Opinião

A vigência da nova Lei de Licitações: um biênio na Torre de Babel

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25 de dezembro de 2020, 15h32

Consta do Antigo Testamento a história da Torre de Babel. Segundo os relatos presentes no Gênesis (11: 1-9), as gerações posteriores ao grande dilúvio haveriam migrado para a terra de Sinar, onde empreenderam a construção de uma torre que alçasse aos céus. As pessoas que ali viviam, descendentes de Noé, falavam a mesma língua, e, portanto, possuíam facilidade para dialogar e executar aquilo que planejavam.

Deus, entretanto, observando a construção da torre, haveria reprovado a ambição e ganância daquele povo de alcançar, com a torre que construíam, o mundo divino. A fim, portanto, de castigar e impedir que as pessoas de Sinar alcançassem seu objetivo, o Senhor desce ao mundo humano, confunde as línguas por eles faladas — sentenciando-os, portanto, a falar idiomas diferentes e a não conseguirem se entender — e os espalha por toda a terra.

Mas o que a Torre de Babel teria a ver com o Projeto de Lei 4253/2020, aprovado no dia 10 de dezembro de 2020 pela Câmara dos Deputados e encaminhado à sanção presidencial? Expliquemos.

O PL da nova Lei Geral de Licitações e Contratos Públicos revogará, após dois anos de sua vigência, a Lei 8.866/93 (atual Lei Geral), a Lei 10.520/02 (Lei do Pregão) e os artigos da Lei 12.462/2011 que estabelecem o Regime Diferenciado de Contratações (RDC). A nova Lei Geral unificará, portanto, em seu corpo — assim como fez o diploma de 1993, a seu tempo — a regulamentação geral das contratações públicas, sintetizando aquilo que há nas leis e demais atos normativos então vigentes, bem como incorporando orientações consolidardes dos órgãos de controle, e concentrando-as em um único texto as regras e princípios pertinentes.

Segundo o artigo 191 do PL, a nova lei entrará em vigor na data de sua publicação. Significa dizer que, uma vez publicado, o diploma normativo já poderá ser aplicado, estando apto a disciplinar contratações de órgãos e entidades públicas. Assim, não haverá à lei a ser sancionada a vacatio legis, ou seja, o prazo de vacância para que os operadores e aqueles que por ela serão afetados assimilem seu conteúdo e se adaptem para a aplicação.

Optou-se, outrossim, por estabelecer um prazo de convivência entre a nova lei e aquelas que irá revogar. Nos temos do parágrafo 2º do artigo 191 do PL 4.253/2020, durante o prazo em que não houver a revogação da atual Lei Geral, da Lei do Pregão e dos dispositivos legais referentes ao RDC, ou seja, nos dois primeiros anos da vigência da nova lei geral, esses quatro regimes gozarão de vigência simultânea e poderão ser aplicados à escolha da administração pública.

Eis que instaurada a Torre de Babel.

Uma vez publicada a lei proveniente do projeto legislativo em comento, o aplicador — administração pública, órgãos de controle, empresas licitantes, consultores — precisará lidar com uma inédita Lei Geral de Licitações e Contratos (com 191 artigos, extensa, burocrática e procedimentalista), com a lei geral já vigente (igualmente extensa e complexa, com seus 126 artigos), e as Leis Especiais do Pregão e do Regime Diferenciado de Contratações. Não apenas, também será necessário compreender entendimentos jurisprudenciais específicos a cada regime, regulamentos e instruções normativas diferentes, além das leis Estaduais, municipais e dos regimes das empresas estatais.

A parte final do mencionado parágrafo 2º do artigo 191 do PL indica, entretanto, que a escolha por um dos regimes deverá constar no edital da licitação, que não poderá combiná-los. Ou seja, muito embora haja o período de coexistência das leis, uma vez que a administração opte por uma delas, não será possível misturar com disposições normativas dos demais no mesmo procedimento licitatório, ainda que em uma diferente licitação possa optar por outro regime.

A mistura de regimes licitatórios foi um equívoco muito comum quando iniciada a vigência do RDC; não raramente seus aplicadores buscavam aplicar o regime diferenciado com base no regime geral da Lei 8.666/1993. Embora a combinação não seja normativamente admitida, é possível se compreender o erro daquele que, por anos acostumado a um determinado procedimento, se depara com novas regulamentações.

O biênio em que conviveremos com esse regime híbrido demandará, certamente, esforços para adaptação daqueles que operam licitações e contratações públicas, seja enquanto atores públicos, seja enquanto atores privados.

Da situação desponta uma falsa aparência de conforto para os órgãos e entidades públicos, uma vez que caberá a esses a escolha do regime que aplicarão, ou seja, da lei que regerá a licitação em particular que irão realizar. Contudo, as demandas provenientes da iminente vigência do novo diploma não se restringem ao aprendizado do seu novo regime, à adaptação de editais, abrangendo, também, necessidades de adequações de recursos humanos (para constituir e capacitar agentes de contratações previstos no artigo 8º do projeto, por exemplo), de infraestrutura e arquitetura de tecnologia da informação para as licitações em meio eletrônico, de criação e manutenção de um ambiente de governança e integridade etc.

Compreendendo as dificuldades da conformação à nova regulamentação, sobretudo para aqueles com menos estrutura e capacidade econômica, o Projeto concede, em seu artigo 176, o prazo de seis anos, contados a partir da publicação da lei, para que municípios com até 20 mil habitantes cumpram alguns de seus requisitos e regras, especialmente aqueles ligados à realização de procedimentos em meios eletrônicos.

Igualmente haverá uma série de demandas ao particular, que precisará compreender o regime adotado pela licitação que participará, assim como do contrato que eventualmente irá executar, num ambiente em que regimes diversos estarão sendo aplicados. Será necessário capacitar o seu capital humano, ao mesmo tempo em que se promoverá adaptações estruturais e procedimentais para as diversas novidades da nova Lei de Licitações e Contratos Públicos.

Há, portanto, o desafio desse mundo com diversos idiomas, em um caminhar que aponta para a construção de um melhor regime para as contratações públicas. Na tentativa de edificar uma torre, um regime licitatório apto a gerar boas contratações, de forma eficiente e promovendo políticas públicas, nos encontraremos em um cenário em que a comunicação certamente será dificultosa e exigirá esforços adaptativos.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico, mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Lisboa e especialista em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.

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