Opinião

A revisão de benefícios pelo INSS e a 'fishing expedition previdenciária'

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21 de dezembro de 2020, 14h41

"Previdência Social" e "segurança" são conceitos jurídicos indissociáveis. Os benefícios previdenciários existem justamente para assegurar (e aqui reside a ideia de segurança) aos trabalhadores e aos seus dependentes a manutenção do próprio sustento nos momentos em que não podem fazê-lo por suas forças, seja em razão de incapacidade laborativa, idade avançada, morte do provedor do grupo familiar ou outras vicissitudes eleitas pela Constituição como fundamentos para o amparo previdenciário.

Essa segurança intrínseca aos benefícios previdenciários confere uma força ainda maior à segurança jurídica geral que protege os atos jurídicos como um todo e sustenta a própria ideia do Direito. É, por isso, aliás, que a proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido foi alçada como um dos pilares dos direitos fundamentais constitucionais (artigo 5º, XXXVI da CF/88).

Não basta, entretanto, que se resguardem o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Há de se proteger também a confiança dos cidadãos na manutenção dos efeitos dos atos jurídicos já praticados há longa data e que não foram contestados, sobretudo, em relação aos atos administrativos, que são dotados de presunção de legitimidade. Por essa razão é que o princípio da proteção da confiança é comumente tratado como uma das vertentes do princípio da segurança jurídica [1].

Tais são os motivos pelos quais existe um prazo decadencial de dez anos para que a Administração previdenciária, no exercício de seu poder de autotutela, anule atos dos quais decorram efeitos favoráveis aos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, nos termos do artigo 103-A da Lei nº 8.213/91. Esse prazo, aliás, já é o dobro daquele previsto para os atos administrativos em geral (artigo 54 da Lei nº 9.784/99).

Essas considerações são importantes para bem delinear o ponto de partida do raciocínio desenvolvido adiante, firmando-se a premissa básica de que a segurança jurídica — tanto aquela imanente à própria Previdência Social como a que constitui um dos pilares do Estado de Direito como um todo — não se coaduna com a perene possibilidade de revisão de ofício de atos de concessão de benefícios previdenciários em prejuízo aos seus titulares. Para isso é que existe um prazo decadencial já demasiadamente largo dentro do qual eventuais revisões podem ser feitas por iniciativa do INSS.

Há, entretanto, um ponto específico no trato da decadência contra o INSS que merece atenção. Trata-se do afastamento do prazo decadencial decenal em casos de má-fé. O artigo 103-A da Lei nº 8.213/91 dispõe o seguinte:

"Artigo 103-A  O direito da Previdência Social de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários decai em dez anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé".

A má-fé de que trata o dispositivo legal é, evidentemente, a do indivíduo favorecido pelo ato, e não a de terceiros. Relembre-se que a previsão do prazo decadencial é uma decorrência do princípio da segurança jurídica, especificamente na vertente da confiança dos administrados na lisura e na legalidade dos atos administrativos. Dessa forma, a segurança e a confiança, objetos de proteção são aquelas concernentes ao beneficiário. Não importa, por conseguinte, que terceiros — agentes públicos ou não — tenham incidido em má-fé, desde que ela não atinja o segurado a quem o ato emanado do INSS favorece. Tendo o beneficiário confiado, de boa-fé, na validade do ato administrativo, o dolo alheio não tem o condão de afastar a incidência do prazo decadencial, ainda que permita que aqueles que praticaram o ilícito sejam por ele responsabilizados.

Partindo desse mesmo pressuposto de que o fundamento de validade do artigo 103-A da Lei nº 8.213/91 é o princípio da segurança jurídica, a boa-fé que justifica essa proteção, e sem a qual não se pode cogitar de confiança a ser protegida, resta afastada sempre que o beneficiário do ato tem plena consciência de sua ilicitude. Então, a boa-fé e a ciência da ilegalidade do ato administrativo por aquele que com ele se beneficia são inconciliáveis.

Por conta disso, age de má-fé aquele que permanece se favorecendo de um ato de cuja ilegalidade tem plena consciência, porque consente, mesmo que implicitamente, em auferir benefício indevido.

Não é propriamente a participação do beneficiário na prática do ato ilegal que se torna relevante para a aferição da má-fé, mas, sim, o conhecimento pleno da ilicitude, ainda que praticada por terceiros. Desse modo, age de má-fé tanto aquele que contribuiu decisivamente para a prática da ilegalidade quanto aquele que dela se aproveita, mesmo tendo plena ciência de que o benefício angariado é indevido. Não há como compatibilizar o conhecimento da ilegalidade com a confiança na validade dos atos administrativos, que é protegida pelo princípio da segurança jurídica, fundamento que legitima a existência do prazo decadencial para a Administração anular os próprios atos.

De todo modo, a má-fé daquele a quem o ato ilegal favorece deve restar claramente comprovada, tanto pelo fato de a boa-fé ser sempre presumida, como pela disposição expressa do artigo 103-A da Lei nº 8.213/91.

Acontece que a simples ameaça concreta de anulação, cancelamento ou revisão de um benefício previdenciário em prejuízo ao titular já impactam significativamente na confiança dele de que continuará a perceber as prestações de um benefício indispensável ao próprio sustento e que lhe vem sendo pago há longa data (muitas vezes, por décadas) sem quaisquer questionamentos pelo INSS. Ainda que a efetiva supressão do benefício seja a forma mais drástica de afronta à segurança jurídica, não se podem menosprezar os impactos morais e os transtornos na vida cotidiana do cidadão afetado que a mera existência de um procedimento administrativo de revisão de ofício de um ato de concessão de benefício previdenciário provoca. Por isso, nas situações em que já transcorrido o prazo decadencial decenal para a anulação de ofício dos atos concessórios, é preciso muita cautela na instauração de procedimentos que pressuponham a comunicação do titular ou a adoção de providências por parte dele.

Não se pretende, de forma alguma, tolher o INSS da sua prerrogativa de auditar benefícios previdenciários com indícios de irregularidades. O que se impõe é que a autarquia não tome como regra uma presunção de que tais irregularidades sejam decorrentes da má-fé dos beneficiários, quando essa seria a única hipótese possível para se afastar o prazo de dez anos dentro do qual a revisão poderia ser feita. Pelo contrário, é princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio que é a boa-fé que se presume.

Nesse cenário, sem prejuízo da possibilidade de instauração de procedimentos internos para a auditoria de benefícios previdenciários com suspeitas de irregularidades, não podem ser levados adiante atos que constranjam ou ameacem concretamente os titulares dos benefícios sem que haja, em relação a eles, lastro probatório mínimo de má-fé que autorize o afastamento da decadência e que deva ser investigada.

Recentemente, o INSS tem empreendido diversas operações pente-fino em benefícios previdenciários, em geral, na busca de irregularidades que justifiquem o seu cancelamento ou revisão em prejuízo aos segurados. A medida conta com beneplácito legal expresso, uma vez que o artigo 69 da Lei nº 8.212/91 (com redação conferida pela Lei nº 13.846/2019) estabelece que "o INSS manterá programa permanente de revisão da concessão e da manutenção dos benefícios por ele administrados, a fim de apurar irregularidades ou erros materiais". De acordo com o parágrafo primeiro do artigo em comento, havendo indícios de irregularidade ou erro na concessão do benefício, o beneficiário será notificado para apresentar defesa, prova ou documentos dos quais disponha. Já o parágrafo quarto estabelece que, não havendo a apresentação de defesa ou sendo ela considerada insuficiente ou improcedente, o benefício será suspenso.

Manter um programa permanente de revisão da concessão de benefícios, entretanto, não significa manter uma possibilidade permanente de revisar benefícios a qualquer tempo. A permanência de que o artigo 69 da Lei nº 8.212/91 trata é a do programa, não a da revisão no caso concreto. Isso se deve ao fato de o prazo decadencial de dez anos contido no artigo 103-A da Lei nº 8.213/91 permanecer incólume. Por isso, a notificação do beneficiário para apresentar defesa, documentos ou outras provas (artigo 69, §1º, da Lei nº 8.212/91), bem como os atos subsequentes de procedimento destinado à revisão de ofício de benefício concedido, quando já ultrapassado o prazo decenal, pressupõe a existência de indícios mínimos de má-fé do titular do benefício. Vale, aqui, repetir: irregularidade na concessão de benefício previdenciário não é causa de presunção de má-fé do beneficiário.

Além disso, justamente porque a presunção é a de boa-fé, não é de se admitir que o INSS se valha de um procedimento de revisão, instaurado sem qualquer indício de fraude por parte do titular do benefício, para exigir que ele confirme ou ratifique sua boa-fé ou mesmo a própria regularidade da concessão.

Note-se bem: ultrapassado o prazo de dez anos da concessão, a suspeita ou identificação de irregularidade, por si só, não autoriza a abertura de procedimento revisional, muito menos a notificação dos beneficiários para apresentarem dados ou documentos que confirmem a regularidade do ato concessório, à míngua de qualquer indício de má-fé. Primeiro deve vir à tona a suspeita de fraude (não de simples irregularidade). Depois é que estará aberta a possibilidade de notificação do beneficiário para o prosseguimento da apuração de efetiva má-fé.

O programa permanente de revisão de atos de concessão de benefícios previdenciários não pode servir como mecanismo para adoção, na esfera previdenciária, daquilo que a doutrina processual penal conhece como fishing expedition ("pescaria probatória"), assim entendida a "investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado que, de forma ampla e genérica, 'lança' suas redes com esperança de 'pescar' qualquer prova para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma investigação/ação já iniciada" [2].

Com efeito, a busca imotivada e aleatória de documentos ou provas com os beneficiários do INSS, para simplesmente confirmar a regularidade de atos de concessão de benefícios previdenciários caracteriza uma "fishing expedition previdenciária". Guardadas as devidas proporções e particularidades, seria algo próximo à determinação de interceptações telefônicas aleatórias e permanência na escuta de interlocutores na esperança de que eventualmente se depare com algum ilícito penal a ser posteriormente investigado.

A situação é ainda mais grave quando já transcorrido o prazo decadencial de dez anos, dentro do qual o INSS pode rever os próprios atos, caso em que mesmo com a constatação de irregularidade na concessão, somente a existência de um lastro probatório mínimo de má-fé do beneficiário autoriza a abertura de procedimento de revisão. Aliás, não é demais exigir esses indícios mínimos de uma fraude que não pode ser presumida, quando o próprio trabalhador necessita também estar municiado de início de prova material até mesmo para comprovar um fato lícito (o exercício de atividade laborativa a ser computada como tempo de contribuição, a teor do artigo 55, §3º, da Lei nº 8.213/91).

Isso não impede, evidentemente, que o INSS exija periodicamente a documentação necessária à atualização dos dados cadastrais dos beneficiários do RGPS, sejam os segurados ou seus dependentes, conforme autorizam o artigo 69, §7º, da Lei nº 8.212/91 e o artigo 18, §6º, do Decreto nº 3.048/99. No entanto, esse procedimento volta-se exclusivamente à perfeita identificação do próprio beneficiário, de maneira a se evitar o pagamento indevido de benefícios a terceiros ou o seu desvio fraudulento. Não se presta, portanto, à revisão por via oblíqua de atos concessórios cujo poder de autotutela administrativa foi atingido pela decadência.

É o que parece estar ocorrendo em vários casos em que o INSS, a pretexto de proceder a uma "atualização de dados do benefício" para demonstrar a regularidade de sua manutenção, vem exigindo, por exemplo, que pensionistas apresentem à autarquia documentação relacionada inclusive ao segurado instituidor da pensão. Em casos tais, o que se busca, em essência, é reavaliar a própria regularidade da concessão da pensão e não apenas uma mera atualização de cadastro. Nessa hipótese, há de se atentar para o prazo decadencial previsto no artigo 103-A da Lei nº 8.213/91, sobretudo pelo fato de que não soa razoável exigir dos pensionistas a apresentação de documentação referente a períodos remotos quando se supõe que tenha sido devidamente analisada por ocasião da concessão do benefício e não há suspeita concreta de fraude.

Em síntese, o princípio da segurança jurídica, a presunção de legitimidade dos atos administrativos e o prazo decadencial de dez anos para que o INSS revise os próprios atos dos quais decorram efeitos favoráveis aos beneficiários impedem a "fishing expedition previdenciária", ou seja, a exigência de provas pelos titulares de benefícios previdenciários que sirvam apenas para ratificar a regularidade do ato concessório. Impedem, da mesma maneira, a instauração de procedimento de revisão ante a constatação de irregularidades de benefícios concedidos após o decurso do decêndio decadencial sem que haja indícios prévios de má-fé do titular do benefício.

 


[1]  ALMIRO DO COUTO E SILVA. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei n° 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº. 2, abril/maior/junho, 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br > — sustenta que a segurança jurídica ramifica-se em duas partes. A primeira, de natureza objetiva, refere- se à irretroatividade dos atos praticados pelo Estado, dizendo respeito à proteção ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Já a segunda, subjetiva, relaciona-se à "proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação".

[2] SILVA, Viviani GHIZONI; MELO E SILVA, Philipe Benoni; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e Apreensão. Florianópolis:  EMais, 2019, p. 41

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