retrospectiva 2020

Pacto federativo: 2020 e a questão federativa

Autor

  • Raphael Sodré Cittadino

    é presidente do Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas (Ielp) e sócio-fundador do escritório Cittadino Campos & Antonioli Advogados Associados.

25 de dezembro de 2020, 7h01

Além das transformações na vida social provocadas pela pandemia de Covid-19, o ano de 2020 carreou para o cenário jurídico nacional a discussão do pacto federativo e dos limites da atuação legislativa de cada ente. Diante de conflitos gerados pelas medidas de isolamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou decisões que, pela primeira vez, caminharam em direção a uma arriscada e descoordenada descentralização regulatória. Resta saber se tal postura se revelará perene ou se permanecerá restrita a este período de excepcionalidade.

Tão logo teve início a quarentena, o governo federal editou a Medida Provisória (MP) 926, de 2020, que dispunha, entre outras providências, da prerrogativa do presidente da República para dispor, mediante decreto, sobre isolamento, quarentena, interdição de locomoção, de serviços públicos e atividades essenciais e de circulação. A proposição tornou-se alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.341-DF, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). A sigla contestava, sobretudo, o esvaziamento da competência de Estados e municípios para estabelecer tais diretrizes.

No julgamento, o STF assentou que Estados e municípios possuem plena autonomia para atuar na proteção da saúde coletiva por meio da edição de portarias, decretos ou legislações locais, respeitada a competência constitucional de cada ente. A sentença se reflete, por exemplo, na impossibilidade de a União impor às secretarias municipais de saúde a execução desta ou daquela ação no tocante ao combate ao novo coronavírus.

Diferentemente do esperado e desejado, uma das consequências dessa mudança jurisprudencial foi um certo descontrole na ponta — prefeitos passaram editar decretos à guisa das próprias câmaras municipais, criando, para pessoas físicas e jurídicas, deveres não disciplinados por lei; muitos deles, em confronto com normativas baixadas em localidades vizinhas.

A situação é deveras complexa; inclusive, de se arbitrar judicialmente. O posicionamento reiterado das cortes de vedar em absoluto a imposição de conduta por via regulamentar (decretos, portarias etc.) sem previsão legal se deparou com um contexto de pandemia no qual dos gestores locais se esperou — e ainda se espera — uma disposição rápida e eficaz. É provável que, passada a circunstância crítica, algum nível de normalidade seja restabelecido nesse aspecto, de sorte que prefeitos e secretários não mais tentem criar regramentos sanitários à revelia dos próprios marcos legais locais, estaduais e nacionais.

Para além da questão federativa na pandemia, em 2020 o Supremo também se colocou — de certo modo, em contraposição a um arranjo histórico — a respeito do desenho da federação em assunto que não guarda pertinência temática com o caos sanitário vivido. O rechaço a iniciativas locais de exigência de contratação de serviços especializados em atividades para as quais a lei federal silenciou consolidava-se como um posicionamento recorrente. Todavia, essa realidade se alterou.

Na ADI 451-RJ, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, a Suprema Corte rejeitou, em 2018, a constitucionalidade da lei estadual que obrigava estacionamentos a contratar empresas de segurança privada. Em 2017, o STF havia apontado igualmente a inconstitucionalidade da lei do estado do Rio de Janeiro que impunha a admissão de "empacotadores" em supermercados (ADI 907-RJ). O argumento, afora a preservação da liberdade econômica, sempre se repetiu: a atribuição para legislar sobre tópicos relacionados a Direito do Trabalho, e até mesmo para a determinação de prestação de serviços especializados, é da União.

Ocorre que, em 2020, na ADI 3.155-SP, relatada pelo ministro Marco Aurélio Mello, o Supremo entendeu constitucional a lei paulista que obriga o emprego de vigilância armada em postos de autoatendimento bancário — uma inflexão da resolução anterior do tribunal. Se, antes, o STF vinha reconhecendo, em julgados como os citados, a arquitetura constitucional que consagrou a União como pedra angular da federação, reservando aos demais entes a confecção de normas complementares, a partir da ADI 3.155-SP foi referendado no Plenário virtual, por unanimidade, o entendimento de que semelhantes matérias não são protegidas por reserva de competência legislativa da União.

No caso da segurança privada, a Lei Federal 7.102/83, regulamentadora do tema, nada dispõe sobre tal compulsoriedade, motivo pelo qual o despacho do STF deve ser visto com enorme preocupação, não apenas para essa demanda em específico, mas acerca do que podem vir a legislar os 5.570 municípios brasileiros e as 27 unidades federativas.

A verdade é que ambos os cenários — um, relacionado diretamente à pandemia (competência sanitária), e, outro, vinculado essencialmente à repartição de poderes (competência para dispor sobre a indispensabilidade de recrutamento de profissionais para funções específicas) — nos remetem ao tratamento da questão federativa em 2020.

Se, por um lado, é senso comum a importância de revermos o pacto federativo que em um país com tradição imperial como o Brasil tende à concentração de poderes na União, é inegável, por outro, que a repactuação necessita se dar sob o comando da política e da negociação.

Atualmente, estados e municípios recebem pouco do "bolo" da arrecadação; ao passo que de tais entes se cobra muito. Sem avaliar, a priori, o pacto federativo como um todo — e, em especial, a problemática tributária — corremos o risco de, pela via judicial, aumentar as responsabilidades de entes que não estão estrutural e institucionalmente preparados para tanto.

Em 2020, ano trespassado pela pandemia de Covid-19, também fica marcado o debate a respeito do nosso modelo federativo e sobre o quanto ele é, de fato, eficiente para resolver os problemas do dia a dia da população. O reconhecimento de poderes precisa estar agregado à garantia de condições para enfrentar as dificuldades; do contrário, decisões oscilantes, com alto grau de impacto no cotidiano dos cidadãos, podem provocar efeitos bastante negativos e ampliar a insegurança jurídica de empresas, usuários e do poder público em geral.

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