Opinião

Receita Federal x atletas: um novo capítulo nessa eterna briga

Autor

  • Rafael Merchetti Marcondes

    é advogado consultor no escritório Pinheiro Neto doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP MBA em Sport Management pelo Isde e FC Barcelona especialista em Direito Tributário e professor de Direito Tributário na EPD e no IBET.

24 de dezembro de 2020, 11h51

Contexto envolvendo a disputa entre Fisco e atletas
Há décadas os atletas vêm travando uma batalha dura com a Receita Federal quanto à possibilidade de prestarem serviços personalíssimos por meio de pessoas jurídicas.

As autoridades fiscais sempre defenderam a impossibilidade de os esportistas fazerem uso da sua imagem por meio de empresas. Para a Receita Federal, o direito de imagem dos atletas só poderia ser explorado pelo indivíduo (pessoa física), e jamais por intermédio de pessoas jurídicas, por ser dele indissociável.

Como consequência dessa divergência de posicionamentos, quando os esportistas prestavam serviços de publicidade a empresas e aos seus clubes, acabavam sendo autuados pela Receita Federal sob o entendimento de que o recebimento de pagamentos por meio da pessoa jurídica seria um mecanismo artificial, utilizado apenas como forma de reduzir a carga tributária.

Apenas para esclarecer, caso os atletas recebessem a remuneração pela utilização da sua imagem por pessoa física, eles deveriam pagar valores maiores de Imposto sobre a Renda — em relação ao efetivamente pagavam, mediante o recebimento das quantias por meio de pessoa jurídica.

O grande debate então se voltava a uma simples questão. Dispondo a ordem jurídica de diferentes caminhos para se exercer uma atividade, o contribuinte está ou não compelido a seguir o caminho mais oneroso?

Como alcançar uma resposta para essa questão não estava fácil; na tentativa de apaziguar os ânimos, em 21/9/2005, o legislador ordinário editou a Lei nº 11.196 — em seu artigo 129, ela estabeleceu que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, em caráter personalíssimo ou não, se sujeita somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas.

Basicamente, o artigo 129 da Lei 11.196/2005 reconheceu a possibilidade de direitos personalíssimos serem explorados por meio de pessoas jurídicas. Com isso, em princípio, o dilema entre o Fisco e os contribuintes estaria solucionado a favor dos contribuintes, pois o dispositivo reconhece que o direito de imagem, como outros bens personalíssimos, poderia ser explorado por seus detentores por meio de empresas, sem que isso caracterizasse qualquer ilegalidade ou vantagem indevida aos atletas.

Em que pese o disposto no artigo 129 da Lei 11.196/2005, a verdade é que, na prática, a Receita Federal seguiu autuando os atletas, sob a alegação de que o recebimento de contrapartidas pelo uso da imagem diretamente na pessoa jurídica (ao invés da pessoa física) representaria uma operação sem substância ou propósito negocial, eivada de nulidade. Enfim, o Fisco questionou a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005 e desafiou a autoridade do legislador ordinário. Em termos práticos, seguiu autuando os atletas.

A judicialização do debate
Diante dessa postura da Receita Federal, a Confederação Nacional da Comunicação Social ajuizou a Ação Direta de Constitucionalidade nº 66, a fim de que o Supremo Tribunal Federal definisse se o artigo 129 da Lei 11.196/2005 era ou não constitucional.

O resultado veio no último dia 12. A maioria dos ministros da Suprema Corte, definiu, por 8×2, [1] em sessão virtual, ser constitucional o artigo 129 da Lei 11.196/2005. O Supremo Tribunal Federal considerou que a opção pela contratação de pessoa jurídica para prestação de serviços intelectuais (como o direito de imagem de atletas) é legítima.

Essa manifestação não quer dizer que todo aquele que fizer uso de empresa para explorar direito personalíssimo terá sua atividade automaticamente validada. A presunção de legitimidade da operação milita em favor dos contribuintes, é verdade; porém, não impede que a Receita Federal avalie a legalidade e a regularidade dos procedimentos adotados, e mesmo os submeta à apreciação do Poder Judiciário, nos termos do artigo 50 do Código Civil.

A decisão da Suprema Corte segue em linha com o que já havia sido decidido pelo próprio tribunal nos autos da Ação Direta de Preceito Fundamental 324, na qual se reconheceu a possibilidade da terceirização da atividade-fim, sem que a utilização de empresas para prestarem serviços configurasse relação de emprego entre a empresa contratante e o empregado da empresa contratada.

A mensagem enviada pela Suprema Corte
Assim, o Supremo Tribunal Federal parece procurar responder à questão feita incialmente: dispondo a ordem jurídica de diferentes caminhos para se exercer uma atividade, o contribuinte está ou não compelido a seguir o caminho mais oneroso?

A resposta dada pela Suprema Corte é um retumbante "não".

A Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a realização de atividades personalíssimas por meio de empresas.

A utilização de pessoas jurídicas por atletas com o fim de explorar direitos de imagem tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade.

A Receita Federal, ao pautar seu posicionamento, precisa se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade, ao invés de simplesmente rechaçar qualquer mudança estrutural que traga economia tributária. As situações envolvendo fraudes e simulações, devem ser investigadas. Mas essas são situações excepcionais e não devem ser generalizadas.

Perspectivas sobre o tema
O embate entre Receita Federal e atletas está longe do fim. O Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005 e, por consequência da exploração de bens personalíssimos (como a imagem) por meio de pessoas jurídicas, apenas reforça a posição dos atletas e a sua autonomia em organizar suas atividades de forma que melhor lhe convier.

Enfim, a decisão da Suprema Corte apenas encerra um capítulo da disputa entre Fisco e contribuintes dando ganho de causa aos particulares. Mas a guerra não deve ficar por aqui. Com o reconhecimento da constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005, as discussões devem migrar para outro âmbito, o da regularidade da estrutura empresarial adotada pelo atleta.

Na verdade, isso já vem acontecendo. A Receita Federal agora, procura demonstrar que a personalidade jurídica da empresa deve ser afastada, alcançando-se a figura do atleta, na condição de sócio, sob alegações de fraude e simulação.

A postura contestadora do Fisco é importante, mas somente nos casos em que houver comprovação de que o atleta faz uso da empresa de forma irregular. O que não pode e não deve mais ser tolerado é a presunção (infundada) de que toda empresa de atleta que faz uso da sua imagem é uma estrutura irregular. Essa foi a clara mensagem passada pelo Supremo Tribunal Federal.

O ônus da prova, não esqueçamos, é de quem acusa, no caso, a Receita Federal. Qualquer acusação só pode ser levada adiante mediante a apresentação de provas.

Segue o jogo!


[1] O ministro Roberto Barroso se declarou suspeito e não votou.

Autores

  • é advogado, consultor no escritório Pinheiro Neto, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP, MBA em Sport Management pelo Isde e FC Barcelona, especialista em Direito Tributário e professor de Direito Tributário na EPD e no IBET.

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