Opinião

Negócio jurídico processual para mitigar a suspensão de processos com IRDR

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26 de dezembro de 2020, 15h19

A instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) possui, como uma das consequências, a determinação, pelo relator do feito, da suspensão da tramitação dos processos pendentes, individuais ou coletivos, em curso no estado ou na respectiva região (artigo 982, inciso I, do Código de Processo Civil).

Devido à sobrecarga de trabalho que assola o Poder Judiciário, já é possível verificar que o julgamento e o trânsito em julgado das teses firmadas em IRDR levarão, na maioria dos casos, tempo considerável, mormente quando interposto recurso especial ou extraordinário.

Em que pese o artigo 980 do CPC determinar o fim da suspensão caso o feito não seja julgado no prazo de um ano, tem-se que o artigo 982, parágrafo 5º desse mesmo diploma estabelece que a suspensão perdurará caso seja interposto recurso especial ou extraordinário.

Como esclarece Marinoni (2019, p. 151), "a suspensão dos processos cessa quando não interposto recurso especial ou extraordinário contra a decisão do tribunal. Significa que a suspensão prossegue na pendência do recurso às cortes supremas".

Nesse contexto, há de se perquirir sobre a viabilidade de realização de negócio jurídico processual, cujo objetivo seja afastar a suspensão determinada pelo Poder Judiciário ou ope legis, em especial, quando transcorrido o prazo de um ano previsto no artigo 980 do CPC. Em outras palavras, há viabilidade jurídica de acordo processual com a pretensão de afastar a suspensão dos feitos determinada por decisão judicial ou pelo efeito automático da interposição de recurso especial ou extraordinário em sede de IRDR?

No campo das objeções a essa pretensão, certamente haverá a alegação de que as partes não podem convencionar sobre as posições jurídicas do Estado-juiz, isto é, impor o andamento de um processo que estava suspenso por determinação judicial.

Além disso, esse acordo processual, em regra, seria firmado no primeiro grau de jurisdição. No entanto, os seus efeitos se irradiariam aos tribunais de sobreposição, porquanto ficariam obrigados a apreciar eventual recurso interposto contra sentença ou outro ato processual proferido em razão do retorno da tramitação, de sorte que, a rigor, a homologação do acordo em primeiro grau implicaria o afastamento da decisão de suspensão da tramitação exarada no âmbito do tribunal.

Inicialmente, é importante deixar claro que não há vedação genérica à realização de acordo processual no âmbito de IRDR, como bem aponta Mendes (2017, p. 251), eis que, no Direito Processual Civil brasileiro:

"Poderá haver acordo coletivo mesmo em relação às questões processuais, desde que restrito às partes plenamente capazes, pois, em princípio, não parece existir objeção, em razão do caráter plúrimo, para que se admita a autocomposição, salvo alguma peculiaridade no caso concreto que incida na vedação contida na parte final do artigo 190 do estatuto processual".

Assim, entendido o negócio processual, definido por Nogueira (2020, p. 175):

"Como o fato jurídico voluntário em cujo suporte fático, descrito em norma processual, esteja conferindo ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentre os limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais".

O ponto central do debate da admissão, ou não, do negócio jurídico processual em relação à situação posta (acordo para colocar fim a suspensão dos processos em razão de instauração de IRDR) perpassa pela análise dos limites objetivos dessa relação negocial.

Partindo da premissa de que o negócio processual seja firmado sobre direito disponível e os signatários do acordo possuam capacidade para tanto (artigo 190 do CP), a questão controvertida passa a ser, como já adiantado alhures, sobre os limites do negócio, isto é, se essa convenção pode suprimir uma determinação judicial de suspensão dos feitos.

Como bem aponta Marinoni (2019, p. 22), o objetivo do IRDR é facilitar e acelerar a resolução de demandas repetitivas, cuja análise dependa de uma mesma questão de direito, tendo o legislador lançado como justificativa, também, a questão da isonomia e da segurança jurídica (artigo 976, inciso II, do CPC).

Deve ser acolhido pelo Poder Judiciário o negócio jurídico processual firmado por partes capazes e a respeito de direito disponível objetivando a retomada da marcha processual, mormente quando os signatários assumam os riscos dessa escolha, abdicando de eventual alegação de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Não há norma cogente vedando esse negócio, bem como inexiste ofensa aos princípios e garantias fundamentais do processo. Pelo contrário, esse acordo processual pode representar a materialização das normas contidas no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal e no artigo 4º do Código de Processo Civil.

Como bem apontam Marinoni e Mitidiero (2016, p. 798):

"O conteúdo mínimo do princípio da duração razoável do processo abarca o legislador, o administrador judiciário e o juiz. Ora, se o legislador concedeu às partes a possibilidade de firmarem acordo objetivando, por exemplo, a maior celeridade processual, não é lícito ao juiz tolher tal iniciativa se não há qualquer infração à lei".

As partes não devem continuar submetidas à determinação de suspensão do processo expedida em IRDR quando os efeitos da instauração deste passa a ser contrário a um dos seus objetivos. É bem verdade que o incidente passa a funcionar como um atraso para a resolução da questão posta em Juízo.

Ademais, como as próprias partes são as signatárias do acordo de retomada do trâmite da ação, não seria lícito alegarem nulidade do próprio acordo que fora firmado, sob pena de venire contra factum proprium. Assim, eventual iniciativa do tribunal em anular, de ofício, o acordo firmado em primeiro grau esbarraria na norma contida no artigo 283, parágrafo único, do CPC/2015: "Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte".

A alegação de que a parte não pode convencionar sobre as posições jurídicas do Estado-juiz parece não se sustentar, pois há inúmeros exemplos de determinações judiciais que são afastadas por negociação das partes, tais como acordo sobre o mérito firmado, inclusive, após a sentença que julga o mérito da causa; a desistência de recurso, mesmo após a determinação de remessa pelo juízo de primeiro grau e a sua admissão pelo tribunal.

Nogueira (2020, p.184), aponta que "o espaço para o exercício do autorregramento da vontade é aquele deixado pelas normas cogentes. No plano processual, os limites dessa autonomia são demarcadas pelas normas processuais cuja aplicação seja inafastável pelos interessados". Na espécie, à falta de norma cogente vedando o negócio processual mencionado, há que se reputá-lo como válido. É como sustenta, com propriedade, Cabral (2020, p. 180 e 184):

"Em havendo margem de liberdade para conformação do procedimento pelas partes, e em se verificando efetiva atuação voluntária dos litigantes, o Estado não pode sobre eles se sobrepor" (…), pois "a juridicidade da norma do acordo impede a incidência da regra legislada. No campo legítimo em que as partes podem validamente convencionar, não incide a norma legal (que, diante da atividade das partes, adquire caráter subsidiário), devendo ser aplicada a norma convencional".

Posto que ainda seja forte o pensamento centrado num publicismo exacerbado, é preciso dar voz ao autorregramento da vontade, não devendo o Estado atuar, em casos tais, como se fosse uma espécie de tutor dos jurisdicionados, devendo, ao contrário, fortalecer o princípio do debate, mormente diante de normas como as contidas no artigo 3°, §§ 2º e 3º, do Código de Processo Civil.

Cada vez mais a norma negociada ganha força no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo em campo onde a restrição era bem mais forte, a exemplo do processo penal (acordo de não persecução — artigo 28-A do CPP), improbidade administrativa (artigo 17, §1º, da Lei nº 8.429/92), Direito do Trabalho (artigo 507-A da CLT) e Fazenda Pública (artigo 19, parágrafos 12 e 13 da Lei 10.522/2002), de modo que não é razoável deixar de admitir, à falta de vedação legal, a realização de negócio jurídico processual para afastar regra de imposição de suspensão do feito em IRDR, mormente quando os litigantes não desejam se submeter ao eventual efeito vinculante de tese que poderá ser firmada.

Em vários casos em tramitação no Juízo onde este subscritor atua, os autores acordaram com representantes de uma instituição bancária ré o retorno da tramitação de feitos que estavam suspensos por decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, expedida em IRDR, cujo objetivo era a fixação de teses sobre empréstimos consignados. Esse caso bem ilustra, caso não se admita a realização de negócio processual para o afastamento da suspensão, o indevido afastamento do autorregramento da vontade, porquanto as partes são capazes, o direito disponível e não há vedação legal para a realização do acordo.

Ora, qual a razão lógica para a manutenção dessa suspensão? O Estado-juiz não pode atuar como um óbice para a resolução da lide posta em Juízo, mormente quando não há prejuízo, de ordem legal, para as partes e para o próprio Poder Judiciário. E não há espaço para alegação de eventual descumprimento da ordem judicial expedida em sede de IRDR, pois houve alteração substancial da quadra fática e jurídica com a realização do negócio jurídico, de sorte que a decisão de suspensão perde lugar diante da autonomia da vontade dos litigantes.

Como bem pondera Cabral (2020, p. 219):

"O Estado não pode intervir no desenvolvimento da liberdade, interferindo na esfera de decisão individual onde suas escolhas são livres, sob pena de resgatar um paternalismo inadequado no mundo contemporâneo, aniquilando a liberdade do indivíduo e, no processo, a autonomia das partes. Ao Estado não cabe controlar moralmente as preferências dos indivíduos no espaço de exercício legítimo de sua liberdade".

Nessa trilha, pontua Vitorelli (2020, p. 241) que a:

"Visão instrumental do direito de ação demanda que as características do Direito Material contagiem o processo, de maneira a que este, enquanto mecanismo de realização do Direito, seja responsivo às peculiaridades da realidade sobre a qual pretende incidir".

Ademais, a admissão desse negócio jurídico processual serviria como forma de mitigar a representação virtual dos litigantes atingidos pelos efeitos da decisão proferida no IRDR, abrindo uma oportunidade para os demandantes não se submeterem às teses fixadas no incidente, caso o acordo seja firmado antes da fixação daquelas.

Em outras palavras, a celebração do acordo mitigaria a ausência de representação adequada dos litigantes excluídos, pois não possuem voz durante a tramitação e julgamento do IRDR, mas são submetidos aos efeitos das teses fixadas. E ainda é mais grave: o demandado, normalmente grandes litigantes, possuem participação ativa no processo de formação das teses, inclusive com direito a interposição de recursos extraordinários, de modo que se nega a "participação aos lesados e se confere ao infrator oportunidade incondicional de estar presente no único local em que a questão será resolvida" (MARINONI, 2019, pág. 90). E ainda o mesmo autor (p. 88):

"Incidente de resolução de demandas, nos termos em que está posto pelo Código de Processo Civil, constitui uma técnica que nega o direito fundamental de ação, ou seja, o direito a um dia perante a Corte, dando origem a uma espécie de 'justiça dos cidadãos sem rosto e fala', para qual pouco importa saber se há participação ou, ao menos, 'representação adequada'".

Assim, não é forçoso concluir que, diante dessa falha do legislador, ainda que de forma inconsciente, deixou mecanismo (acordo processual) para mitigar os efeitos nefastos da ausência de participação das partes na formação das teses firmadas em IRDR.

Por fim, é importante deixar claro que os signatários não poderão, e isto pode, inclusive, ser uma das cláusulas do negócio, querer fazer valer o precedente de forma retroativa. Após a feitura do negócio, não é admissível a invocação das teses fixadas com base no disposto no artigo 966, parágrafo 5º, do CPC.

Aceitar tal comportamento implicaria acolhimento de venire contra factum proprium, pois bem apontado pelo Superior Tribunal de Justiça:

"Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos tu quoque e venire contra factum proprium, segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé "(REsp 1.192.678/ PR, DJe 26/11/2012).

Acrescente-se, ainda, o aforisma romano volenti non fit iniuria, isto é, "o indivíduo não pode queixar-se em juízo de uma ofensa por ele consentida" (CABRAL, 2020, p. 218). A rigor, nem há espaço para se falar em ofensa consentida, pois a sorte do pactuante do negócio foi selada no momento da realização do acordo, pautada pela autonomia de sua vontade, de forma que não pode, agindo com clara má-fé, querer aproveitar tese fixada posteriormente ao negócio que fora firmado.

Assim sendo, é possível concluir que a realização de negócio jurídico processual para afastar suspensão da tramitação de processo em decorrência de determinação expedida em incidente de resolução de demandas repetitivas é plenamente cabível.

Nota: as citações realizadas no texto não significam que os autores mencionados concordam com a conclusão deste artigo.

Referências bibliográficas
CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.

NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. 4ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.

MARINONI, Luiz Guilherme. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 1ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2017.

SARLET, Ingo Wolgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

VITORELLI, Edilson. Processo Civil Estrutural. 1ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.

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