Opinião

A latente necessidade de incluir a esfera administrativa no acordo de colaboração

Autor

  • Fernanda Pereira Machado

    é advogada criminalista mestre em Direito Econômico pós-graduada em Direito Penal Econômico e Criminalidade Complexa e em Direito Tributário e pós-graduanda em inteligência aplicada e investigação criminal.

20 de dezembro de 2020, 7h14

Com a promulgação da Lei nº 12.850/2013, que trata no artigo 4º do Acordo de Colaboração Premiada, o legislador entendeu desnecessária a discussão da abrangência do acordo homologado com relação às esferas administrativas, notadamente Tribunais de Contas, Secretarias Ministeriais, Receita Federal, Susep e Comissão de Valores Mobiliários.

Entendeu que o interesse público se imporia e que esses órgãos terminariam por aderir aos acordos, principalmente pela eficiência de recursos humanos e públicos que o acesso a elementos de corroboração e provas obtidas nos procedimentos penais traria.

Durante a longa discussão que antecedeu sua votação no Congresso Nacional, a obrigatoriedade da adesão ou abrangência por todas as esferas administrativas foi suprimida por discussões de cunho constitucional e pelo senso comum de que um acordo na esfera penal pudesse ser usado como estratégia de evitar a cobrança de impostos ou tributos.

Passados mais de sete anos, no entanto, a realidade impõe a urgente discussão da necessidade de incluir as esferas administrativas na abrangência dos acordos de colaboração homologados, ainda que com as proteções necessárias que destaquem que essa abrangência exclua débitos fiscais, tributários e trabalhistas.

Ao contrário do que se possa concluir num primeiro momento, essa necessidade visa a proteger não o colaborador, mas o interesse público de ver efetivamente investigados, responsabilizados e punidos aqueles apontados pelos colaboradores, principalmente em delitos em que a fiscalização é de natureza especialíssima e supervisionada por autarquias ou secretarias ministeriais, caso dos crimes contra o mercado de capitais, fundos de pensão e regimes próprios de Previdência Social (RPPS).

Apesar de serem órgãos com atributos legais para, na esfera administrativa, conduzir inquéritos, abrir processos, condenar instituições e investigados e, não menos importante, solicitar a abertura de inquéritos e ações penais ao Ministério Público quando entenderem necessário, a grande questão é que cada órgão administrativo normatizou suas estruturas investigativas, processuais e recursais de forma diferente.

Os Tribunais de Contas, pela sua própria natureza e caráter formal, e a Receita Federal, regida pelo Código Tributário Nacional, têm estruturas e formalidades expressas e definidas, seus auditores têm prerrogativas que garantem a independência funcional durante a condução de inquéritos e na propositura dos procedimentos administrativos.

Busca-se, assim, evitar que a burocracia estatal, o corporativismo e, principalmente as influências políticas possam contaminar, manipular ou fazer uso desse poderoso instrumento estatal para prejudicar ou beneficiar quem quer que seja.

As estruturas investigativas, julgadoras e recursais têm similaridade com as da Justiça, com ordenamento que busca permitir ao investigado o pleno direito de defesa previsto na Constituição Federal.

Existem ainda corregedorias e órgãos internos de controle para apurar excessos e crimes de auditores, andamentos de processos e até mesmo, no caso do Tribunais de Contas, fiscalizar minuciosamente acordos de leniência.

Infelizmente isso não se repete com relação aos órgãos administrativos que atuam na fiscalização e regulação do mercado de capitais, fundos de pensão e regimes próprios de Previdência Social (RPPS).

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Superintendência de Previdência Complementar (Previc) e a Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda, que supervisionam e regulamentam, respectivamente, o mercado de capitais, os fundos de pensão e os RPPS, estão muito distantes, em suas estruturas e procedimentos, de evitar a interferência política, a manipulação para beneficiar ou prejudicar terceiros, de fornecer a obrigatória transparência e independência dos inquéritos e o devido processo legal.

Talvez por serem estruturas de fiscalização implementadas apenas a partir da década de 1970, fiscalizando entes e atividades consideradas complexas ao cidadão comum, ganharam grau de liberdade para implementar seus procedimentos e regulamentações internos em modelos em que a burocracia estatal e sua inerente influência política estão muito mais presentes.

A Previc e Secretaria de Previdência sequer são autarquias. Em que pese sua importância de fiscalizar o patrimônio previdenciário de dezenas de milhões de brasileiros, não tem técnicos que gozem de prerrogativas de função que lhes garanta a independência necessária para conduzir, sem ingerência política, auditorias, inquéritos e processos administrativos.

Seus diretores são indicados diretamente pelo ministro da Fazenda, sem a sabatina do Senado Federal, como ocorre na CVM, muitas vezes ascendendo via acordos políticos e vindo de quadros partidários.

Ressalte-se que a incorporação do Ministério da Previdência ao Ministério da Fazenda, implementada pelo atual governo, concentrou Banco Central, CVM, Previc, Secretaria de Previdência, Receita Federal e Susep sob o controle do ministro Paulo Guedes, dando a ele o controle dos mais importantes órgãos de fiscalização da República.

Esses quadros políticos têm, entre outras funções, o poder de determinar intervenções em Fundos de Pensão e RPPS, determinar fiscalizações e auditorias, regular através de portarias as atividades de seus fiscalizados e seus próprios procedimentos e normas internos, além, é claro, de nomear os superintendentes regionais sem precisar atender as normas e limitações inerentes aos auditores.

A confirmar sua natureza burocrata e a falta de entendimento da independência necessária a fiscalização que exercem, muitas vezes fazem uso de auditores da Receita Federal para fazer as fiscalizações, liderando auditorias e inquéritos de natureza específica e totalmente diversa daquela para qual foram concursados.

Na CVM, autarquia pública que cuida da fiscalização e desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, os diretores são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal.

Exceto por essa diferença, o grau de liberdade em criar normas, portarias e autorregulamentar seus procedimentos internos apenas por decisão de seus diretores, que não são oriundos de carreiras de estado e, sim, na imensa maioria das vezes, da iniciativa privada, é o mesmo observado na Previc e na Secretaria de Previdência.

Grau de liberdade que significa ao presidente da autarquia o poder de nomear para as superintendências os servidores que desejar, de determinar fiscalizações e controlar toda a estrutura administrativa.

Descritos esses pontos, o primeiro ponto que destacamos é a nítida falta independência funcional dos servidores, hierarquicamente sob o julgo de diretores indicados politicamente e sem as garantias que policiais, auditores e membros do Ministério Público têm para conduzir investigações, inquéritos e propor ações penais.

No caso de CVM, Previc e Secretaria de Previdência, quem julga também determina fiscalização, nomeia os superintendentes de fiscalização, regula o processo administrativo, implementa portarias com força de lei e escolhe os responsáveis pelos órgãos correição internos.

Sem discorrer longamente sobre a natureza a instância administrativa seria como um juiz penal determinar a abertura de ofício de um inquérito, a ser investigado por delegado nomeado por ele, posteriormente sendo proposta ação penal por membro do Ministério Público escolhido por ele, com processo penal segundo portarias determinadas por ele e, ao fim julgar o resultado de tão viciado procedimento.

Isso sem o risco de ter seus atos discutidos já que o corregedor também foi nomeado por ele segundo normas também por ele determinadas.

No caso da CVM, cabe ainda destacar, existe na autarquia o termo de compromisso, uma espécie de acordo de colaboração misturado a leniência que não significa assunção de culpa ou ilícitos, em que o pagamento de valores a autarquia suspende a execução do processo administrativo e, depois de cumprido, extingue o mesmo.

Quem nomeia os membros que fazem parte do comitê do termo de compromisso é o presidente da CVM.

Ele e os demais diretores participam da reunião onde são apreciadas as propostas, aprovando-as, sugerindo alterações ou negando. Não existe limitação para que se proponha inúmeros termos de compromisso com a mesma instituição financeira, empresa ou pessoa física, depois de cumprido o termo inicial, pode-se fazer tantos quantos se consiga aprovar, bastando ter recursos e força política para firmá-los. Isso, de fato, é bastante comum.

Por outro lado, o processo de propositura e os requisitos para parecer positivo são totalmente aleatórios, sem formalidades que verifiquem interesse público, reincidência, reparação etc. Um grande acordo entre amigos cujos beneficiados jamais tem que reconhecer seus ilícitos.

Seria como se o juiz penal se reunisse com o Ministério Público e tomasse ciência e participasse de todo o processo negocial para ao final ainda homologar um acordo de colaboração em que só houvesse reparação financeira e sem reconhecimento de culpa. E beneficiasse inúmeras vezes ainda que o colaborador fosse um criminoso costumaz.

Chegamos aqui, após essa longa dissertação sobre a natureza desses órgãos administrativos e os claros riscos de interesses pessoais, políticos e privados influírem nas suas decisões e procedimentos que fundamentamos, e exemplificamos a necessidade de impor a esses órgãos a abrangência do acordo de colaboração firmado.

Na imensa maioria dos casos o Ministério Público e a Polícia Federal são oficiados por estas instâncias administrativas quanto a existência de possíveis ilícitos penais. Apenas a partir destes comunicados iniciam-se inquéritos e se propõe ações penais.

Isso significa que os beneficiados por termos de compromisso ou absolvidos nos processos administrativos dificilmente serão objeto de investigações ou responsabilizados penalmente, ainda que a lei diga que as esferas são independentes e que a reparação administrativa não impede a ação penal.

Um breve levantamento apenas dos casos mais ruidosos que terminaram extintos com termo de compromisso e que envolviam delitos penais como insider information, fraude na administração e gestão de fundos de investimento, facilitação a implementação de pirâmides financeiras e mesmo falhas que permitiram a lavagem de dinheiro em mercado de capitais, demonstra que a falta de comunicação dos mesmos ao MPF inibiu a abertura de inquéritos e propositura de ações penais na quase totalidade dos casos, denotando a necessidade urgente de revisar este instrumento de acordo que tem facilitado a impunidade de poucos privilegiados.

Serão já que na prática seus processos serão extintos ou porque as absolvições no processo administrativo não gerarão ofícios sobre eventuais ilícitos penais para apuração e, ainda que por outra razão sejam objeto de investigação dos mesmo fatos por conta do Ministério Público, acabam por ter em mãos elemento de prova de sua inocência emitido pela esfera administrativa, aquela vista como especializada.

Descortina-se, assim, com clareza, o verdadeiro desmonte que réus de ações baseadas em acordos de colaboração podem fazer nas ações penais que respondem se tiverem poder econômico ou influência política.

Dada a natureza formal do processo judicial, ao tomar ciência que está sendo investigado pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal por um crime no mercado de capitais revelado por colaborador premiado, como operação fraudulenta, o investigado pode firmar com imensa rapidez termo de compromisso com a CVM e, sem precisar assumir qualquer ilicitude, extinguir processo sobre o assunto, tendo um atestado que a CVM não poderá mais investiga-lo ou acusa-lo sobre a operação fraudulenta.

Em outro cenário, um colaborador premiado apresenta narrativa e elementos de corroboração onde aponta diversos crimes conta o mercado de capitais. Iniciadas as investigações e o devido processo penal, o investigado com influência política pode conseguir junto a CVM a abertura de inquérito administrativo que conclua pela falta de indícios para propositura de processo administrativo ou uma absolvição.

Como isso inexoravelmente vai ocorrer antes da conclusão do processo criminal, esse réu terá em mãos contundente material para trancar a ação penal ou buscar a absolvição.

Assim, a eficiência da colaboração firmada pelo MPF fica por muitas vezes afetada, ainda que fundamentada por investigações e elementos de corroboração robustos.

A natureza dos crimes contra o mercado de capitais, assim como verificado nos crimes de corrupção, está vinculada a enorme poder financeiro e político.

Ao não atuar ativamente para pressionar os órgãos de fiscalização administrativa a aderir a um acordo de colaboração, quanto a processos e fatos abarcados nos anexos e que geraram ação penal, o Parquet não está sendo descuidado com o colaborador, e, sim, com a ação penal, com o interesse público, permitindo a existência de pareceres, extinções de processos e absolvições promulgados pelo "órgão especializado", minando as possibilidades de conseguir a Justiça.

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  • é advogada criminalista, mestre em Direito Econômico, pós-graduada em Direito Penal Econômico e Criminalidade Complexa e pós-graduanda em inteligência aplicada e investigação.

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