Anvisa: entre a intervenção política e a reforma administrativa
27 de dezembro de 2020, 12h01
Certamente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está diante do maior desafio de sua recente história. A decretação do estado de emergência em saúde pública em razão da pandemia causada pelo novo coronavírus, causador da Covid-19, coloca em xeque todo o seu arcabouço institucional e a sua aptidão para agir com a isenção necessária para decidir sobre as questões de vigilância sanitária.
A liberação de uso, importação e comercialização de medicamentos utilizados no combate à Covid-19, alguns de duvidosa eficácia, como a cloroquina, e a certificação de boas práticas de fabricação para a produção de vacinas, especialmente da Coronavac, são a prova de fogo de sua almejada independência técnica e científica.
Criada pela Lei 9.782/1999, no contexto da chamada reforma gerencial do Estado brasileiro, cujo objetivo era conferir maior eficiência à gestão pública, a Anvisa foi criada sob a forma de agência reguladora independente, justamente com o objetivo de lhe conferir maior autonomia e imparcialidade diante das relevantes competências ao seu encargo, que dizem respeito à proteção da saúde dos brasileiros.
Dita autonomia seria conferida por meio de sua estrutura institucional, marcada notadamente pela forma de escolha de seus dirigentes, nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal para o exercício de um mandato fixo, antes do qual seus dirigentes não poderiam ser destituídos de suas funções. Ademais, sua independência ficaria marcada pelo caráter final de suas decisões.
Tais características possibilitariam que seus dirigentes agissem de forma independente do governo e das pressões econômicas, pois teriam assegurada a sua permanência no cargo mesmo que a atuação da agência viesse a desagradar interesses. Suas decisões técnicas restariam preservadas devido ao seu caráter final, que impediria a sua reforma à revelia da ciência e da imparcialidade técnica.
O mercado regulado pela Anvisa realmente requer uma regulação independente e blindada dessas inevitáveis pressões políticas e econômicas. A simples menção de algumas de suas competências tornam evidente essa afirmação: "normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde", o que inclui materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde. São atividades que impactam diretamente a saúde de toda a população brasileira, que não pode ser transigida em desfavor de interesses meramente eleitoreiros e econômicos.
No atual contexto de pandemia, essa autonomia técnica se torna ainda mais evidente e necessária.
Recentemente, a Lei 13.848/2019 promoveu algumas alterações na estrutura de todas as agências reguladores. Seu objetivo foi justamente aprimorar e reforçar a autonomia e independência técnica dessas entidades. Para tanto, foram aperfeiçoadas as regras relativas ao processo decisório das agências, aumento da transparência e do controle social e vedação da recondução de seus dirigentes para um segundo mandato.
A grande questão é analisar se essa recente reforma foi capaz de conferir a Anvisa a independência técnica necessária para agir na defesa da saúde dos brasileiros, especialmente neste contexto inusitado de pandemia.
A proliferação de normas advindas da Anvisa, como as Resoluções da Diretoria Colegiada 351 e 352, ambas de 20 de março de 2020, evidenciam que houve uma indisfarçável política de facilitação do uso da cloroquina como meio eficaz de combate à Covid-19. Tais fatos levam a uma resposta negativa, desanimadora e preocupante ao questionamento sobre a sua independência. Tal constatação se agrava quando confrontada com as atitudes do presidente da República em favor do uso desse medicamento como meio eficaz de cura para a Covid-19, em que pese o grande questionamento da comunidade científica a esse respeito.
De nada adiantam tentativas de reforma estatal, sempre pautadas pelo aumento da eficiência, se elas são feitas de maneira incompleta. A própria reforma administrativa promovida a partir de meados da década de 1990, contexto de surgimento da Anvisa, é uma prova disso. Afinal, o aumento da eficiência seria alcançado, entre outros meios, pela criação de agências reguladoras independentes.
Todavia, não foi isso que ocorreu, pois a escolha dos dirigentes dessas entidades vem sendo feita, em muitos casos, à guisa da competência técnica e experiência no mercado regulado. Caberia ao Senado Federal atuar com acentuado protagonismo na aprovação dos nomes enviados pelo Poder Executivo para compor a diretoria das agências reguladoras e não como mero chancelador, como vem ocorrendo. Com isso, evitar-se-ia a aprovação de nomes mais comprometidos com interesses políticos e econômicos do que com a necessária isenção científica.
Tal questão se torna ainda mais preocupante quando se analisa a proposta de reforma administrativa apresentada pelo governo federal (PEC 32/2020). Sob o pretexto de modernização da administração pública brasileira, apresenta-se, na verdade, como uma indisfarçável proposta de reforma fiscal e como tentativa ilegítima e desproporcional de enxugamento da máquina pública e de submissão do funcionalismo a pressões políticas ao mitigar a estabilidade.
Afinal, a pressão do governo federal para aprovação da cloroquina como meio eficaz de combate ao coronavírus, o que depende de aprovação técnica da Anvisa, e a proposta de mitigação exacerbada da estabilidade do funcionalismo pela PEC 32/2020 seriam mera coincidência ou parte de um plano mais bem elaborado de submissão do funcionamento estatal aos interesses políticos e econômicos em desprezo à autonomia técnica?
A resposta advém do fato de os ciclos de reformas administrativas no Brasil terem sido sempre incompletos. Desde a criação do Departamento Administrativo de Serviço Público (Dasp) em 1938, passando pelo Decreto-Lei 200/1967 até se chegar ao Plano Diretor de Reforma do Estado de 1995, sempre se teve como mote o aumento da eficiência. A estabilidade dos servidores públicos, hoje alçada como vilã da atuação estatal, foi propugnada na década de 1930 como antídoto ao patrimonialismo, ao clientelismo (que vigiam de forma ainda mais acentuada àquela época) e à falta de continuidade do funcionalismo (que comprometia a eficiência devido à reiterada substituição dos servidores por apadrinhados políticos).
A mitigação acentuada da estabilidade do funcionalismo tal como proposta pela PEC 32/2020 representa indisfarçável retorno ao modelo de Estado da década 1930, em que imperavam o patrimonialismo e apadrinhamento político, responsáveis por minar qualquer tentativa de autonomia técnica do funcionalismo, submetendo a atuação estatal à vontade dos donos do poder.
A situação vivenciada pela Anvisa, que está prestes a autorizar (ou não) o uso de diversas vacinas contra o coronavirus, deve servir de baliza para guiar os rumos da reforma administrativa proposta. Afinal, sem estabilidade como os técnicos da administração pública poderão resistir à determinação de prescrição de cloroquina e à protelação de deliberações sobre vacinas no combate à pandemia?
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!