmo tempo, desburocratizar o processo administrativo em razão da urgência que a pandemia impõe.

Como sabemos, a legislação sanitária brasileira é bem rigorosa. A Lei 9.782/99 prevê competir à Anvisa, entidade administrativa independente (art. 4o), conceder registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação (art. 7o., IX) e proibir fabricação, importação, armazenamento, distribuição e comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde (art. 7o., XV). Por sua vez, a Lei 6.360/76 determina que nenhum produto de que trata, inclusive os importados, possam ser industrializados, expostos à venda ou entregues ao consumo, antes de registrados na Anvisa. Dessa forma, para que o Ministério da Saúde incorpore uma nova vacina no PNI seria necessário o registro na Anvisa, mesmo que o produto fosse apenas produzido fora do país e tivesse registro sanitário na origem.

É verdade que a própria lei 9782/99 prevê uma exceção. Dispõe o art. 8o, Parágrafo 5o:

“A Agencia poderá dispensar de registro os imunobiológicos, inseticidas, medicamentos e outros insumos estratégicos quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas.”

No entanto, considerando que a ANVISA tem sido questionada judicialmente pela demora nos processos de registro no país, o Poder Legislativo, ao fixar normas emergenciais de enfrentamento à pandemia, previu a possibilidade de autorização excepcional e temporária para importação e distribuição de insumos:

“Art. 3o. Para enfrentamento da emergência de saúde de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

(…)

VIII – autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área da saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na ANVISA considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que:

a) registrados por pelo menos 1 (uma) das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países:

1. Food and Drug Administration (FDA);

2. European Medicines Agency (EMA);

3. Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA);

4. National Medical Products Administration (NMPA);

(…)

Parágrafo 7o-A. A autorização de que trata o inciso VIII do caput deste artigo deverá ser concedida pela ANVISA em até 72 (setenta e duas horas) após a submissão do pedido à Agencia, dispensada a autorização de qualquer outro órgão da administração pública direta ou indireta para os produtos que especifica, sendo concedida automaticamente caso esgotado o prazo sem manifestação.

Parágrafo 7o.-B O medico que prescrever ou ministrar medicamento cuja importação ou distribuição tenha sido autorizada na forma do inciso VIII do caput deste artigo deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal que o produto ainda não tem registro na ANVISA e foi liberado por ter sido registrado por autoridade sanitária estrangeira.”

Ocorre que a redação das normas em questão poderia levar a seguinte interpretação: considerando que o inciso fala em “autorização excepcional e temporária” e a alínea fala em “registro”, a dispensa de autorização para uso emergencial ou registro na Anvisa só poderia ocorrer nos casos de vacinas registradas (com autorização definitiva para industrialização, comercialização e uso) por autoridade sanitária estrangeira, o que não se tem notícia de ter ocorrido até o momento. Assim, caberia a indústria solicitar o registro na ANVISA (conforme art. 16 da Lei 6360/76) ou a autorização para uso emergencial, recentemente regulamentada pela Resolução 445/2020, para que a vacina possa ser adquirida pelo Ministério da Saúde e distribuída pelo SUS.

Parece que esse tem sido o entendimento seguido pelo Ministro da Saúde que, segundo divulgado pela imprensa, teria solicitado ao Presidente da Pfizer que entrasse com pedido de autorização para uso emergencial na Anvisa, tendo a agência adotado seu procedimento para autorização de uso emergencial, e não o de autorização excepcional e temporária para importação previsto na lei 13.979:

“O presidente da Pfizer no Brasil esteve na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para apresentar pedido de aprovação para uso emergencial da vacina desenvolvida pela empresa contra a Covid-19 no Brasil, mas disse ter encontrado dificuldades, afirmou nesta quinta-feira o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

‘Sou a favor do uso emergencial, inclusive peguei o telefone e falei com o CEO da Pfizer no domingo e pedi para ele na segunda-feira estar na ANVISA para solicitar o uso emergencial, e lá ele foi’, afirmou Pazuello em audiência no Senado sobre a vacinação contra a Covid.

‘E a resposta foi: ‘Pensei que era mais simples, mas a agência é bastante detalhista.’Pois é, tem que cumprir os detalhes regulamentares, acrescentou Pazuello, fazendo referencia a conversa que teve com o presidente da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo.

(…)

Na quarta-feira, a empresa entregou à ANVISA os documentos relativos aos testes de Fase 3 de sua vacina, um dos pré-requisitos para apresentar pedido de autorização para uso emergencial de seu imunizante.

Segundo a ANVISA, os dados entregues foram resultados primários de segurança e eficácia da Fase 3, que foram submetidos dentro do processo de Submissão Contínua que tem sido utilizado pelos laboratórios para apresentar dados parciais sobre o desenvolvimento das vacinas.

‘Estes ainda não são os dados completos necessários para a avaliação de segurança, eficácia e qualidade de uma vacina para o registro’, disse a agencia em nota, lembrando que, até o momento, nenhuma farmacêutica apresentou pedido de registro definitivo da vacina ou de uso emergencial no Brasil.”(reportagem disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/pfizer-tentou-pedir-uso-emergencial-na-anvisa-mas-esbarrou-em-exigencias-diz-pazuello/)

A interpretação de que a autorização excepcional e temporária da Lei 13979 só pode se dar diante de registro (autorização definitiva) por autoridade sanitária estrangeira é confirmada pela notícia divulgada pela CNN, em 22 de dezembro, de que o registro da vacina da Pfizer na Suíça em procedimento padrão, ou seja, autorização definitiva, deverá acelerar o processo de registro pela Anvisa.

Ocorre que no julgamento das ADIs 6.586 e 6.587, os ministros do STF deixaram claro na fundamentação de seus votos que a autorização excepcional e temporária da Lei 13.979 não depende de registro definitivo em agência sanitária estrangeira, sendo suficiente o emergencial, dadas as peculiaridades da crise sanitária enfrentada. O Ministro Gilmar Mendes, inclusive, propôs que a interpretação da norma em questão constasse da tese fixada no dispositivo, para assentar que a autorização excepcional pode ocorrer diante de registro definitivo ou temporário em agência sanitária estrangeira.

No entanto, o ministro Ricardo Lewandowski entendeu não ser necessário, uma vez que constava da fundamentação dos votos proferidos e, ainda, havia sido por ele tratado em decisão monocrática na ACO 3.451 e na ADPF 770.

Na ADPF 770, inclusive, o Ministro Ricardo Lewandowski lembra que o STF, ao julgar o RE-RG 657.718 (Tema 500), autorizou, excepcionalmente, o fornecimento de medicamento sem registro quando: houver pedido de registro na Anvisa, já tiver registro em órgão sanitário no exterior, e for único, sem similar nacional. Tal precedente, de certa forma, seguiria como norte de interpretação do Parágrafo 7o.-A para vacinas contra a Covid. Destaco o seguinte trecho da decisão monocrática:

“Não desconheço a aprovação da Resolução DC/AMVISA 444 de 10/12/2020, a qual ‘estabelece a autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19 para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2)’.

No entanto, a publicação da referida Resolução emanada de Diretoria Colegiada, ao propiciar mais uma maneira de aprovação das vacinas contra a Covid-19 – em caráter experimental -, não exclui, até porque não poderia fazê-lo, as formas já existentes, de modo que remanescem, tanto o registro previsto no art. 12 da Lei 6.360/1976, como a autorização excepcional e temporária estabelecida no art. 3o., VIII, da Lei 13.979/2020.

A dispensação excepcional de medicamento sem registro na ANVISA, de resto, não constitui matéria nova nesta Suprema Corte, já tendo sido apreciada no RE 657.718 (…)

Seja como for, as disposições constantes do art. 3o, VIII, a, e Parágrafo 7o.-A, da Lei 13.979/2020, gozam da presunção de plena constitucionalidade, revelando, portanto, a solução encontrada pelos representantes do povo reunidos no Congresso Nacional para superar, emergencialmente, a carência de vacinas contra o novo coronavírus. (…)”

Portanto, a análise conjunta da legislação sanitária e dos precedentes do STF na matéria permitem concluir que as vacinas contra a Covid-19 poderão ser distribuídas à população brasileira nos seguintes casos: após registro na Anvisa (art. 16 da Lei 6360/76); após autorização para uso emergencial na Anvisa (Resolução 444/2020 da Anvisa); dispensado o registro na Anvisa quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais para uso em programa de saúde pública (art. 8o., Parágrafo 5o., da Lei 9782/99); e sem registro na Anvisa, para autorização excepcional e temporária para importação e distribuição, quando autorizado seu uso pela FDA, pela EMA, pela PMDA ou pela NMPA (art. 3o., Parágrafo 7o.-A, da Lei 13.979).

O caminho a ser escolhido, é claro, depende das autoridades brasileiras e das empresas produtoras das vacinas. No caso da Pfizer, porém, a partir do que se depreende das notícias de jornal, parece que caminho mais fácil poderia ser seguido pelo Ministério da Saúde e pelo CEO da Pfizer se optassem pelo pedido de autorização excepcional e temporária previsto pela Lei 13.979, opção esta já respaldada pelo Supremo Tribunal Federal.

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