Trabalho Contemporâneo

A nova (in)correção trabalhista

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22 de dezembro de 2020, 8h00

As discussões da comunidade jurídica trabalhista desta semana foram pautadas pela surpreendente decisão do STF acerca do índice de correção monetária dos créditos trabalhistas na Justiça do Trabalho, que fixou, após o ajuizamento e citação, o uso da Selic em substituição a TR acrescida de juros de mora de 1% ao mês, produzindo um resultado prático pior para os trabalhadores.

O caso exemplifica maravilhosamente bem a época de extrema insegurança jurídica em que vivemos, sendo um paradigma dos problemas produzidos para a sociedade quando o Poder Judiciário adota, como padrão, o chamado neoconstitucionalismo ou pós-positivismo, julgando-se a partir de uma pauta de valores para além das regras estabelecidas pelo Poder Legislativo.

Os “progressistas” da área trabalhista, em geral defensores do perfil ativista da magistratura, esperando uma atitude vinculada à promoção da justiça social condizente com sua ideologia independentemente do programa criado pelo legislador — tal como ocorreu com os que defenderam a inconstitucionalidade e a inconvencionalidade da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2020), entre outros a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — Anamatra —, que, em evento por ela produzido, criou através de “enunciados” esta tese, experimentam, agora, o amargo remédio de ver a chancela de uma ideia distinta, que não lhes agrada, pelo Poder Judiciário.

Curiosamente, o julgamento do STF ora analisado também foi provocado, entre outras entidades, pela mesma Anamatra, que ajuizou duas ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema, imaginando obter resultado favorável aos trabalhadores (sim, magistrados postulando uma interpretação da legislação favorável aos trabalhadores), o que de certa forma legitima a atuação proativa do STF, pois boa parcela da magistratura trabalhista, os associados daquela entidade, buscaram a via judicial para ver sua concepção de justiça afirmada na mais alta corte do país.  Um cenário difícil de explicar, em que pese a legitimidade ativa reconhecida no julgamento, ainda mais porque a atuação do Supremo não saiu bem como se esperava.

Independentemente de se concordar ou não com a decisão do STF, e aqui registro meu entendimento pessoal contrário ao que restou decidido, o fato é que ela vincula toda a magistratura, com a modulação ali estipulada, ressalvando a possibilidade de alguma modificação em sede de embargos declaratórios, se estes forem apresentados pelos interessados.

A correção monetária do crédito trabalhista passou a ser, portanto, pela utilização do IPCA-E e, após o ajuizamento e citação, pela taxa Selic, que já engloba os juros de mora, reduzindo a atualização de ao menos 12% ao ano para cerca de 2%, o que não preserva o crédito da inflação do período.

Pois bem, o que fazer?  Os ativistas de plantão devem comemorar.  Não por este resultado que não lhes agradou, mas pelo STF deixar claro que é possível julgar para além da legislação positivada.  A escolha feita, a partir de um argumento econômico, mostra como o Poder Judiciário pode concretizar o slogan de antigo seriado televiso, Jornada nas Estrelas, dando impressão de que cada juiz pode entrar na sua Enterprise “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.  O problema é quando a viagem termina em rumo totalmente diferente do desejado, como aconteceu no presente caso.

A dura lição para quem defende o tipo de juiz Hércules, o semideus da racionalidade, capaz de identificar os melhores valores e concretizá-los em cada caso, superando as escolhas do legislador, é a mesma já decantada pela doutrina há tempos: o império da arbitrariedade judicial.  Por todos que lutam para superarmos este estado de coisas, cito o colega Fábio R. Gomes, Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro e Professor da UERJ, que acaba de lançar a obra “O Retorno ao Positivismo Jurídico: Reflexões críticas de um juiz desencantado”, onde de forma brilhante critica os rumos adotados pela magistratura ativista e propõe um modelo de positivismo para superarmos o impasse em que vivemos.  Leitura obrigatória.

Imagina-se que o trauma produzido pela nova correção trabalhista determinada pelo Supremo faça com que haja uma mudança comportamental, um saudosismo do porto seguro das regras determinadas pelo legislador, uma retomada de postura que já imperou na comunidade jurídica trabalhista, onde a influência dos valores, travestidos de princípios, deve ocorrer dentro dos casos estipulados pelo legislador, basicamente nas lacunas do ordenamento jurídico, preservando-se e aplicando-se as regras que não conflitem diretamente com o texto constitucional.

Perderemos completamente o controle se, após cada decisão que não agrade, surja uma resistência ativista fomentando alternativas para se evitar o impacto da decisão indesejada.  Aprendemos a lição?  Pelo jeito, não.  Já se ouve no seio da magistratura vozes entoando cânticos de guerra para o “bom” combate a favor do trabalhador, fomentando a advocacia a buscar alternativas para driblar a perda econômica advinda da recente decisão judicial.

Fala-se em condenações por dano moral, fixação de multas para cumprimento judicial de obrigações de pagar quantia certa, indenizações suplementares por perdas e danos etc.  Fala-se, portanto, em usar mais ativismo para combater o suposto “mal” ativismo.  O remédio amargo que não agradou deve ser combatido com maior dose do mesmo remédio, numa eterna lei do retorno, que, ao fim e ao cabo, tende a matar todos por envenenamento.

Estamos intoxicados com os rumos que a jurisprudência tomou no Brasil, as instituições não aguentam mais as invasões de competências decorrentes da judicialização da vida cotidiana, os cidadãos não suportam mais a insegurança jurídica a que estamos submetidos.  Precisamos parar e repensar.  Ainda há tempo.

Necessitamos reconhecer que a culpa do ativismo não é apenas de um ou outro órgão judicial.  Como bem questionado pelo Desembargador do Trabalho do Rio de Janeiro Ivan Alemão, em mensagem de whatsapp que ora se divulga com a devida autorização, “Por que aqueles que concordam que o congresso deve legislar, o governo executar e o judiciário julgar, ainda não acabaram com o ativismo judicial que não só julga mas legisla e agora está até agindo como executivo? Porque todos gostam quando a decisão é a seu favor.  Prender um político inimigo, declarar um artigo de lei inconstitucional, pré-julgar uma opinião que servirá numa futura fundamentação de decisão, é sempre bem vinda quando coincide com nossos desejos. Só criticamos o ativismo judicial quando não gostamos do resultado”.

Não há novidade a ser proposta, não há glamour na alternativa possível para retomarmos o papel essencial do Direito, que é produzir segurança e previsibilidade para a vida em sociedade.  Precisamos simplesmente reconhecer que a tentativa de produção de justiça a partir da racionalidade de cada juiz pela interpretação dos valores fracassou, sendo corajosos para darmos um passo atrás.  Seguir no caminho que já se mostrou danoso é uma atitude imprudente que não condiz com a própria finalidade do Direito.

Se a vontade é de colocarmos em prática valores caros à sociedade, que iniciemos por demonstrar o da humildade.  Erramos.  E precisamos recalcular a rota: que façamos o retorno ao positivismo como proposto por Fábio Gomes antes que fiquemos, todos, desencantados com a magistratura.

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