Consultor Jurídico

Napoleão Maia: Como o juiz deve decidir os chamados casos difíceis?

28 de dezembro de 2020, 10h38

Por Napoleão Nunes Maia Filho

imprimir

STJ
Todo magistrado minimamente sensível aos apelos das partes que lhe demandam justiça já experimentou a desconfortável sensação de impasse que advém (i) da inexistência de regra prévia escrita — seja lei ou precedente judicial legítimo — para nortear a solução de uma questão jurídica que lhe compete resolver. Igual perplexidade o assedia (ii) quando há mais de uma regra disponível para regular o caso em exame, mas veiculando orientações divergentes, ou (iii) quando a regra disponível mostra-se tão agressiva ao senso comum de equidade ou de justiça que raia a absurdeza a sua aplicação.

Tem-se denominado essas situações, aliás muito frequentes, de casos difíceis, o que indica que o desejável pelos julgadores — ou o seu optimo funcional — é que exista uma lei válida, vigente, eficaz e boa (justa ou equitativa) fornecendo-lhe diretamente a solução da questão. Nessa rara hipótese, o que lhe cabe (ao juiz) é apenas aplicá-la, exercendo uma atividade reprodutiva de conceitos e visões precedentes e em tudo e por tudo semelhante ao exercício tecnoburocrático, tão assiduamente desempenhado pelos agentes estatais do poder administrativo.

Em outras palavras, a postura judicial de submissão pura e simples aos comandos das regras legais, sem qualquer crítica aos seus conteúdos, confina com o exercício funcional rotineiro que cabe aos servidores públicos em geral, como já o disse o professor Norberto Bobbio (1909-2004), em livro muito citado pelos juristas, apesar da parca reflexão a seu respeito (O Positivismo Jurídico. Tradução de Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 28).

O professor ministro Eros Grau vê nessa atitude dos juízes a sua consagração ao serviço do arbítrio e da opressão, visto que todo e qualquer conteúdo pode ser Direito, ainda que arbitrário e opressivo (Direito/Conceito e Normas Jurídicas. São Paulo: RT, 1988, p. 31), o que ele rejeita com vigorosa veemência. O professor Dalmo Dallari diz que tal conduta judicial elimina a procura do justo e o que sobra é um apanhado de normas técnico-formais, que sob a aparência de rigor científico, reduzem o Direito a uma superficialidade mesquinha (O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85).

O jurista português professor Paulo Otero conecta o não controle da legitimidade das leis à vocação totalitária das estruturas estatais. Para ele, o Estado totalitário, procurando definir novas categorias morais e elevando o próprio Estado a um verdadeiro Deus, assenta em quatro preferências estruturais (i) prefere a disciplina à justiça; (ii) a autoridade à liberdade; (iii) a obediência à consciência e, por último, (iv) a violência à tolerância (A Democracia Totalitária. Lisboa: Principia, 2000, p. 20).

O imortal professor Paulo Bonavides mostrou como a ordem jurídica de tendência legalista absorveu no conceito de legalidade a exigência ética da legitimidade, vindo daí o desastre das injustiças e dos massacres, tudo sob a bênção apaziguadora da lei, excluída de ser submetida à verificação de conteúdo. A sua preocupação mais aguda era com o legalismo positivista, que dissolveu o conceito de legitimidade, elegendo, em seu lugar, a legalidade formalista e pregando o seu exato cumprimento, como norte ou escopo da atividade interpretativa jurídica e judicial.

Ele detectou que efetivamente banido ficava, por inteiro, do centro das reflexões sobre o Direito o problema crucial da legitimidade, numa concepção assim de todo falsa e, sobretudo, já ultrapassada. (Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 37). A eliminação da preocupação com a legitimidade das regras positivas gerou o advento do legalismo, cuja característica predominante é a de reduzir todo o Direito às leis escritas. Com a expulsão da legitimidade, aflorou o antigo estatismo autoritário, tendência sempre latente em todos os tipos estatais, entronizando no lugar da origem divina dos governantes, a origem alegadamente democrática das leis escritas.

O diagnóstico anti-legalista traçado por esses mestres evidencia que a solução dos casos difíceis não pode ser encontrada no denominado panorama das regras postas, coisa que o professor Lourival Vilanova (1915-2011) já indicara, ao proclamar que o sistema positivo é manifestamente insuficiente para dar conta da experiência jurídica (As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: RT, 1977, p. 63). Tudo isso nos leva, inevitavelmente, a pensar que as decisões judiciais — e não apenas as difíceis — não podem dispensar a reflexão criadora e a construção original de soluções próprias à singularidade do caso específico em exame ou, em outras palavras, à decantada justiça do caso concreto.

E assim somos alertados para a tarefa da fundamentação das decisões, que devem expressar o conhecimento da realidade da questão, mediante a sua própria atualidade, o que não se alcança por simples dedução. Como adverte o professor Hans Albert, através da dedução lógica nunca se pode obter um conteúdo. De um conjunto de enunciados só se pode tirar, através do processo dedutivo, a informação que já está contida nele. (Tratado da Razão Crítica. Tradução de Idalina Azevedo da Silva, Erika Gudde e Maria José Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 25).

Isso quer dizer que, se o juiz não criar a solução dos casos difíceis, apoiando-se ponderada e fundamentadamente nos princípios e nos valores do Direito, eles (os casos difíceis) permanecerão sem solução, porque (i) não há regra prévia ajustada à situação, (ii) há mais de uma regra disponível, porém com mensagens opostas, ou (iii) a regra existente é injusta, perversa ou iníqua, pelo que não merece aplicação ou abono judicial. No terceiro caso, a solução legalista parece ser simples: aplique-se a regra, nem que o mundo pereça. Então, o julgador seguirá essa recomendação, olímpico com uma entidade, indiferente ao resultado injusto que a sua decisão irá produzir.

Resta, porém, a inquietante pergunta de se saber por qual razão ignota ou conspícua os julgadores muitas vezes se escudam em vácuos legais ou em leis vedadoras, para negar tutela judicial, mesmo a direitos que ostentam gritantemente o nível de fundamentais? Será este apenas um caso de amor ao legalismo?