Opinião

A nova Lei de Licitações e o velho problema da validade da lei penal no tempo

Autores

  • Tiago Caruso

    é advogado criminalista pós-graduado em Compliance pela FGV/GV-Law doutorando e mestre pela PUC-SP.

  • Rodrigo Pardal

    é professor de Direito Penal do Damásio Educacional especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público doutorando e mestre pela PUC-SP.

22 de dezembro de 2020, 19h32

Foi aprovado pelo Senado, em 10 de dezembro de 2020, o Projeto de Lei 4.253/2020, que, além de estabelecer novas normas gerais de licitação e contratação para a administração pública e modificar leis correlatadas, visa a revogar a atual Lei 8.666/1993 e alterar o Código Penal [1]. O projeto vai, agora, para sanção ou veto do presidente da República [2].

No texto do projeto, o artigo 178 dispôs os novos tipos penais, que passarão a integrar o Título XI da Parte Especial do Código Penal, dentro do rol dos "crimes praticados por particular contra a administração em geral", que contempla um rol de crimes comuns, ou seja, que podem ser praticados por qualquer pessoa, seja funcionário público ou não.

Nas disposições transitórias e finais, o artigo 190 do PL determina a revogação dos crimes previstos nos artigos 89 a 108 da Lei 8.666/1993 na data da publicação desse novo diploma (inciso I) e a manutenção da parte não penal da Lei 8.666/1993 pelo prazo de dois anos, contados da publicação da pretensa lei nova (inciso II). Já o parágrafo 2º do artigo 191 do PL estabelece que naquele prazo de dois anos, a administração poderá optar por licitar de acordo com a lei nova ou com as disposições da atual Lei de Licitações, devendo indicar expressamente a opção escolhida no edital, sendo vedada a aplicação combinada de ambas as leis.

Esses novos dispositivos trazem, pelo menos, dois grandes desafios para a determinação da validade da lei penal no tempo, um velho problema da dogmática penal.

Primeiro desafio: a revogação de tipos penais e inclusão de novas condutas típicas repercutem nos antigos brocardos latinos abolitio criminis, novatio legis incriminadora, novatio legis in mellius e novatio legis in pejus, com a consequência prática de determinarem a (ir)retroatividade da lei penal (se lex gravior ou lex mitior), que mitigam outro longevo brocardo geral do Direito tempus regit actum [3].

Segundo desafio: a manutenção da vigência da parte não penal de uma lei, que informa a lei penal, por prazo maior do que a revogação da parte penal desta mesma lei reverbera no ancestral brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege certa, uma das quatro consequências do princípio da legalidade [4].

Três novos tipos penais trazidos pela pretensa nova lei ilustram o primeiro desafio.

O novo delito proposto no artigo 337-E proíbe "admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei" com pena de reclusão de quatro a oito anos e multa. Este novo tipo penal se diferencia do atual crime do artigo 89 da Lei 8.666/1993 [5] por deixar de ser um crime próprio quanto ao sujeito ativo, ampliando o seu alcance, e por cominar pena mais grave, o que impede a sua retroatividade.

Já o artigo 337-F [6] proposto para substituir o crime do artigo 90 da atual Lei de Licitações [7] também não retroage porque as suas penas mínima e máxima foram dobradas. É interessante notar a opção do legislador de aumentar as penas dos novos crimes dos artigos 337-E e 337-F, impedindo a possibilidade de realização de acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do Código de Processo Penal.

Houve, ainda, a criação de um novo tipo penal, disposto no artigo 337-O, denominado "omissão grave de dado ou de informação por projetista [8]". Felizmente, o desnecessário e midiático adjetivo "grave" contido no nomen juris não foi repetido na descrição típica. Em que pese o nome do crime, proíbe-se tanto a omissão quanto as ações de modificar e entregar, para a Administração, levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, frustrando o caráter competitivo da licitação. Como não há crime sem lei anterior que o defina (artigo 1º do Código Penal), esse novo crime também não retroage.

Mais do que demandar a revisitação aos critérios que permitem ou impedem a retroatividade da lei penal, a nova Lei de Licitações proposta demanda o resgate dos critérios que determinam o momento de validade de uma lei penal em branco, que há tempos repousa nos silenciosos braços de Morfeu [9].

A proliferação de leis penais em branco revela a intensa acessoriedade de outros ramos do Direito para a proibição penal de determinadas condutas que, se por um lado confere certa dinâmica a uma ciência essencialmente estática, como é a ciência do Direito Penal, por outro, dificulta a compreensão do momento de validade da nova proibição penal proposta, pois implica na avaliação do conteúdo do complemento do tipo, se benéfico ou prejudicial [10].

A nova Lei de Licitações proposta prevê que os novos tipos penais enunciados entram em vigor na data da publicação desse diploma, mesmo momento em que os atuais crimes previstos na Lei de Licitações vigente são revogados (artigo 190 do PL 4.253/2020). Contudo, em relação a parte não penal, o projeto concedeu mais dois anos de vigência para a atual Lei 8.666/1993, permitindo que, nesse prazo, a administração pública possa optar por licitar de acordo com a lei nova ou de acordo com a atual Lei de Licitações (artigo 191, parágrafo 2º, do PL 4.253/2020).

Portanto, nos dois anos seguintes à publicação da nova lei proposta, há duas leis gerais de licitações aptas a serem adotadas e a surtirem efeitos, inclusive, na esfera penal, porque há crimes que podem ser praticados em contextos de certames que dependem da complementação de outros dispositivos extrapenais previstos na própria Lei de Licitações. O atual crime do artigo 89 da Lei 8.666/1993, que visa a ser modificado pelo artigo 337-E do projeto são exemplos de lei penal em branco: são as disposições extrapenais previstas na própria Lei de Licitações que determinarão quando ocorreu uma contratação direta fora das hipóteses previstas para dispensa ou inexigibilidade do certame.

Quando há dois regimes jurídicos administrativos existentes (no mencionado prazo de dois anos), qual deles complementará a norma penal? O preenchimento do conteúdo da proibição penal ficará à mercê da escolha da administração pública?

Afinal, na nova lei proposta foi criada, por exemplo, nova hipótese de inexigibilidade de licitação na "aquisição ou locação de imóvel cujas características de instalações e de localização tornem necessária sua escolha" (artigo 73, inciso V). Na atual Lei 8.666/1993, a aquisição ou locação de imóveis com tais características demandam a realização do certame, sob pena de se praticar o crime do respectivo artigo 89. Optando a administração por um regime jurídico ou outro, mudaria também a incidência do tipo penal (atual artigo 89 ou novo artigo 337-E)?

Argumentar que a lei nova proposta, ao prever mais uma hipótese de inexigibilidade de licitação, é, nesse ponto, mais benéfica e, portanto, retroage, não resolve, por completo, a delimitação da validade da lei penal em branco no tempo. Duas posições parecem visíveis.

A primeira, aplicando, sempre, o complemento da lei penal que beneficiar o réu, pouco importando a lei escolhida no edital do certame. O fundamento dessa posição é considerar o complemento da lei penal em branco como elemento do tipo objetivo, formando o tipo de injusto e integrando, portanto, a lei penal que deve retroagir sempre que benéfica ao acusado. Contudo, essa posição parece gerar um problema lógico: a opção por determinado regime jurídico licitatório impõe ao administrador e aos concorrentes observância à norma adotada, não outra que não foi a escolhida e não se aplica ao certame. O Direito não pode trucar possibilitando, em um primeiro momento, que a administração pública escolha o regime jurídico de sua preferência e exigindo, depois, a observância ao outro regime não escolhido, sob pena de uma punição, inclusive, penal.

Para fugir dessa crítica, uma segunda posição complementaria o tipo penal com as disposições relativas ao regime jurídico escolhido pelo licitante quando da publicação do edital. Todavia, tal posição implica em reconhecer o problema político da lei penal em branco: o licitante, nesses casos, teria competência legislativa para definir a conduta típica, violando, de saída, o princípio da legalidade. A ordem jurídica não permite que o administrador público decida, desde o plano legislativo, sobre a (a)tipicidade da sua própria conduta futura.

Espera-se que esses problemas, aqui indicados, sejam resolvidos antes da entrada em vigor da nova Lei de Licitações proposta. Do contrário, sendo sancionada como está, essa nova lei resgatará, de vez, o Direito Penal transitório da sua sonolência dogmática — o que pode explicar a insistência na repetição daquelas expressões em latim —  demandando da doutrina e da jurisprudência uma resposta satisfatória para a seguinte pergunta: se sancionada, em que momento as disposições penais dessa nova lei terão validade?

Não se desconhece que é tarefa do jurista racionalizar o ordenamento jurídico em um sistema coerente e coeso. Contudo, cumprir essa tarefa de integrar o sistema jurídico, corrigindo antinomias e preenchendo lacunas, é um verdadeiro desafio sobretudo quando não há ordem, mas uma desordem normativa.


[1] A notícia já foi dada também pela ConJur e a íntegra do PL 4.253/2020 pode ser acessada em https://www.conjur.com.br/2020-dez-10/senado-aprova-lei-licitacoes-texto-segue-sancao.

[3] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. V. 1. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1977, pp. 118-119.

[4] ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. T. I. Madrid: Civitas, p. 141.

[5] "Artigo 89 — Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena — detenção, de três a cinco anos, e multa".

[6] "Artigo 337-F — Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: Pena — reclusão, de quatro anos a oito anos, e multa".

[7] "Artigo 90 — Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena — detenção, de dois a quatro anos, e multa".

[8] "Artigo 337-O — Omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse. Pena — reclusão, de seis meses a três anos, e multa".

[9] O estudo das leis penais em branco já reanimou outros debates, como em relação à natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. Nesse sentido, cf. HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo. São Paulo: Marcial Pons, 2016, passim.

[10] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, pp. 51-52.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-graduado em Compliance pela FGV/GV-Law, doutorando e mestre pela PUC-SP.

  • é assistente jurídico em segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público e pela Universidade de Salamanca (Espanha), pós-graduando em Filosofia do Direito pela PUC-MG, mestre e doutorando em Direito Penal pela PUC-SP, professor de Direito Penal do Damásio Educacional e coautor da obra "Lei Anticrime" e de artigos na área penal.

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