Opinião

História do Direito Constitucional brasileiro: como narrar?

Autor

24 de dezembro de 2020, 6h47

Os manuais tradicionais de Direito Constitucional no Brasil valem-se, comum e irrefletidamente, de recortes metodológicos baseados exclusivamente nas constituições brasileiras para contar a nossa história constitucional. Não é incomum que teses e dissertações acadêmicas no mundo jurídico também assumam esse formato. Muitas vezes, os autores e autoras concentram-se apenas na análise superficial de nossas constituições, de seus textos e temas.

Esse modo de contar a história do Direito Constitucional brasileiro pode até ser o mais fácil e intuitivo, mas acredito que não seja o mais interessante. Definitivamente, essa não deve ser a única forma de contar a nossa história constitucional.

É claro que constituições são importantes para o Direito Constitucional (quero causar um estranhamento com essa afirmação). Mas outros elementos, tais como a forma que esses diplomas são interpretados por cortes e outros órgãos de controle, a existência de formas inusuais de alteração de uma ordem constitucional, práticas forenses e relações interpessoais muitas vezes agregam informações preciosas à narrativa da história constitucional de um país. Cumpre, no mínimo, considerar esses fatores conjuntamente em trabalhos futuros que tenham em vista o relato de nossa história constitucional.

Não podemos esquecer que o STF, apesar das interferências sofridas ao longo de sua história, permaneceu na narrativa do Direito Constitucional brasileiro como um de seus protagonistas. Além disso, o STF permaneceu sem grandes rupturas institucionais. Embora o Brasil tenha sido palco de vários golpes, na história republicana o STF jamais sofreu uma ruptura completa. O STF sofreu interferências de regimes autoritários, como em 1931 (aposentadoria compulsória de ministros e "reforma da Justiça"), mas nunca foi dissolvido.

Vale observar, além disso, que o STF era muito mais importante em nosso passado constitucional do que algumas pessoas costumam supor. É claro que a visibilidade da corte precisa ser vista em perspectiva — hoje a informatização e a difusão de dados sobre a corte é avassaladora. Mas a sua interpretação histórica do Direito Constitucional brasileiro, por si só, é uma narrativa da nossa história do Direito Constitucional e precisa ser levada a sério.

Em sua história, no Brasil, ainda que de forma inconsciente, a forma de interpretar o Direito público sempre foi muito mais caleidoscópica do que imaginamos: as mesmas pedras, reposicionadas, acabaram constituindo novas imagens constitucionais. Mas, em essência, mudados alguns pequenos elementos, acabam sendo as mesmas pedras. Essa construção do Direito Constitucional brasileiro acaba sendo delineada por uma narrativa feita pelo STF, mais do que pelas constituições.

Logo, necessário seria compreender os períodos do STF — como corte que constrói narrativas constitucionais — do que apenas olhar para as nossas constituições. Talvez uma periodização das interpretações do STF possa auxiliar na compreensão do nosso Direito Constitucional. Considerar outras instituições, como o Tribunal de Contas e suas interpretações constitucionais pode ser igualmente interessante.

Ao longo do século XX, o STF, por meio de seu processo decisório, foi responsável pela comunicação da legislação entre diversos períodos constitucionais brasileiros.

Na história constitucional brasileira — ao menos na história autoritária do Direito Constitucional brasileiro — decretos e atos carregam uma importância constitucional fundamental (ainda que muitas vezes nefasta). Vejamos um exemplo. O Decreto nº 19.398, expressão jurídica do golpe de 1930, de instituição do Governo Provisório, é praticamente ignorado pelos constitucionalistas. E, ao lado de uma série de decretos do Governo Provisório, é praticamente uma constituição no sentido de sua abrangência constitucional. Entre 1930 e 1934, o Poder Judiciário continuou a aplicar a Constituição de 1891, condicionando-a às sombras desse decreto. Mas esse decreto tem um valor constitucional importante, talvez (inclusive) pelo fato de contradizer tantos valores do constitucionalismo liberal. Mas, por isso, não seria ele mesmo uma expressão de nossa narrativa constitucional? Seu antagonismo não deveria ser levado a sério? Quando citado, por que o caráter secundário a ele atribuído nos livros de Direito Constitucional?

A prática forense também abre um mundo para a narrativa do Direito Constitucional brasileiro. Mais um exemplo pode ser elucidativo. A Constituição de 1934 previu o instituto constitucional do mandado de segurança. Em sua reação autoritária, a Constituição de 1937 não manteve o instituto. Leitura simplista nos levaria a crer que, sob a Constituição de 1937, o instituto do mandado de segurança não teria tido uma história. Pesquisa ao arquivo do STF, não obstante, indica que, entre 1937 e 1946, mandados de segurança foram impetrados no STF — independentemente dos resultados dos pleitos, isso sugere fortemente que, quando se trata do mandado de segurança, não é possível negligenciar a existência de uma narrativa constitucional baseada nas práticas forenses.

Narrativas pessoais também importam. É o Direito Constitucional das coxias, feito não apenas nos bastidores da cena constitucional, mas calcado em relações entre agentes públicos, culturas individuais e interesses pessoais. Muitas vezes essa dimensão é negligenciada pelos acadêmicos, pois é realmente difícil estabelecer as relações precisas entre os mundos pessoais das personalidades públicas e suas atitudes no mundo efetivamente público. Mas isso não significa que essas informações sejam irrelevantes ou que não seja possível propor um método capaz de inserir esses elementos em uma narrativa mais ampla sobre Direito Constitucional. Conhecemos algumas das complexidades envolvendo o STF na Era Vargas se dermos atenção, por exemplo, aos diários de Getúlio Vargas e às cartas trocadas entre ele e os ministros da Corte. Conhecemos das trajetórias dos ministros do STF se tivermos acesso, quando houver, aos seus arquivos pessoais.

Enfim, qual a melhor forma de contar a história do Direito Constitucional brasileiro? Possivelmente, uma abordagem que inclua seriamente o STF nessa narrativa, questões forenses e atuações de bastidores pode nos oferecer um retrato bastante rico do nosso passado constitucional. Somado a esses fatores, a compreensão das nossas constituições pode ser mais acurada. Em matéria de história do Direito Constitucional brasileiro, para usar — com licença poética — de uma expressão de François Dosse ("O Império do Sentido"), há vários "mundos disponíveis" que precisam ser explorados.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!