retrospectiva 2020

Direito Societário: Evoluções e impactos da pandemia em 2020

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26 de dezembro de 2020, 7h02

O ano de 2020 foi marcado por importantes evoluções no Direito Societário, tanto em decorrência dos impactos da pandemia quanto em virtude de inovações no arcabouço regulatório.

Em razão da pandemia da Covid-19, a Lei 14.030, de 28 de julho, estendeu por mais três meses o prazo para que seja feita assembleia geral ordinária nas sociedades anônimas e de assembleia de sócios nas limitadas. O legislador estabeleceu também que:

1) disposições contratuais que exijam a realização de tal assembleia até o final de abril de 2020 devem ser consideradas sem efeito;

2) os prazos de gestão ou de atuação dos administradores, dos membros do conselho fiscal e de comitês estatutários ficam automaticamente prorrogados até a realização de tal assembleia no prazo estendido ou até a ocorrência da respectiva reunião do conselho de administração, conforme aplicável;

3) caberá ao conselho de administração deliberar, ad referendum, sobre assuntos urgentes de competência da assembleia geral;

4) até que ocorra a assembleia geral ordinária em 2020, o conselho de administração, se houver, ou a diretoria poderá, independentemente de reforma do estatuto social, declarar dividendos;

5) durante o exercício de 2020, a comissão de valores mobiliários (CVM) poderá prorrogar os prazos estabelecidos na Lei nº 6.404/76 para as companhias abertas, bem como definir novas datas de apresentação das demonstrações financeiras.

Adicionalmente, houve a prorrogação de prazos para arquivamento de atos societários no registro de comércio, bem como a suspensão da exigência de registro prévio de atos para a realização de emissões de valores mobiliários e outros negócios jurídicos com semelhante finalidade.

O maior impacto ocorreu, sem dúvida, com a instituição das assembleias digitais (ou reuniões digitais nas limitadas) e do voto à distância, com o objetivo de tentar mitigar (pelo menos no âmbito societário) os efeitos decorrentes da limitação de circulação de pessoas em função da pandemia. Trata-se de invocação que veio para ficar mesmo depois dessa grave crise sanitária.

Em razão dessa invocação legislativa, houve a edição de dois importantes atos normativos para tratar dos conclaves digitais e do voto a distância: 1) a Instrução Normativa DREI nº 79, de 14 de abril, destinada a disciplinar a participação e a votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas e limitadas; e 2) a Instrução CVM nº 622, de 17 de abril, com o objetivo de regulamentar a matéria em relação às companhias abertas.

A Instrução Normativa DREI nº 79, de 14 de abril, estabeleceu a forma de realização de assembleias ou reuniões: 1) semipresenciais, quando os acionistas ou sócios puderem participar e votar presencialmente, no local físico da realização do conclave, mas também a distância; ou 2) digitais, quando os acionistas ou sócios só puderem participar e votar a distância, caso em que o conclave não será realizado em nenhum local físico (ou seja, a realização é inteiramente em ambiente virtual).

À luz dessa invocação, a participação e a votação a distância dos acionistas ou sócios agora podem ocorrer mediante o envio de boletim de voto a distância e/ou mediante atuação remota, via sistema eletrônico, sem prejuízo do cumprimento das normas do contrato social ou estatuto da sociedade quanto à convocação, instalação e quóruns de deliberação porventura existentes.

O ato de convocação deve informar se a reunião ou assembleia será semipresencial ou digital, detalhando como os sócios podem participar e votar à distância, com a indicação do endereço eletrônico na rede mundial de computadores onde as informações completas devem estar disponíveis aos sócios. Além disso, a sociedade deve adotar sistema e tecnologia seguros e acessíveis para que todos os sócios possam participar e votar a distância, podendo contratar terceiros para administrar o processamento das informações em tais conclaves, e devendo manter arquivados todos os documentos relativos, em especial a gravação integral pelo prazo aplicável à ação que vise a anulá-la.

O sistema eletrônico adotado pela sociedade para realização da reunião ou assembleia semipresencial ou digital deve garantir a segurança, a confiabilidade e a transparência do conclave; o registro de presença dos sócios; a preservação do direito de participação a distância do sócio; o exercício do direito de voto a distância por parte do sócio, bem como o seu respectivo registro; a possibilidade de visualização de documentos apresentados; a possibilidade de a mesa receber manifestações escritas dos sócios; a gravação integral do conclave, que ficará arquivada na sede da sociedade pelo prazo legal; e a participação de administradores, pessoas autorizadas a participar do conclave e pessoas cuja participação seja obrigatória.

Outra inovação foi a instituição do boletim de voto a distância — medida há tempos já adotada nas companhias abertas —, que deve conter todas as matérias constantes da ordem do dia da reunião ou assembleia semipresencial ou digital; orientações sobre o seu envio à sociedade; indicação dos documentos que devem acompanhá-lo para verificação da identidade dos sócios e seus representantes; e orientações sobre as formalidades necessárias para que o voto seja considerado válido para fins de deliberação.

Já a CVM — que disciplina as companhias abertas — editou a Instrução CVM nº 622, de 17 de abril, instituindo que a assembleia é realizada: 1) de modo exclusivamente digital, caso os acionistas somente possam participar e votar por sistemas eletrônicos, sem prejuízo do uso do boletim de voto a distância como meio para exercício do direito de voto; e 2) de modo parcialmente digital, caso os acionistas possam participar e votar tanto presencialmente quanto a distância, sem prejuízo do uso do boletim de voto a distância como meio para exercício do direito de voto.

São alterações que permanecerão mesmo após o término da pandemia por Covid-19, com relevantes impactos na "democratização" da participação dos sócios nas deliberações das sociedades.

Outro importante destaque no Direito Societário foi a edição da Instrução CVM nº 627, de 22 de junho, que fixou nova escala reduzindo, em função do capital social, as porcentagens mínimas de participação acionária necessárias ao exercício dos direitos previstos no artigo 105 (ação de exibição de livros e documentos); na alínea "c" do parágrafo único do artigo 123 (pedido de convocação de assembleia geral); no § 1º do artigo 157 (requerimento de informações em assembleia geral ordinária); no § 4º do artigo 159 (propositura de ação de responsabilidade contra os administradores); no § 6º do artigo 163 (pedido de informações ao conselho fiscal); e na alínea "a" do § 1º do artigo 246 (propositura de ação de responsabilidade contra o acionista controlador); todos da Lei nº 6.404/76.

Trata-se de medida importante para facilitar o exercício, pelos acionistas minoritários de companhias abertas, de relevantes direitos previstos na Lei nº 6.404/76, com provável aumento do ativismo societário nas companhias abertas, sempre importante para o desenvolvimento do mercado de capitais.

Na jurisprudência merece especial destaque a relativização, pelo Superior Tribunal de Justiça, do princípio da "competência-competência" nas arbitragens societárias relativas a pleitos indenizatórios movidos por investidores em face de sociedade de economia mista e da União (Conflito de Competência nº 151.130/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, acórdão publicado em 11 de fevereiro de 2020).

Nas câmaras reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo houve o enfrentamento de importantes questões de Direito Societário, como, por exemplo:

1) a apuração de haveres na dissolução parcial deve levar em consideração o número de quotas efetivamente integralizadas pelos sócios na data da retirada (Agravo de Instrumento nº 2230265-69.2020.8.26.0000, relator desembargador Fortes Barbosa, julgado em 11 de novembro de 2020);

2) o balanço em si e por si é somente um documento contábil, que como tal não pode ser nulo ou anulável, mas somente conforme ou não conforme aos preceitos legais no seu conteúdo, e aprovado de modo regular ou irregular; é, portanto, contra a atividade realizada pelos administradores ou pelos conselheiros fiscais na redação do balanço que deverá recorrer quem (sociedade, credores, sócios individualmente ou terceiros) se julga prejudicado por ele, e é contra a deliberação de aprovação que deverá recorrer quem pretenda retirar do documento aprovado o seu valor de ato social e as consequências que a ele a lei atribui (Apelação nº 1110009-13.2017.8.26.0100, relator desembargador Cesar Ciampolini, julgado em 28 de outubro de 2020);

3) o direito do acionista à ação do artigo 105 da Lei nº 6.404/76 é autônomo, sendo desnecessária a existência, ou mesmo a indicação de futura demanda judicial; nesse caso, o juiz deve analisar apenas o enquadramento do pedido numa das hipóteses dos incisos de I a III do artigo 381 do CPC, bem como a existência de justificativa para a produção da prova e os fatos sob os quais recairá (artigo 382 do CPC); o direito autônomo da parte à prova destina-se fundamentalmente a evitar o ajuizamento de ação de maneira açodada, sem maior e melhor respaldo; por um lado, não se dispensa o acionista da fundamentada causa de pedir, cuja inconsistência, traduzida em alegações genéricas, certamente ensejaria abusos; por outro lado, o autor não necessita provar de forma irretorquível os atos ou as irregularidades apontadas; basta que sejam apontadas com clareza as suspeitas, que só poderão ficar definitivamente provadas após a exibição dos livros solicitados (Apelação nº 2217585-52.2020.8.26.0000, relator desembargador Cesar Ciampolini, julgado em 29 de setembro de 2020);

4) os prazos dos artigos 285 e 286 da Lei nº 6.404/76 são de decadência, não de prescrição (Apelação nº 1010819-82.2014.8.26.0100, relator desembargador Araldo Telles, julgado em 9 de junho de 2020).

Por fim, o Colegiado da CVM também decidiu questões relevantes para o Direito Societário, cumprindo destacar os seguintes julgados:

1) "Esse dever de monitoramento não obriga o conselho a vigiar todos os passos ou a rever todos os atos praticados pelos diretores. O que a lei requer é que o conselho de administração se mantenha genericamente informado acerca do andamento da gestão social e reaja de forma apropriada aos sinais de alerta (os chamados red flags). Espera-se, ademais, que o conselho de administração adote medidas que busquem garantir que as informações necessárias para o bom desempenho da função de supervisão sejam levadas ao seu conhecimento e recebam, depois, o tratamento adequado" (Colegiado da CVM, SEI 19957.006989/2016-60, PAS RJ2016/7961, relator diretor Gustavo Gonzalez, julgado em 30 de janeiro de 2020);

2) "igualmente clara a inaplicabilidade da business judgment rule como padrão de revisão da conduta desses acusados. A venda de uma controlada ou a descontinuidade das operações em certo segmento são, sem dúvida, decisões negociais. Já a decisão de realizar uma operação a princípio legítima de modo fraudulento evidentemente não o é, razão pela qual não se pode analisar a atuação de um administrador envolvido em uma fraude considerando, apenas, as questões procedimentais" (Colegiado da CVM, PAS RJ2014/13977, relator diretor Gustavo Machado Gonzalez, julgado em em 30 de janeiro de 2020).

O ano de 2020 apresentou desafios dos mais variados para os operadores do Direito em razão da pandemia que atingiu milhões de cidadãos, empresas e trabalhadores, com profundos impactos nas relações sociais e econômicas. Mas mesmo diante de tantas e tamanhas adversidades, com profundas (e talvez duradouras) cicatrizes na atividade econômica, o Direito Societário conseguiu evoluir em vários aspectos, principalmente no seu arcabouço regulatório.

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