Opinião

Fraude às cotas raciais em universidades públicas: o que fazer com as vagas?

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25 de dezembro de 2020, 13h02

No julgamento da ADPF 186, realizado, em 2012, pelo Supremo Tribunal Federal [1], foi declarada a constitucionalidade da política de reserva de vagas em universidades com fundamento em critérios étnico-raciais. Desde então, novos desafios vêm sendo impostos aos programas de cotas, dentre os quais a necessidade de aprimoramento dos processos de implementação da política, considerando os recorrentes casos de fraude que deturpam o sentido da ação afirmativa, notadamente em relação à reserva de vagas para pessoas negras.

De modo mais ou menos igual, as universidades brasileiras adotam o critério da "autodeclaração" como meio pelo qual um candidato torna-se apto a concorrer no concurso (vestibular) para ingresso ao curso oferecido pela instituição na modalidade reservada a determinado grupo racial (negro). O requisito da "autodeclaração", dada a sua natureza subjetiva ("autorreconhecimento" do candidato enquanto negro), nem sempre acompanha o critério objetivo do "fenótipo", que tem como pressuposto a existência de características físicas por meio das quais objetivamente é possível identificar determinado sujeito enquanto negro.

Ou seja, nem sempre os traços fenotípicos próprios de pessoas negras estão presentes em quem se "autodeclara" como tal. A fraude é caracterizada neste limiar, que afere a incompatibilidade entre a autodeclaração e o fenótipo do candidato.

Mais recentemente, muitas universidades brasileiras vêm recebendo denúncias de ocupação irregular das vagas destinadas a pessoas negras, o que tem suscitado a abertura de processos administrativos de invalidação de matrícula e, consequentemente, a expulsão de uma série de estudantes tidos como fraudadores [2]. Isto porque, identificou-se o preenchimento de vagas destinadas ao grupo racial (negro) por pessoas que não são as verdadeiras destinatárias da ação afirmativa. Ou seja, em português direto, mas comedido: pessoas não-negras tentando descaradamente se passar por pessoas negras.

Para além de todas as nuances que permeiam o debate das fraudes, este breve artigo tem como propósito discutir o que fazer com a vaga "desocupada" por quem foi devidamente processado e expulso da universidade. Trata-se de um desafio para a administração implementadora da política, eis que as alternativas implicam soluções e riscos distintos. Para não avançar além do que estas linhas permitem, vamos nos concentrar apenas em três possíveis direcionamentos para o problema em questão.

O primeiro deles seria destinar a vaga desocupada à pessoa imediatamente prejudicada pela conduta ilícita de quem promoveu a fraude.

Esta sistemática pode ser adotada pelas universidades públicas brasileiras e permite a utilização da vaga por quem efetivamente teria de ocupá-la (se viabilizadas as condições ideais de implementação do programa), seguindo a ordem de classificação das listas de espera. A partir dessa hipótese, caberia à instituição responsável pela implementação das cotas o dever de controlar a lista de candidatos vestibulandos, contatando-os um a um, de acordo com a ordem de classificação e com a veracidade de sua autodeclaração, para noticiá-los acerca do processo administrativo que invalidou a matrícula de fraudadores e que imediatamente fez criar, em favor deles, o direito de ocupar essas vagas.

Enquanto possíveis riscos a serem avaliados nesta hipótese de correção do programa de cotas, destaca-se a confissão tácita, por parte da universidade, de que a má condução do processo de implementação da política levou a um dano potencialmente indenizável a uma parcela de candidatos que foi prejudicada pela fraude. Não é novidade que a fraude às cotas representa verdadeira irregularidade administrativa, que também pode gerar efeitos nas esferas cível e penal e, nesse sentido, não nos espantaria ver uma leva de estudantes lesados pela fraude pleiteando judicialmente indenização, por exemplo, pelo “tempo perdido” decorrente da fraude que demorou a ser investigada e solucionada.

A segunda alternativa para solucionar o tema da vaga fraudada implicaria na abertura de vagas suplementares no vestibular do ano posterior promovido pela universidade. A título de exemplo, pensem num curso que oferece 80 vagas para o vestibular de 2021. Caso sejam apuradas cinco fraudes, o vestibular de 2022 do mesmo curso contaria com 80 vagas regulares e cinco vagas suplementares.

Embora a medida não beneficie aqueles imediatamente prejudicados pela fraude no ano do vestibular, nos parece um importante direcionamento a ser avaliado pela universidade, na medida em que também permite que um número maior de candidatos negros ocupe a universidade de forma legítima.

Aqui, os riscos estão muito mais ligados ao fato de que a universidade implementadora da política teria de se estruturar, inclusive em termos orçamentários, para organizar um curso de graduação que atenda a um número maior de pessoas do que o inicialmente programado. Na hipótese mencionada acima, a universidade teria, por exemplo, que viabilizar dinâmica espacial e de oferta de disciplinas que atendessem não mais a 80 estudantes, mas a 85.

Por fim, a terceira possibilidade seria reconhecer a "perda" da vaga fraudada, sem proporcionar a abertura de vagas suplementares e sem buscar pelo inscrito que teria legitimamente ocupado referida vaga, caso a fraude não tivesse sido empreendida. Nesta hipótese, para cada fraude apurada, uma pessoa negra teria deixado de ingressar na universidade pública.

Embora mais "simples", essa terceira alternativa coloca em risco o próprio conteúdo de justiça social da política de reserva de vagas, que, nos dizeres do acórdão que julgou a ADPF 186, significa "mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, [justiça social] significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes".

Reconhecer a perda da vaga sem instituir caminhos que viabilizem o aprimoramento da política pública significa dar razão ao fraudador e legitimar que ações nocivas à política pública sejam replicadas ano a ano, atenuando as responsabilidades da instituição relacionadas à garantia da boa implementação do programa e ao alcance de resultados prioritários, que podem ser resumidos na perspectiva de que as cotas visam oportunizar a pessoas negras o acesso ao ensino superior público e de qualidade.

Ainda, na hipótese de simples reconhecimento da perda da vaga, a irregularidade administrativa também estaria configurada, resultando, em face do fraudador, possíveis consequências nas esferas cível e penal e, em face da gestão implementadora do programa, eventual condenação por improbidade administrativa e dever de indenização em favor das pessoas diretamente desfavorecidas pela fraude.

Por fim, vale ressaltar: as fraudes são uma realidade e impõem um novo desafio às universidades públicas que adotam tão benéfica política de ação afirmativa. Hoje, a defesa das cotas raciais passa necessariamente pelo aprimoramento e amadurecimento de mecanismos preventivos e repressivos de fraude. As instituições tanto devem prezar por instrumentos que atuem nesse sentido, quanto devem nutrir preocupação a respeito do que fazer com as vagas fraudadas.

Assim, enfrentar o desafio imposto pelas fraudes demanda um exercício muito sofisticado de gestão pública, o qual poderá ser assumido por quem efetivamente prezar pelo alcance da justiça social, base das ações afirmativas.


[2] Somente em 2020, ao menos 06 (seis) universidades brasileiras invalidaram a matrícula de estudantes que promoveram autodeclarações sobre a sua pertença étnico-racial de forma fraudulenta no âmbito de programas de cotas. São as experiências da Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Universidade Federal do Ceará (UFC), todas elas amplamente veiculadas na imprensa digital.

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