A Justiça vai ao teatro

Tribunal do Júri: lugar por excelência do promotor e do advogado criminal

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23 de dezembro de 2020, 7h31

*Reportagem publicada no Anuário do Ministério Público Brasil 2020, lançado em 14 de dezembro no canal da ConJur no YouTube. O Anuário está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa

Antes que a “lava jato” e operações midiáticas similares tivessem se transformado em um grande sucesso de público, a face mais visível do Ministério Público era a do acusador do Tribunal do Júri. Muitas vezes recontado nos filmes de tribunal, o julgamento de réus por homicídio sempre foi noticiado com destaque na imprensa mais popular. E quem detém a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida no sistema judicial brasileiro é o Tribunal do Júri, instituição secular que tem origem nas primitivas sociedades humanas. No Brasil, foi instituído em 1822, o ano da independência.

No início, o júri só julgava crimes de imprensa. Na fase republicana passou a julgar crimes dolosos contra a vida. Alguns dizem que foram escolhidos esses crimes pois mexem com o lado emocional das pessoas. Reconhecido pelo inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, está regrado pelo Código de Processo Penal, nos artigos 406 a 497.

Nos seus julgamentos devem ser assegurados: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, que são o homicídio doloso, o infanticídio, o aborto, o auxílio, o induzimento ou a instigação ao suicídio, todos eles em suas formas tentadas ou consumadas. Cabe também ao júri julgar os crimes comuns que são conexos aos crimes dolosos contra a vida.

Em 2018, segundo dados do Atlas da Violência, levantamento feito em parceria pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, o Brasil registrou quase 58 mil homicídios, o equivalente a uma taxa de 27,8 mortes por 100 mil habitantes. Trata-se de uma redução de 12% em relação ao ano anterior, quando o total de assassinatos atingiu o seu ponto mais alto (65.602 caos) desde o início da série histórica, em 1979. Apesar disso, 80% dos crimes de homicídio não são esclarecidos.

De acordo com o relatório Diagnóstico das Ações Penais de Competência do Tribunal do Júri 2019, do Conselho Nacional de Justiça, em 2018 havia no Judiciário 185 mil processos criminais do júri em tramitação, dos quais 35 mil no TJ-RJ e 23 mil no TJ-SP. A maioria dos processos de competência do Tribunal do Júri julgados entre 2015 e 2018 resultou em decisões que não culminaram com a punição do réu (52%). Dentro desse universo, preponderam decisões pela extinção da punibilidade, o que pode indicar ineficiência. A prescrição ocorreu em 14% dos julgamentos. A condenação ocorreu em 48% dos casos decididos.

Os feitos do júri adotam o denominado procedimento especial bifásico. A primeira fase é a de formação da culpa (iudicum acusationis), que tem início com o recebimento da denúncia e termina com uma das seguintes decisões: pronúncia (quando o juiz entende ser o caso de levar para júri); impronúncia; absolvição sumária; desclassificação. Essa fase conta com a intervenção exclusiva do juiz togado. A segunda é a fase de julgamento da causa (iudicium causae), que se inicia com a preparação do processo para julgamento em plenário, logo após a pronúncia, e é concluída com a sentença.

A relevância do bem jurídico tutelado e a plenitude do direito de defesa justificam a adoção de um procedimento mais complexo do que o rito comum previsto no CPP para as demais infrações penais. O desembargador do TJ-SP Guilherme Souza Nucci, com tese de doutorado dedicada ao júri, sustenta que a plenitude de defesa é um princípio específico do júri e é mais forte até do que a ampla defesa, já que os réus serão julgados por pessoas que não conhecem a lei.

Wagner Soares/STJ - GO
Para o doutrinador, a plenitude de defesa se assegura, por exemplo, quando o juiz verifica que o processo tem muitos volumes e dá à defesa um prazo maior para se manifestar. Se o advogado estiver falhando na defesa, o juiz deve declarar o réu indefeso e nomear outro. “A defesa tem menos poder. O julgamento imotivado dos jurados precisa conceder ao defensor no plenário uma defesa a mais ampla possível”, afirma.

A instrução processual é, assim, mais extensa, havendo longo debate em plenário. Ao final de um dia inteiro ou até de uma semana inteira de julgamento, os jurados chegam a um veredicto de maneira colegiada e popular, com o sigilo resguardado.

O júri é, portanto, o palco da vida. Local por excelência do promotor e do advogado criminal, ali está a condição humana exposta: sentimentos, motivações, mazelas, intolerância, preconceitos e circunstâncias humanas. O crime de homicídio não tem classe social, raça, gênero, religião. Qualquer um pode vir a cometê-lo. Sob o olhar do juiz, o confronto entre advogados e promotores é para convencer os jurados de uma decisão que selará o destino do réu. Imagem mais conhecida da Justiça, retratado em filmes e obras literárias, o júri por vezes é um fenômeno de audiência.

O júri gravita em torno de alguns elementos. O espaço judiciário, com a posição mais elevada do juiz ao centro, o réu abaixo e de costas para o público, os jurados ao lado, obrigatoriamente calados e atentos, as testemunhas hesitantes algumas, seguras outras; o tempo e os atos, sempre regidos pelo juiz; o vestuário judiciário, com a beca e a toga com o papel de permitir a ruptura com o mundo comum e de lembrar as responsabilidades elevadas da tarefa a ser desempenha no Tribunal do Júri; os atores judiciários, que, com o gesto e a palavra judiciária, vestidos de preto, dão ao povo a unidade da Justiça. Todos esses elementos, combinados, conferem ao júri um caráter quase místico.

O diferencial do júri é o seu não tecnicismo: aos jurados cabe apenas responder “sim” ou “não” para condenar o réu. A decisão é de acordo com a consciência do Jurado e não segundo a lei. “O julgamento popular é um julgamento de bom senso, assim foi a vontade do constituinte”, define Nucci.

O Tribunal do Júri é composto de um juiz presidente e 25 jurados, dos quais sete serão sorteados para compor o conselho de sentença. Os requisitos para a participação são: idade mínima de 18 anos; não ter sido processado criminalmente; idoneidade moral; ser eleitor; residir na circunscrição do Tribunal do Júri. O jurado pode ser convocado ou apresentar-se como voluntário. E não recebe nada pelo serviço prestado à sociedade. 

O promotor, que responde pela acusação, trabalha junto com a Polícia Civil nas investigações e na produção das provas, de modo a buscar o maior número de elementos possíveis para condenar os envolvidos. Para Alexandre Rocha Almeida de Moraes, 2º promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de São Paulo, no júri a sensação de fazer Justiça é plena e imediata. “A gente tem essa realização na hora do veredicto, com abraços de parentes de vítimas, com a convicção de ter feito justiça”, diz.

Se a advocacia teve um príncipe no júri, o advogado Waldir Troncoso Peres, o Ministério Público também teve o seu: Roberto Tavares Lyra, “o mais brilhante dos promotores de Justiça brasileiros”, na definição do advogado criminalista e depois ministro do Supremo Tribunal Federal Evandro Lins e Silva. Juntamente com Nelson Hungria integrou a comissão revisora do Projeto do Código Penal, que resultou no Código Penal de 1940, ainda em vigor. Foi ele o responsável pelo fim da onda de absolvição de criminosos passionais, quando ainda era comum se alegar a perturbação dos sentidos e da inteligência para absolvê-los.

Em O Que Virá Depois das Prisões — Penitência de um Penitenciarista, publicado em 1957, Lyra revelou seu sincero arrependimento por ter enviado ao cárcere centenas de pessoas, acreditando e pedindo para que todos acreditassem (juízes e jurados) que os encarcerados voltariam à sociedade penitenciados e aptos ao convívio comum. A obra é um libelo contra a prisão como método penal, e escrita por um promotor de Justiça. Disse Lyra: “Querem resolver os problemas da prisão? Ouçam os presos".

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