Opinião

Precisamos falar sobre o Operador Nacional do Sistema Elétrico

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22 de dezembro de 2020, 8h41

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) teve alguma culpa pelo apagão no Amapá? Não tenho ideia. A resposta depende de levantamento dos acontecimentos ("o que houve?"), da delimitação das competências do operador ("o que o ONS tinha que fazer?") e da qualificação de algum desses acontecimentos como falha ou omissão do operador ("o ONS deixou de fazer ou fez mal o que tinha que fazer?").

O tema destas linhas é menos empolgante, mas é tão ou mais importante porque se repropõe a cada apagão ou disfunção do sistema elétrico nacional. Está indicado pela palavra em itálico que aparece na pergunta inicial: culpa. O ONS precisa ter culpa para responder por alguma coisa que desandou e que está ligada às suas competências? No falar comum, sim. Mas estou interessado no significado jurídico do termo. Nessa dimensão, a culpa separa dois mundos completamente diferentes de responsabilização, aquele em que se responde com "culpa" (responsabilidade "subjetiva") e aquele em que se paga mesmo sem "culpa" (responsabilidade "objetiva").

Não dá para explicar aqui a diferença entre uma coisa e outra. Fique o leitor com isto: no primeiro caso, o lesado precisa provar, além de tudo o mais, também uma propriedade específica da conduta do sujeito que está na mira de tiro: o fazer desleixado ou temerário ("negligência", "imprudência", "imperícia", sem falar do "dolo"). No segundo caso, da responsabilidade objetiva a que estão submetidos, por exemplo, os concessionários de serviços públicos, por força do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição — é mais fácil apontar o dedo na direção do responsável, porque esse requisito sai da check list. A diferença pode parecer abstrata mas o impacto dela na hora de decidir quem paga o pato é enorme. A que tipo de responsabilidade o ONS está sujeito, subjetiva ou objetiva?

Normalmente, o ponto de partida é a busca pela "natureza jurídica": da pessoa ONS ou da atividade que essa pessoa realiza. A expressão um tanto metafísica nada mais é do que um atalho para referir, de modo resumido, o conjunto das normas que regem o sujeito e/ou o que ele faz.

Passados quase 25 anos de sua criação, a carteira de identidade jurídica do ONS segue um mistério. Quando alguma bronca mais complicada surge, a etiqueta setorial propõe uma saída à francesa bem educada que formula generalidades tão fáceis de enunciar quanto pouco úteis. Começou com o STF, que falou do ONS como uma "entidade sui generis" nas ADIs 3.100 e 3.101 e segue sempre que se qualifica o ONS como um "ente híbrido", um "sujeito atípico" etc. Ele pode ser tudo isso, mas não dá para ficar nessas fórmulas vazias. Questões relevantes como o regime de responsabilidade ou a relação do ONS com entes públicos (TCU, Aneel etc.), precisam de mais. Também não adianta dizer pomposamente que "o ONS é uma pessoa jurídica de Direito privado, associação civil sem fins lucrativos, dotada de mera autorização de polícia e submetida ao regime de Direito privado com pontuais derrogações de Direito público". Além de complicada, a fórmula é insuficiente para o que nos interessa. Essa respostaque sugere um regime de responsabilidade de tipo tradicional, subjetivo — até pode estar certa, mas ela precisa de fundamentos. Não é porque a lei declara que o ONS é a tal associação civil etc. que tudo se esclarece. Há fundadas dúvidas quanto à conclusão fácil de que sua responsabilidade é aquela velha de dois mil anos, por culpa, feita para um mundo simples, de sujeitos privados — muito diferente daquele nosso, das largas e complexas organizações e onde vige uma concepção própria acerca da repartição de riscos oriundos do agir que possui dimensões públicas.

Algumas razões estão ligadas às atividades do operador (suas competências), outras à sua configuração (composição, estrutura, papel do poder público em sua governança etc.).

Primeiro elemento que nos faz pensar: a principal competência do ONS, a operação do sistema elétrico, faz parte das entranhas da indústria elétrica. Ela não é tarefa da periferia, algo acerca do que podem pairar dúvidas sobre se pertence, ou não, ao setor. Tal como — ou mais do que — geração, transmissão e distribuição, a operação do sistema é uma atividade da gema. Na origem, essa era uma ocupação interna da empresa de energia verticalizada e monopolista. Com o passar do tempo — com a integração dos sistemas e com a complexidade que essa integração trazia — a operação do sistema ganhou autonomia orgânica (sejam lembrados os grupos de operação da década de 70 do século passado). E ganhou essa autonomia justamente porque a operação era cada vez mais complicada e necessária à indústria. Esse movimento de especialização é típico: no início, só tínhamos a usina; depois, a usina e a rede; depois, a usina, as linhas de transmissão e as linhas de distribuição; hoje, temos tudo isso e mais a comercialização e a operação do sistema. Essa última só se desligou completamente das fases de geração e transmissão quando ganhou autonomia jurídica, caracterizada pelo seu isolamento e atribuição a um sujeito específico (Lei 9.648/1998). Mas a ordem dos fatores não altera o produto: a operação do sistema elétrico resta um "serviço de energia".

Aliás, não é um mas é o serviço de energia. Sem operação não existe, fisicamente, energia para o consumidor (agentes individuais podem cair, o operador não); ela é economicamente determinante para setor: é dali que sai a ordem de mérito das usinas que irão gerar energia; é dali que sai o custo marginal de operação, a prestação dos serviços ao sistema, a geração fora da ordem de mérito etc. Para quem sabe do que estou falando, é inútil dizer o que essas coisas significam e qual é a relevância que elas têm para o sistema hoje e para o sistema amanhã. Resumindo: é o ONS que concretamente atua os ideais de segurança energética e elétrica do Sistema Interligado Nacional, dos quais todo o resto depende.

Depois, e diferentemente do que se passa com a maior parte dos outros agentes, as atividades do ONS alcançam a todos. O operador não se relaciona com beltrano ou fulano, mas com o universo dos sujeitos — geradores, transmissores, distribuidores e consumidores — pendurados no sistema. O raio de sua ação é transversal e geral. E mais: na operação em tempo real, o ONS é rei, ou em linguagem mais seca, o ONS é um monopolista (sim: monopolista, não natural, mas por razões técnicas). Ou seja: a operação do sistema é algo realmente importante, único e de largo alcance.

Ela é tão importante e única que está pautada por exigências não encontradas em quaisquer outras funções da indústria — mesmo aquelas qualificadas como serviços públicos. Essa disciplina aproxima a operação de uma típica função pública (lato sensu): transparência, isonomia, neutralidade técnica e ausência de intuito lucrativo. Ou seja: a operação está no miolo dos serviços de energia elétrica e, por isso mesmo, é regida por normas que sequer se encontram na prestação dos individuais serviços públicos.

Se passamos da competência mais relevante do ONS às demais, o panorama não muda. Pense-se nos princípios que regem a figura do livre acesso; no papel do ONS para o planejamento da expansão do sistema. Nada disso é periferia do setor; tudo isso está severamente regulado, disciplinado e fiscalizado. Tudo isso tem uma dimensão sistêmica e condominial.

O operador não é um outsider setorial, um "auxiliar de serviços gerais". É um agente setorial a pleno título. Talvez o mais importante dos agentes setoriais. Está alcançado pelo artigo 21, XII, "b", da Constituição.

Bom, mas aí vêm os rótulos, colados sobretudo ao sujeito e à sua estrutura: a lei diz que o ONS é uma pessoa jurídica de Direito privado, chega até a qualificá-lo como uma associação civil; fala em autorização, e não em concessão e por aí vai. Isso não impressiona. Mas mesmo que se queira — erradamente — dar mais peso às questões formais, de qualificação e estrutura da pessoa do operador, em detrimento do que ele efetivamente faz, é bom ter cuidado porque o telhado é de vidro: a solene declaração de que o ONS é a tal associação civil etc. vem meio que desmentida pelo que acontece depois.

Associação civil que precisa de autorização (artigo 13, caput, da Lei 9.648/1998)? Isso não contraria o artigo 5º, inciso XVIII, da Constituição? Para fugir do pepino, melhor dizer o óbvio: a autorização não é para a criação da associação, é para que ela possa exercitar uma tarefa que é um típico serviço de energia reservado à União. Não é um ato certificador de polícia (artigo 170, parágrafo único, da Constituição); é um título para realizar uma atividade reservada (artigo 21, XII, "b", da Constituição). Que o conferimento da honraria seja dado por ato unilateral e não contrato de concessão, muda pouco. Aliás, muda alguma coisa: aproxima o ONS de uma estatal, que tem suas funções atribuídas por lei antes que por contrato. O uso da autorização, nesses termos, não desconfirma, antes, confirma a suspeita de que estamos lidando com alguém especial.

Mais perto dessa conclusão se chega quando entra em linha de consideração o modo como a tal associação civil é concebida: nenhum espaço à autonomia da vontade é reconhecido a seus membros (compulsórios…). Tudo é predeterminado pela regulação (leis, regulamentos, atos administrativos normativos): composição, estrutura, mecanismos de deliberação, governança etc. Que associação civil é essa que, além de exercitar tarefa reservada à União (via autorização), ainda miudamente organizada por atos estatais? Associado se é não porque se quer, mas porque o Estado manda ser; e se é nos termos e limites em que o Estado manda. Nem concessionários de serviço público são tão vigiados. Não fosse suficiente, há mais: que dizer das prerrogativas do poder público na governança? O MME indica três dos cinco membros da diretoria, incluindo o diretor-geral.

Resumindo: sob o ponto de vista da atividade, o ONS realiza o "serviço dos serviços" de energia elétrica; sob o ponto de vista de sua estrutura, o ONS lembra uma estatal (não é, mas lembra). E com regulação para tudo. Que tipo de responsabilidade ele tem?

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    é advogado, sócio do escritório Souto Correa Advogados e coordenador da área jurídica do Projeto Monitor Regulatório Covid-19, iniciativa do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (CERI da Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ).

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