Tribuna da Defensoria

Indicadores demográficos se correlacionam com índices prisionais?

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22 de dezembro de 2020, 8h04

Não é incomum ver a seguinte "contextualização": o Brasil possui a terceira maior população prisional do mundo, mas, contudo, entretanto, isso é um reflexo do fato do Brasil possuir a sexta maior população do mundo.

Com efeito, o silogismo está correto quanto aos números absolutos. Mas é importante destacar que a população prisional brasileira é a única entre as tops mundiais que ainda cresce em ritmo acelerado. Os EUA e a China atingiram seu pico em 2008, quando iniciaram um processo de desencarceramento. A Rússia vem diminuindo sua população prisional há mais de 20 anos, possuindo, hoje, menos presos do que o Brasil possuía em 2014. Outras populações prisionais líderes no ranking, tal como Índia, Tailândia e Turquia, ou mantém uma certa estabilidade, crescendo pouco mais de 50% nos últimos 10 anos, ou, como no caso do México, também estão em franco declínio[1]. O Brasil, por sua vez, mais do que dobra sua população prisional a cada década e está no caminho de repetir essa estatística.

Se analisarmos o padrão de crescimento da população prisional Brasileira a partir dos dados do IBGE[2], veremos, no entanto, que nem sempre foi assim. Antes da década de 70, o crescimento de nossa população prisional era estável e relativamente 'baixo', levando 20 anos para sair de 15.000 em 1954 e chegar em 35.000 presos em 1974. Na década de 70 a taxa de crescimento acelerou e, a partir de 1980, as próximas décadas veriam a população carcerária aumentar em uma progressão geométrica com um crescimento médio de 130% por década[3]. A dramaticidade desse crescimento fica mais fácil de perceber visualmente no seguinte gráfico[4]:

IBGE e Infopen

Figura 1 – População Prisional Brasileira 1954-2018. Fonte IBGE e INFOPEN

Mas o que ocorreu entre os anos 80 e 90 a justificar esse crescimento? A resposta é multifatorial, até mesmo porque, se o crime não existe como uma realidade unívoca e universal, como ensinam Manuel da Costa Andrade e Jorge de Figueiredo Dias[5], o mesmo se aplica aos processos punitivos.

Evidentemente que o pequeno espaço de um artigo opinativo não permite a análise aprofundada das causas e consequências do processo de encarceramento em massa brasileiro. Ainda assim, com base nos dados apresentados acima, é possível traçar o boom do encarceramento no Brasil para o início dos anos 90, como resultado do giro punitivo e agravamento do populismo penal, juntamente com o fortalecimento da guerra às drogas. O que está por trás desses processos – os esforços das elites brancas em preservar hierarquias raciais e sociais combinadas com a prevalência de um habitus autoritário institucional — ficam para outra oportunidade, aqui veremos apenas um desses pilares: o giro punitivo brasileiro. De toda forma, o resultado foi a produção de um sistema de justiça criminal populista, classista e bastante eficiente naquilo que faz melhor: encarcerar a marginalidade social.

Mas o que é o “giro punitivo”? Em poucas palavras, o giro punitivo representa o abandono de uma política criminal supostamente baseada em evidências, que tratava exclusão social com soluções de bem-estar social e deixava o ideal de reabilitação guiar a imposição das penas. No lugar desse projeto civilizatório que imperou durante boa parte da segunda metade do século XX, surge um novo projeto, centrado em uma retórica de combate ao crime e respostas guiadas pela opinião popular. Nessa nova estrutura punitivo-populista, crime e castigo são centrais à governança e o ideal de reabilitação é substituído lógica de armazenamento e incapacitação como forma de contenção de riscos.

Nos Estados Unidos e boa parte dos países europeus, o giro punitivo ocorreu durante os anos 70/80 como decorrência de processos sociais, culturais e econômicos. No Brasil, no entanto, esse período foi dominado por outra retórica, graças a um regime militar ilegítimo que precisava convencer a população de sua necessidade. Assim, ao invés da centralização do discurso político no combate ao crime, os ditadores brasileiros tomaram outro caminho: a luta contra o comunismo, a luta contra a corrupção e a expansão econômica.

No eixo econômico, os militares elaboraram um plano envolvendo o desenvolvimento da indústria, o controle de salários e empréstimos internacionais. Considerando o cenário favorável da economia internacional, com ampla disponibilidade de crédito, o plano ‘funcionou’ e, sob o regime militar, o Brasil passou por um ‘milagre econômico’. Os militares investiram em infraestrutura, construindo estradas, represas e estádios de futebol faraônicos, bem como desenvolvendo a indústria nacional, o que ajudou a promover a ideia de que a economia estava em crescimento.

Ainda assim, apesar do ambiente repressivo, o ideal de reabilitação foi mantido na legislação e os acadêmicos brasileiros nos anos 70 tinham razões para acreditar que o Sistema de Justiça Criminal iria encolher, quiçá desaparecer. Olhando para trás nesse período, Nilo Batista escreve:

Ao olhar para o futuro, o prognóstico comum era a redução do sistema de justiça criminal, do qual o maior número de conflitos deveria ser subtraído. "Descriminalização", "desjudicialização", "despenalização" foram expressões frequentes em publicações especializadas nos anos 70, lado a lado com "ultima-ratio", "Direito Penal mínimo", "abolicionismo" e outros apontando para a mesma direção.[6]

Ocorre que, após as crises do petróleo de 1973 e 1979, os recursos internacionais facilmente disponíveis desapareceram. O "milagre" acabou, e o Brasil estava, mais uma vez e como voltaria a ficar novamente, quebrado. Como consequência, os militares perderam o apoio popular e, em 1985, o regime iniciou a transição para a democracia.

Durante a redemocratização, com o processo político de volta ao normal, não demorou muito até que os políticos tupiniquins adotassem a retórica de combate ao crime para garantir votos. Não é de se espantar que no período de 1985 a 2011 o ritmo de publicação de leis penais por ano dobrou em comparação com o período de 1940 a 1985[7]. Talvez o maior exemplo da adoção dessa retórica, a Lei 11.343/06 veio para reafirmar a subserviência brasileira na guerra às drogas estadunidense e demonstrar que populismo penal não possui partido político[8]. A Lei de Drogas, é importante dizer, não deu início ao nosso processo de encarceramento em massa, mas certamente colaborou muito com ele, catapultando o número de presos por crimes relacionados ao comércio de entorpecentes de 31.520 em 2006 para 151.782 em 2016[9].

Embora o ideal de reabilitação ainda esteja presente na legislação, ele dificilmente é visto fora do papel. Na prática, segundo o Depen[10], apenas 12% da população carcerária tem acesso a atividades educacionais, embora 75% dos presos sejam analfabetos ou sequer terminaram o ensino fundamental. Apenas 15% das pessoas presas tem acesso a postos de trabalho e quase sempre em tarefas domésticas não profissionalizantes. Programas de reingresso são tão difíceis de achar que pessoalmente não conheço nenhum. Em suma, enquanto a legislação brasileira estabelece que a prisão serve para prevenir crimes – através da dissuasão e reabilitação — e retribuir o dano, só o último acontece na prática e com aval do discurso político.

Nessa lógica, quanto mais presos, melhor, o que é evidenciado pelo contínuo agravamento de uma política encarceradora a partir dos anos 90, que não se importa com a ausência de vagas (sem nem contar os mandados de prisão em aberto) e desumanidade das prisões brasileiras, mesmo após o STF reconhecer o estado de coisas inconstitucional em relação a elas (ADPF 347).

Todos os grandes encarceradores já perceberam o equívoco dessa prática, seja pela inviabilidade fiscal — que me parece o caminho errado — seja pela desumanidade e custo social. O Brasil, ao contrário, escolhe pisar no acelerador, produzindo mais leis penais e agravando cada vez mais as condições de cumprimento de penas (vide, por exemplo, o pacote "anticrime").

Assim, não há qualquer contextualização entre a dimensão populacional brasileira e a nossa massa carcerária. O Estado brasileiro, repita-se, optou pelo encarceramento e pela lógica de armazenamento e incapacitação o que comprovadamente contribui para o aumento dos índices de reincidência e criminalidade. No entanto, no atual panorama de centralidade política do combate ao crime e de pânico moral em relação ao criminoso, a abolição da prisão ou mesmo o desencarceramento são anátemas.

O único caminho adiante é partindo do pressuposto de que o encarceramento em massa existe e decorre de uma opção política. Aos estudiosos, cabe a revisão das bases, analisando não apenas as causas da criminalidade, mas, em especial nesse momento, os processos de reação do estado e da sociedade, como forma de entender o fenômeno e produzir estratégias para refreá-lo.

IBGE (1954–1990). Anuário estatístico do Brasil. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/

Infopen (2017). Levantamento nacional de informações penitenciárias – Atualização: Junho 2016. Disponível em http://depen.gov.br/

FIGUEIREDO DIAS, Jorge; COSTA ANDRADE, Manuel da. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra Editora: Coimbra, 1984.

SOUBHIA, Fernando Antunes. Risk and Retribution: the Brazilian Mass Incarceration Process. Dissertação de Mestrado submetida à City, University of London: Londres, 2018.

Batista, Nilo. Só Carolina não viu – violência doméstica e políticas criminais no Brasil, in Mello, A. (ed). Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. Rio de Janeiro: Revan, 2007, pp. 9-29

[1] Dados obtidos no World Prison Brief. Banco de dados sobre dados prisionais de todos os países do mundo sediado pela Bierkbek, University of London: https://www.prisonstudies.org/world-prison-brief-data

[2] Utilizo os dados prisionais de 1954 a 2016 disponíveis nos arquivos do IBGE e nos informativos do DEPEN.

[3] É importante destacar que nos últimos anos os dados do CNJ e os dados do DEPEN são extremamente conflitantes. Enquanto o DEPEN informa uma população prisional de 725 mil em 2019, o CNJ aponta o número de 812 mil. Assim, gráfico seria ainda pior se fosse utilizado esse último dado.

[4] SOUBHIA, Fernando Antunes, Op. Cit.

[5] Op. Cit., p. 157

[6] Op. Cit. p.2

[7] Pesquisa da ALPEC disponível em https://www.inej.net/pages/investigaciones/politica-criminal.php

[8] Aliás, o populismo penal transcende as raias do poder legislativo, afetando diretamente o processo decisório dos julgadores que acabam recorrendo ao uso desmedido da prisão – em especial a preventiva – como forma de apaziguar os ânimos.

[9] De acordo os dados do IBGE e do DEPEN já referenciados, em 2006 o número de presos por tráfico de drogas e crimes relacionados correspondia a 12% do total da população prisional. Em 2016 esse percentual já era de 28%.

[10] INFOPEN, 2016.

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