Escritos de Mulher

O julgamento sob holofotes: aplausos e vaias nos tribunais de opinião

Autor

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

23 de dezembro de 2020, 10h07

Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum (…).

– O senhor não tem permissão para sair. O senhor está detido. – É o que parece – disse K. – Mas por quê? – perguntou então. – Não fomos incumbidos de dizê-lo. Vá para o seu quarto e espere. O procedimento acaba de ser iniciado e o senhor ficará sabendo de tudo no devido tempo…

(O processo, Franz Kafka).

Spacca
Assim, hoje, iniciam-se os processos criminais. O acusado, que nunca foi chamado a prestar qualquer esclarecimento às autoridades policiais ou ao Ministério Público e não se supunha investigado, é surpreendido em sua residência, às seis da manhã, com um mandado de busca e apreensão sem que ele saiba o porquê. Da mesma forma, seu local de trabalho é devassado, para a preocupação de sócios, funcionários, clientes e investidores.

“Não se pode perder o elemento surpresa”, afirmam os órgãos acusadores. Mas, sob tal fundamento, reputações são destruídas, empresas esfaceladas, contratos desfeitos sem que se tenha dado à parte investigada o benefício da dúvida e a presunção de inocência. Um estrago que nem o tempo, nem a absolvição ao final do processo, são capazes de remediar.

Enquanto vê sua casa ser revirada, o acusado precisa pedir indicação de advogado aos amigos, dar explicações à família, aos colegas de profissão, aos vizinhos e, pior: à imprensa. Ela é a primeira a saber da operação e a receber as decisões que, não raro, permanecem – por longo período – sob sigilo e inacessíveis à defesa. Na prática, o defensor e seu cliente tomam conhecimento da imputação por veículos de mídia, ou pelas peças avulsas que, rapidamente, circulam pelas listas de WhatsApp. Uma absoluta subversão às garantias processuais e constitucionais.

Em caso de prisão provisória a situação é ainda mais grave, pois amplifica o estardalhaço e, por razões óbvias, torna impossível qualquer reação pessoal do acusado, além de mais árdua a missão dos advogados.

Esse é o processo penal do espetáculo, que transforma um importante instrumento de limitação do poder punitivo em “privilegiado objeto de entretenimento”, como diz Rubens Casara[1]. Os casos criminais, por diversos fatores – pessoas envolvidas, tipo de crime ou consequências do delito – despertam a atenção do público, ávido por uma atraente novela.

Seria o ônus de se defender a liberdade de imprensa? De fato, em uma democracia, impõe-se a premissa de Albert Camus, de que “uma imprensa livre pode, é claro, ser boa ou ruim, mas, certamente, sem liberdade a imprensa sempre será ruim”[2]. Isso é inconteste.

Ainda assim, é preciso saber: a que propósito determinadas informações, por vezes sigilosas, chegam aos jornalistas? É possível um veículo de comunicação exercer sua liberdade, sem descartar a presunção de inocência?

Sobre a primeira pergunta, é comum ver a mídia divulgar peças sob sigilo ou que sequer constam dos autos judiciais. A espetacularização dos processos criminais visa a pressionar a opinião pública, para interferir no julgamento da causa. A estratégia não é nova, tampouco exclusividade brasileira.

Em artigo publicado sobre a operação mãos limpas, o então juiz Sergio Moro apontou que “a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial” (leia aqui), frase, aliás, incompatível com a imparcialidade exigida aos magistrados.

Em casos de grande repercussão, diz-se que a opinião pública está pressionando delegados, promotores ou juízes. É comum que autoridades justifiquem suas manifestações nesse tipo de pressão. Mas, afinal, como ela se forma, ou é formada? Ela representa a opinião de quem? Como ela pode influir no julgamento de uma ação penal?

A opinião pública não é o somatório das opiniões das pessoas que integram o público. Não é uma grande reunião de pensamentos e consciências individuais. Ela é apenas a opinião fabricada pelos meios de comunicação de massa, muitas vezes respaldada por formadores de opinião e estimulada por autoridades que deveriam respeitar o sigilo e o tempo de tramitação dos processos judiciais.

Segundo Bourdieu, a mídia – sobretudo a que comanda os meios de comunicação – opera “uma seleção e uma construção do que é selecionado” para ser exibido. De modo geral, o “princípio de seleção é a busca do espetáculo, do sensacional. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e lhe exagera a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico”[3]. Isso cai como luva aos processos criminais, notadamente em casos de prisão.

Jornalistas criteriosos preocupam-se com as fontes e a realidade factual. Respeitam balizas éticas e têm zelo pela presunção de inocência. Não inventam fatos inexistentes, não criam factoides. Sem dúvida, a liberdade de imprensa e uma boa comunicação dos acontecimentos relacionados a uma ação criminal podem denunciar abusos e contribuir para apontar erros judiciais, servindo de instrumento para um julgamento justo. Por outro lado, há veículos cuja preocupação é apenas oferecer o melhor espetáculo para sua audiência. Estes, descontextualizam fatos ou falas e omitem informações, gerando um descompasso entre o que realmente acontece nos autos do processo e o que é retratado na mídia.

Tal descompasso, contudo, nem sempre é culpa dos profissionais de comunicação. Em um maxiprocesso como a "lava jato", por exemplo, em que mesmo os advogados têm dificuldade de conhecer de imediato os volumosos autos – diferentemente do Ministério Público, que tem a visão do todo – é improvável que as equipes de jornalismo compreendam as intrincadas discussões probatórias e processuais. Não à toa, no âmbito daquela famosa operação, o procurador da República Deltan Dallagnol realizava coletivas de imprensa, a pretexto de “explicar os sofisticados esquemas criminosos de modo que todos pudessem assimilar”[4], segundo ele.

A iniciativa de tornar a linguagem jurídica mais acessível aos leigos seria louvável, não fosse o fato de que não há, nesse tipo de coletiva ou de acesso à imprensa, uma paridade de armas entre acusação e defesa. Como alerta António Hespanha, a intenção por trás dessas novas formas de comunicação do Direito, que utilizam gráficos, imagens e associações, é “condicionar o interlocutor” por “meios muito mais sofisticados e sustentados na técnica e nos saberes sobre a cognição”. Para o autor, isso “corrói o ideal de um diálogo justo, transparente e livre” e serve para “manipular testemunhas, jurados ou juízes”[5].

Ele aponta a estratégia, em países como Estados Unidos e Portugal, de utilizar técnicas comunicativas próprias da mídia para simplificar a narrativa dos processos judiciais, especialmente em matéria de prova, selecionando os fatos mais chamativos e vibrantes. A história passa a não ser mais construída com base nas provas, mas, sim, com vistas a torná-la mais atraente e semelhante a uma série de TV. Um dos meios para isso é o chamado “gancho”: concluir o noticiário, deixando no ar um suspense do que está para acontecer na ação em curso.

A consequência dessa estratégia é que os espectadores transportam, para os casos jurídicos, os estereótipos da ficção – o bem contra o mal, “heróis” vs “vilões”. Com a frequente transmissão dos julgamentos pela mídia, o “pensamento raciocinante”, ou seja, argumentativo, é substituído pelo “pensamento associativo”, aquele formado por imagens desgarradas, sem uma sequência lógica, cujos espaços vazios de informação (eis que a imprensa, de fato, não informa tudo, nem tem como informar) são preenchidos por “pré-compreensões” (estereótipos, modelos) existentes na conceituação popular. As informações fragmentadas são complementadas pelas visões de mundo, política e pelos preconceitos individuais, uma circunstância particularmente perigosa, pois pode levar a uma injusta e prévia condenação do réu.

Nesse cenário há, ainda, o fator tempo: o ritmo da mídia não é o mesmo de um processo judicial. Prova disso é que, enquanto a imprensa pede posicionamento os advogados ainda tentam se inteirar da causa. Por isso, muitas vezes, as manifestações parecem, aos olhos de quem as lê, demasiadamente genéricas. Assim o são, pela responsabilidade de ainda não se conhecer o processo e porque a defesa do acusado se faz nos autos. O descompasso também se evidencia quando a pessoa é inocentada, anos depois: tal decisão não recebe a mesma visibilidade do que a acusação inicial. O estrago está feito.

Basta ver o caso da Escola Base, em São Paulo, que “viria a se transformar em símbolo de julgamento público pela mídia” (leia aqui). Os acusados foram presos e expostos na imprensa antes do término das investigações. Jornais populares publicavam manchetes como “Kombi era motel na escolinha do sexo”[6]. A escola foi depredada.

Os suspeitos optaram, então, por conceder entrevistas sobre os fatos. Alguns jornalistas começaram a questionar as incongruências da versão acusatória, uma evidência de que as boas publicações podem, sim, contribuir para um julgamento justo. Eles foram inocentados e os jornais fizeram mea culpa de erro que pode ser indenizável, mas é irreparável. Sabe-se que um dos acusados sofreu infarto, outra vive com tranquilizantes e um terceiro se separou da mulher e está em uma cidade do interior (leia aqui). Além dos danos, o ódio gerado nas pessoas também não se desfaz com naturalidade.

Bourdieu aponta que a televisão é capaz de “desencadear sentimentos fortes, frequentemente negativos” como, por ex., o ódio, o que “implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização ou de desmobilização. No processo penal do espetáculo, isso tem especial relevância, e pode influenciar o julgamento de ações penais, em decorrência de uma divulgação excessiva do caso, que potencializa uma “campanha de mídia contra o réu”, no dizer de Simone Schreiber[7]. Reverberadas as notícias nos tribunais da internet, as pessoas são acusadas, julgadas e condenadas (ou “canceladas”, como se diz) na velocidade da luz.

Há nesses casos midiáticos, em regra, uma espécie de retroalimentação entre os representantes do Poder Judiciário e a imprensa, o que pode influenciar a esperada imparcialidade dos julgadores. Os vazamentos seletivos alimentam a mídia com informações referentes aos processos em julgamento, enquanto esta mantém aceso o interesse da população nas notícias e pressiona os julgadores a decidirem conforme o clamor popular.

Não há democracia sem imprensa livre. Justo por isso, o poder de comunicação precisa ser exercido com responsabilidade e irrestrito respeito a todas as garantias constitucionais, para informar fatos e não para manipular. Não haverá conflito entre liberdade de imprensa e presunção de inocência, se ambos forem respeitados, indistintamente, tanto pelos representantes do Poder Judiciário, quanto pelos órgãos de mídia. Uma ação penal não deve ser iniciada ou concluída sob aplausos ou vaias e seu julgamento deve ser realizado por magistrados, não por tribunais de opinião.

[1] CASARA, Rubens Processo Penal do Espetáculo (e outros ensaios). Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 28.

[2] CAMUS, Albert. Albert Camus, Quotes, Quotations, Famous Quotes. Createspace Independent Publishing Platform, 2016.

[3] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 23 e 25.

[4] DALLAGNOL, Deltan. A luta contra a corrupção. A Lava Jato e o futuro de um país marcado pela impunidade. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2017, 146.

[5] HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito. Op. Cit., p. 421.

[6] http://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/o-caso-da-escola-base-versao-2009.

[7] SCHREIBER, Simone. A Publicidade Opressiva De Julgamentos Criminais. Uma investigação sobre as consequências e formas de superação da colisão entre a liberdade de expressão e informação e o direito ao julgamento criminal justo, sob a perspectiva da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 412.

Autores

  • Brave

    é advogada criminal; mestre em Direito pela UFRJ e especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição; coordenadora do IBCCRIM no RJ; vice-presidente da ABRACRIM-RJ; e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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