Opinião

A regularização fundiária e a Constituição - ADI 5.623

Autor

  • Manoel Castilho

    é advogado e foi procurador do INCRA juiz federal em vários estados (PR MT MS DF e SC) juiz do TRF/4 secretário Geral da Presidência do STF assessor da Comissão Nacional da Verdade e assessor de ministros no STJ e STF.

23 de dezembro de 2020, 13h20

O tema recorrente no domínio dos bens públicos, a regularização da ocupação de terras públicas federais, é a questão que mais recentemente tem sensibilizado a administração e a opinião pública a ponto de ultrapassar os limites de problema jurídico administrativo para constituir-se em assunto de predominante importância política e econômica. Ademais da notória repercussão na realidade jurídica da disciplina dos bens originariamente públicos ocupados por particulares, lícita ou ilicitamente, tem se mostrado sobremaneira relevante a repercussão dela na vida econômica e social dos vários segmentos nacionais envolvidos.

O apossamento e a utilização de bens públicos por particulares há muito tem sido objeto de discussão, análise e principalmente da busca de soluções que compatibilizem o domínio público e seu regime de supremacia em face dos particulares com as justas expectativas de ocupantes e posseiros, particularmente os mais pobres e excluídos, pelo reconhecimento da legitimidade de sua conduta, respeitando os direitos respectivos de cada qual, os dos demais cidadãos, e a irrestrita obediência aos valores constitucionais vigentes ao longo dos anos.

O postulado fundamental que se extrai dessa proposição e em especial do texto constitucional é que a destinação preferencial das terras públicas federais disponíveis na faixa de fronteira ou a das terras dominicais públicas desafetadas é a reforma agrária. Ocorre que, na contramão dessa política constitucional expressa (artigo 188 da Constituição), o Poder Executivo federal através do Incra tem recentemente instituído planos de regularização fundiária mediante aplicação de normas infraconstitucionais (Lei 13.465 e 13.178) desviadas e desatentas do bloco de constitucionalidade. Assim, a regularização de ocupação sobre terras públicas da União promovida pelas medidas legais citadas incentivadas pelo governo federal estimulando a alienação sem licitação, sem limites de extensão (ou muito extensa), e sem exigir a satisfação dos demais requisitos legais e constitucionais, de um lado ofende a necessidade lógica da prévia identificação das terras públicas disponíveis, na maioria devolutas, e igualmente desobedece a Constituição, pois as terras públicas ocupadas irregularmente, as não aproveitadas ou mal aproveitadas, deverão ser retomadas e direcionadas aos programas de reforma agrária.

Essa ideia geral foi objeto de discussão na ADI 5.623, proposta pela Contag para que seja dada a essas regularizações o sentido da reforma agraria, e já conta no Supremo Tribunal Federal com cinco votos favoráveis à obrigatória adequação dos programas de regularização de ocupação de bens públicos federais aos programas de reforma agrária. Até agora, pendente o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, o ponto relevante dessa decisão é que a corte aceitou o entendimento de que as medidas de regularização fundiária, sejam apreciadas de modo administrativo ou em demandas judiciais, ficam sempre sujeitas à estrita obediência ao regime constitucional da propriedade fundiária pública ou privada e aos planos de reforma agrária e de política agrícola.

Em outras palavras, para a constitucionalidade da regularização de ocupação (Lei 13.465) ou da ratificação de "títulos" (Lei 13.178) se haverá de exigir, como requisito essencial, em qualquer caso, a satisfação integral do regime constitucional da função social da propriedade (artigo 186 da Constituição) e da obrigatória destinação das terras disponíveis para a reforma agrária e atenção à política agrícola (artigo 188 da Constituição) como condição para regularização. Esse sempre foi o padrão da política federal de regularização. Mas, desde as alterações da Lei 11.952/2009 (Programa Terra Legal Amazônia) pela Lei 13.465 de 2017 inclusive a recente legislação expansiva (MP 910 e PL 2.633, e em especial a Lei 13.178 com relação à ratificação das terras de fronteira), a política governamental, por impulso especial do presidente da República, tem se modificado de modo abusivo e deliberadamente estendido as áreas de regularização de terras devolutas federais com critérios cada vez mais elásticos e perdulários, beneficiando ocupações na maioria ilícitas as quais, de regra, também não observam ou não cumprem os padrões de exigência das diretrizes constitucionais. Em outras palavras, a introdução de padrões liberais afrontosos delas, recentemente adotados pelo Poder Executivo federal a cargo do Incra (que de resto o tem delegado sem critério), ofende diretamente a Constituição, dilapida patrimônio público, permite a devastação ambiental e florestal e, mais gravemente, lesa o direito subjetivo público da população em geral ao meio ambiente equilibrado e protegido assim como o direito de todos à distribuição justa e equitativa das terras do patrimônio público.

O acesso às terras públicas federais disponíveis é para todos e todas e não apenas para os ocupantes irregulares, clandestinos e ilegais que promovem invasão e na sequencia se habilitam para a regularização em verdadeiro estimulo ao desmatamento e a usurpação do domínio público. Demais, como regra, a regularização das ocupações de terras públicas federais não afetadas, devolutas ou não, dentro ou fora da Amazônia Legal (excetuadas sempre as terras indígenas em qualquer estágio de reconhecimento; as de proteção ambiental, as de ocupação quilombola e as devolutas afetadas) somente poderá ser deferida aos ocupantes que nelas demonstrarem moradia habitual (por si ou outrem) e cultura efetiva, com observância de todos os requisitos constitucionais da função social da propriedade, do respeito a política agrícola e com absoluta afinidade para com os pressupostos do artigo 188 da Constituição, bem assim, quando excedentes do limite de 2.500 hectares, da autorização prévia do Congresso Nacional (artigo 49, XVII, da Constituição).

Daí a conclusão de que essas proposições legislativas citadas, as quais buscam insistentemente flexibilizar e liberalizar os rigores da disciplina constitucional com privilegio à propriedade privada, desatendem ao interesse público e o bem comum se aplicadas sem a rigorosa e escrupulosa conformidade com a Constituição, assim como implicam na inversão da lógica constitucional que privilegia a redistribuição, e não a concentração de terras que maltrata diretamente o patrimônio público protegido.

É preciso ter presente que a política constitucional de reforma agrária e da função social da propriedade constituem cláusulas pétreas na medida que servem ao princípio da propriedade no sentido de que são instrumentos para permitir a todos e todas, como garantia individual, o acesso às terras públicas não afetadas. À vista disso, a política de estado ou de governo — como as que se implantaram via da legislação mencionada instaurada por MP do presidente da República — quer indiretamente estimular novas ocupações irregulares empurradas pela perspectiva de liberalidade na futura regularização tanto como pela expectativa da fácil legalização, e, por elas, o inevitável apoderamento antecipado de terras virgens ou ainda protegidas na natureza por pretendidos ou supostos titulares de posse. Há assim, o inevitável uso de métodos agressivos ao meio ambiente e aos ocupantes originários, indígenas ou tradicionais e principalmente com afronta aos critérios constitucionais da igualdade, de socialização e acesso popular aos recursos fundiários em atenção ao propósito constitucional de fixação e preservação da agricultura familiar e de pequeno porte, ou seja, um claro desrespeito à Constituição.

Em outras palavras, o relaxamento dos controles de acesso aos bens públicos por particulares sem a estrita observância dos valores consagrados na Constituição no sentido que já lhe deu o voto da ministra relatora na ADI 5.623 não só vai inteiramente de encontro aos valores constitucionais fundantes da República quanto ofende os próprios e afirmados objetivos de igualdade, segurança jurídica e regularidade fundiária socialmente desejáveis, já que permite obliquamente a desordenada destruição de recursos naturais e a indiscriminada expulsão de populações originarias e tradicionais. Tal é desenganadamente inconstitucional e acaba desnaturando a finalidade do patrimônio público e da propriedade (ou da posse) de terras rurais públicas ou privadas como valor social e libertador para transformá-las em pura ou mera mercadoria e poder acumulado.

Por tais razões, o julgamento da ADI 5.623 que deverá confirmar essa compreensão protetiva das terras rurais da União, tem extraordinária importância e se revela definidor de uma necessária responsabilidade da administração pública em geral e do Poder Executivo federal perante a nação brasileira.

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    é advogado e foi procurador do INCRA, juiz federal em vários estados (PR, MT, MS, DF e SC), juiz do TRF/4, secretário Geral da Presidência do STF, assessor da Comissão Nacional da Verdade e assessor de ministros no STJ e STF.

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