Processo Familiar

Fideicomisso por ato inter-vivos

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é advogado professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD) doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).

27 de dezembro de 2020, 8h00

Spacca
Esta semana retomo o tema do fideicomisso, que tem sido objeto de minhas reflexões pandêmicas. Vou tratar hoje sobre a possibilidade de se instituir o fideicomisso por outros negócios jurídicos diversos do testamento, especialmente nos contratos de compra e venda e de doação.

A discussão sobre a possibilidade de instituição do fideicomisso por ato inter-vivos não é nova, havendo prevalecido até hoje na doutrina o entendimento contrário. Entretanto, penso que é chegada a hora de revisitação dessa posição.

Autores como Eduardo Espínola, Carlos Maximiliano, Carvalho Santos, Jorge Americano, Caio Mário da Silva Pereira, Itabaiana de Oliveira e Pontes de Miranda tratam o fideicomisso, exclusivamente,  como modalidade de substituição testamentária, não admitindo o fideicomisso inter-vivos.

Por outro lado, entre os autores favoráveis ao fideicomisso contratual, destacam-se: Armando Dias de Azevedo, Justino Adriano Farias da Silva, Teixeira de Freitas, Carlos de Carvalho, Manuel Maria de Serpa Lopes, Alvino Lima, Francisco Morato, Agostinho Alvim, Washington de Barros Monteiro, Orozimbo Nonato, Arnold Wald, Vicente Ráo, entre outros.

Os que se posicionam contrariamente partem de uma interpretação equivocada do art. 1.733 do CC/16[1], que faz alusão apenas ao testador (e não ao alienante) como parte legítima para instituir o fideicomisso, quando a própria posição topográfica do dispositivo, no âmbito das substituições testamentárias, não permitiria que se tratasse ali de outro negócio jurídico que não fosse o testamento. Também se alega a invalidade do fideicomisso nas doações diante da restrição do parágrafo único do art. 547 do CC/2002, que proíbe cláusula de reversão da doação em favor de terceiro[2].

À luz do Código Civil de 1916, que não trazia essa regra restritiva, diversos autores defenderam o fideicomisso na doação, também chamada “doação fideicomissária”.

Entre os autores contemporâneos, Justino Adriano Farias da Silva se posiciona pela legitimidade da constituição do fideicomisso tanto na doação, como em outras relações contratuais, propiciando “impulso significativo a este instituto, pois poderia servir para regular com maior segurança determinados negócios jurídicos civis e mercantis, ainda em vida do instituidor. De qualquer forma, mesmo não estando expressamente previsto no nosso ordenamento jurídico, não há qualquer impedimento legal para sua instituição por atos inter vivos, tanto nas doações como em outras relações contratuais. Parece-nos perfeitamente viável a instituição de fideicomisso em contrato de compra-e-venda com pacto adjecto fideicomissório”[3].

Partilho exatamente a mesma posição do autor, que conseguiu esgotar o tema em sua profunda pesquisa. Ainda que o direito positivo brasileiro só se refira ao fideicomisso como modalidade de substituição testamentária, a hipercomplexidade atual das relações sociais e econômicas impõe que se admitam outros usos ao instituto, inclusive para fins de garantia, de modo a corresponder  às novas demandas da sociedade e do setor produtivo.

É preciso lembrar que o direito privado é o locus onde as permissões se sobrepõem às proibições. Aqui é permitido fazer quase tudo o que a lei não proíbe expressamente. E o fato da disciplina do fideicomisso haver sido inserida no âmbito das substituições testamentárias não implica dizer que o testamento seja o único negócio jurídico a comportar a sua instituição. Não existe proibição alguma a que outros negócios jurídicos diversos do testamento também possam se valer do instituto.

O próprio conceito do fideicomisso como o negócio jurídico por meio do qual uma pessoa física ou jurídica (fideicomitente) transfere a propriedade resolúvel e temporária de determinados bens ou direitos a outra pessoa (fiduciário) em favor de uma terceira pessoa (fideicomissário) deixa claro não se tratar exclusivamente de uma verba testamentária. Trata-se, na essência, da transmissão da propriedade em caráter resolúvel, até que se verifique determinada condição ou advenha certo termo, situação acolhida e disciplinada, tanto no Código atual, como no anterior. O art. 1.359 do CCB/2002 estabelece que “resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha”. É exatamente a situação do fideicomisso, onde o proprietário resolúvel é o fiduciário e  “o proprietário, em cujo favor se opera a resolução” vem a ser o fideicomissário ou beneficiário final.

Por fim,  ainda que o Código Civil atual consigne a proibição expressa, no parágrafo único do art. 547 do CC, que se preveja cláusula de reversão dos bens doados a terceiros, permitindo ao doador estipular que os bens doados voltem exclusivamente ao seu próprio patrimônio, se sobreviver ao donatário, o que poderia, segundo alguns, impedir ou nulificar a cláusula fideicomissária nas doações, penso não constituir tal argumento  óbice algum ao fideicomisso contratual.

Primeiro porque no fideicomisso não existe reversão dos bens ao fideicomitente ou a terceiro. A transmissão se dará sucessivamente do instituidor (doador) ao fiduciário (donatário) e deste para o fideicomissário (beneficiário final). Ambos (fiduciário e fideicomissário) seriam donatários sucessivos, sendo que o primeiro será titular de propriedade resolúvel, enquanto o segundo será proprietário sob condição suspensiva (ou termo) e proprietário pleno, após implementada a condição ou o termo. O legislador não veda que se aponham elementos acidentais na doação (termo, condição ou encargo), podendo-se estipular a extinção do negócio jurídico pelo implemento da condição resolutiva ou pelo advento do termo final. Logo, a proibição de reversão dos bens doados a pessoa diversa do doador não se aplica ao fideicomisso.

Segundo porque não constitui tal modalidade de negócio jurídico (a doação) o único vetor de inserção do fideicomisso contratual. Não se pode esquecer que o sistema jurídico atual prestigia também a formação de contratos atípicos, que são aqueles não disciplinados expressamente ou, ainda, contendo elementos de diversos outros tipos contratuais[4].

Em resumo, o sistema do Código Civil, se interpretado de forma harmônica, com prevalência para a autonomia privada, cuja amplitude só encontra limites nas normas de ordem pública, viabiliza que seja instituído o fideicomisso em negócios jurídicos inter vivos, quer seja por meio de doação ou de contrato atípico.


[1] Art. 1.733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio de fideicomisso, impondo a um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua morte, a certo tempo, ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se qualifica de fideicomissário, a herança, ou o legado.

[2] Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário.Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro.

[3] FARIAS DA SILVA, Justino Adriano. Do fideicomisso. In: Direito Civil e registro de imóveis / coordenador Leonardo Brandelli. – São Paulo: Método, 2007, pp. 163-164.

[4] CCB/Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

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    é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).

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