Opinião

A Constituição e a valorização das famílias sob a perspectiva da pluralidade

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23 de dezembro de 2020, 6h59

A doutrina, há tempo, vem estudando as relações familiares e seus diferentes desdobramentos, tanto que não há unanimidade quanto ao conceito de família — aliás, qual é? Família é a do seu João e da dona Maria? A do Pedro e do Mário? A da Carmen que cria sozinha a pequena Sofia, filha socioafetiva? É a família católica ou a muçulmana? A da dona Flor e seus dois maridos?

Talvez a resposta seja encontrada em desvendarmos o que todas estas famílias, independentemente da sua origem ou crença, têm um comum? Parece-nos que o Supremo Tribunal Federal encontrou a resposta (RE 1.045.273) e criou um tipo ideal, mas deixemos para comentá-la mais adiante.

O conceito de família tem relação direta com a forma como determinada coletividade vê o mundo — tanto que muda conforme o tempo vai passando, o local de onde estamos falando, bem como o momento que estamos vivendo.

O processo em discussão no STF tratou sobre a possibilidade de divisão da pensão por morte entre duas uniões estáveis simultâneas, uma heterossexual e a outra homossexual, ambas revestidas e amparadas pelo cumprimento dos quatro requisitos: convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Não se trata, portanto, de uma relação passageira, quinzenal, às escondidas, tanto que ambas tiveram o reconhecimento judicial.

Entretanto, por maioria, a Corte entendeu ser inviável o reconhecimento da concomitância de duas uniões estáveis e o faz com base na monogamia, cuja previsão se encontra no Código Civil — portanto, a pensão, neste caso, não poderá ser dividida.

Ocorre que a bigamia se aplica tão somente ao casamento e não se pode deixar de reconhecer que a descriminalização do adultério (2005) foi um importante passo para reconhecer o afastamento da monogamia como regra, haja vista a ausência de efeitos jurídicos para seu descumprimento. Podemos impor a monogamia como regra, ainda que não haja um direito pessoal violado? Mesmo não fazendo mais parte do ordenamento jurídico, o STF entendeu que sim!

Parece-nos que este modelo arcaico apresentado como o ideal pelo Supremo afasta o que a própria Constituição Federal traz em seu bojo: a valorização de pessoas e a compreensão das famílias sob a perspectiva da pluralidade. Neste sentido, vemos uma clara interferência do Estado na comunhão de vida instituída pela família, vedado pelo ordenamento jurídico.

Lembramos que aqui não se discute o direito a percepção de pensão por morte para amantes, namorados, mas sim de relações construídas em décadas e de conhecimento público.

O reconhecimento da necessidade de proteção da pessoa, independentemente da sua escolha conjugal, relativiza a densidade normativa desse princípio em nome da proteção de um bem jurídico maior. As famílias são, portanto, legitimamente plurais e devem observar a igualdade de seus membros e a liberdade em sua constituição. Não cabe ao Estado escolher uma e "premiá-la" com o direito a pensão, única e exclusivamente por ter sido a primeira relação. Aliás, a primeira que se tem notícia, a primeira que se conseguiu provar. Será sempre assim?

Ricardo Calderon, na sua obra sobre o Princípio da afetividade no direito de família, dispõe que a família precede o Direito; isto é constante e inafastável. Em decorrência direta, é o discurso jurídico que deve captar as alterações ocorridas nas formas de relacionamentos, e não os relacionamentos que devem se adaptar às categorias jurídicas; portanto, o Direito cria suas próprias realidades, entretanto não foi o que ocorreu nesta decisão do Supremo Tribunal Federal.

A partir de agora, as famílias devem se enquadrar no entendimento da Corte Superior, sob pena de permanecerem invisíveis.

Não há mais espaço para hierarquização das relações familiares, pela consagração da dignidade humana a partir da legitimação da liberdade de escolha das constituições de família.

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