Opinião

Projeto de reforma administrativa oficializa cargo de "jagunço" estratégico

Autor

  • João Hélio Ferreira Pes

    é doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa mestre em Direito da Integração pelo Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria professor do curso de Direito da Universidade Franciscana Santa Maria e pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.

26 de dezembro de 2020, 10h23

No Rio de Janeiro, recentemente, funcionários públicos municipais, ocupantes de cargos de confiança, denominados popularmente de "guardiões do Crivella", agiam como verdadeiros jagunços, ou seja, capangas do prefeito, ao executar ordens de impedir que jornalistas fizessem reportagens sobre os serviços públicos de saúde prestado nas unidades municipais. Atividades como essas não estão amparadas pela legalidade, eis que somente é possível a nomeação de pessoas para "cargos em comissão" para as atribuições de direção, chefia e assessoramento, conforme está bem claro no texto constitucional do artigo 37, V, agora ameaçado de supressão pelo governo em sua proposta de reforma administrativa. Portanto o ordenamento jurídico brasileiro não ampara atividades desenvolvidas como essas perpetradas pelos capangas do Crivella, que não são atividades de chefia ou de direção e muito menos de assessoramento, mas sim atividades próprias de cabos eleitorais, podendo ser classificadas, a partir de algumas atitudes, como essencialmente milicianas.

O que diferencia os guardiões do Crivella com os camisas negras que Benito Mussolini utilizava para intimidar seus adversários ou os jagunços utilizados pelos coronéis da política brasileira, retratados nas obras de Graciliano Ramos, é a condição de servidores públicos ocupadas pelos capangas do prefeito do Rio de Janeiro. No entanto, a reforma administrativas enviada ao Congresso Nacional pelo governo Bolsonaro além de oficializar essa possibilidade de nomeação de pessoas para ocupar cargo público para desempenhar funções vagas e obscuras denominadas de "atribuições estratégicas", altera dispositivo constitucional que veda a utilização de servidores vinculados a repartições públicas a desempenhar atividades não previstas na lei de criação do respectivo cargo público.

A proposta de nova redação ao inciso V do artigo 37 da Constituição brasileira de 1988 é a positivação no texto constitucional da prática corrente na administração pública federal, estadual e municipal de nomeação para cargos em comissão de cabos eleitorais que desempenham a função de jagunço ou capanga dos governantes. A sugestão do governo Bolsonaro é substituir o texto em vigor pela seguinte redação: "os cargos de liderança e assessoramento serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas".

É importante ressaltar que a norma prevista no inciso V do artigo 37, elaborada pelo constituinte de 1988, recebeu importante alteração por força da Emenda Constitucional 19/1998, para acrescentar que por legislação específica, até hoje não elaborada, deverá ser garantido um percentual mínimo das vagas de cargos em comissão para os servidores públicos concursados, tudo conforme texto constitucional em vigor, assim redigido: "as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento". A redação do constituinte original previa a preferência para os concursados, já a redação em vigor garante que lei deve fixar um percentual mínimo das vagas de cargos em comissão para os concursados, além de esclarecer que os nomeados, sem concurso público, para cargos em comissão, somente podem exercer atribuições de direção, chefia e assessoramento.

Inegavelmente, constata-se que está a ocorrer o que se denomina de "inconstitucionalidade por omissão", por que a falta da lei regulamentadora está a provocar consequências nefastas para os brasileiros. No Brasil, nos três níveis da administração pública há uma verdadeira farra dos cargos em comissão. São milhares de cargos de servidores nomeados, sem concurso público, nos âmbitos municipal, estadual e federal. A inconstitucionalidade é verificada pela omissão dos legisladores que não regulamentaram o artigo 37, incisos II e V da Constituição Federal de 1988. Tais normas determinam que a investidura em cargo público depende de aprovação em concurso público e que os cargos em comissão, devem ser preenchidos por servidores de carreira nos percentuais mínimos previstos em lei. Portanto, a nomeação de servidores para cargos em comissão deve ser prioritariamente de servidores concursados e excepcionalmente e de forma transitória, com percentuais de tolerância definidos em lei, de pessoas não concursadas.

Dentre as consequências nefastas, uma delas é a falta de eficiência dos serviços públicos que são prestados com direção ou supervisão de não concursados, na maioria das vezes, cabos eleitorais não preparados tecnicamente, que demoram um tempo razoável para a capacitação e quando isso ocorre já está próximo da substituição pelos outros cabos eleitorais, do vencedor da última eleição. Ademais, estudo do Ipea, divulgado recentemente, aponta que há alta rotatividade nas funções de direção e assessoramento, pois cerca de 30% de nomeados a cargos públicos no âmbito Federal deixa o governo no primeiro ano. A outra consequência é o endosso à cultura da corrupção na administração pública, basta verificar que parte considerável dos partidos políticos utilizam os cargos em comissão como moeda de troca e de cooptação para apoios políticos eleitorais ou de governabilidade. Portanto, o fim da corrupção na administração pública depende também do basta à farra dos cargos em comissão.

Fácil é imaginar que a proposta de reforma administrativa enviada ao Congresso tem outros objetivos tão nefastos como esse de retirar do texto constitucional normas ainda não efetivadas que se regulamentadas e colocadas em prática poderiam qualificar a prestação dos diversos serviços públicos. A proposta do governo Bolsonaro é suprimir todas essas regras para deixar os governantes livres para nomear quem bem entenderem para fazer o que bem quer o governante. Portanto, o quadro apresentado a partir dessas considerações, inegavelmente revela que não é somente o desmonte do Estado que está em curso, mas a utilização do aparato estatal para oficializar uma estrutura miliciana a partir do próprio Estado e o cargo de jagunço estratégico.

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    é doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, mestre em Direito da Integração pelo Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria, professor do curso de Direito da Universidade Franciscana, Santa Maria e pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.

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