Ocupando espaços

"Legislação avançou, mas ainda falta sensibilidade para apoiar vítimas de abuso"

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20 de dezembro de 2020, 9h39

Spacca
As alterações legislativas que passaram a considerar a mulher como sujeito de direito são bastante recentes, e, por isso, ainda há um longo caminho a trilhar para que sua aplicação seja eficaz no sistema judicial como um todo.

Ainda assim, a maior visibilidade alcançada com as denúncias e as redes de apoio que têm se formado para evitar o que se chama de revitimização das mulheres são sinais positivos de que estamos caminhando para essa sensibilização.

A avaliação é da diretora jurídica do projeto MeToo no Brasil e liderança do projeto Justiceiras, Luciana Terra Villar, em entrevista exclusiva para a ConJur. Inspirado no MeToo dos Estados Unidos — iniciado após reportagem sobre os abusos cometidos pelo produtor de filmes de Hollywood Harvey Weinstein —, o projeto conta com uma rede de atendimento que inclui psicólogas, assistentes sociais e profissionais de saúde voluntárias atuando em conjunto para atender vítimas de violência.

A intenção é evitar que a mulher que sofreu abuso ainda tenha que passar por novos abusos quando for denunciar o crime, como aconteceu, por exemplo, no caso da influencer Mariana Borges Ferreira (Mari Ferrer), que foi insultada pelo advogado na frente do juiz, do promotor e de seu defensor, todos homens; e do juiz que, diante de uma mulher vítima de violência, afirmou não estar "nem aí" para a Lei Maria da Penha. Isso só deve mudar quando mais mulheres atingirem postos de liderança, opina a advogada.

Leia a íntegra da entrevista:

ConJur — Como que surgiu a ideia e essa iniciativa de fundar o movimento Me Too no Brasil?
Luciana Terra Villar —
O Me Too Brasil foi dealizado pela advogada Marina Ganzarolli, que se uniu comigo e outras advogadas para amplificar a voz das mulheres vítimas de abuso sexual. Estávamos fazendo a denúncia do produtor cultural Gustavo Beck, que abusou sexualmente de atrizes, e vimos aí uma forma de dar visibilidade, amplificar a voz dessas vítimas.

ConJur — Quando vocês recebem alguma denúncia, quais são os procedimentos? Que medidas vocês tomam imediatamente? 
Luciana Terra Villar —
O Me too tem parceria com o Projeto Justiceiras, que surgiu na pandemia, no final de março, como uma plataforma para atendimento de vítimas de violência doméstica. O que aconteceu foi a união das voluntárias que queriam ajudar — hoje somos quatro mil voluntárias — com as vítimas que precisavam de ajuda. Então abrimos as inscrições para voluntárias, advogadas, psicólogas, assistentes sociais, rede de apoio e acolhimento e médicas. O Justiceiras é viabilizado pela promotora de Justiça Gabriela Manssur, pela advogada Anne Wilians e também por mim. E o Me Too, com essa parceria, encaminha os casos para as Justiceiras, então as vítimas têm todos esses atendimentos.

ConJur — No balanço dos primeiros dois meses aqui no Brasil foi afirmado que a maioria dos casos que o MeToo recebe trata de abuso de crianças cometidos por familiares ou pessoas do convívio. Era isso que vocês esperavam?
Luciana Terra Villar —
Infelizmente, no Brasil, 70% dos casos de abuso sexual são intrafamiliares. Não partem de um desconhecido, um monstro, um homem num beco da rua. E, infelizmente, mais de 50% dos casos de violência sexual são contra menores de 14 anos.

O Justiceiras já tinha a voz das mulheres e o Me Too veio como se fosse um braço para que pudéssemos encaminhar mais denúncias de abuso sexual, de violência sexual, em questões de abuso de autoridade, abuso de poder, abuso religioso e até questões intrafamiliares. Infelizmente, esse é o quadro que temos e estamos trabalhando para que haja mais conscientização, um melhor atendimento, sem a revitimização das mulheres.

ConJur — A epidemia impactou nas situações de violência sexual? Os relatos são de que a violência contra a mulher aumentou, mas a notificação diminuiu, por causa das medidas de isolamento social.
Luciana Terra Villar —
Sim, teve impacto por causa da tensão do momento, o stress causado, as questões psicológicas que vieram à tona, assim como pelo isolamento. O isolamento não é causa do aumento da violência, ele é somente um estopim, um gatilho da violência e da situação de machismo que já havia na relação. E, dentro disso, vieram as violências contra a mulher. Aumentaram muito os números, inclusive a violência sexual. 

ConJur — Vocês têm algum levantamento ou acompanhamento sobre a forma como o Judiciário lida com o tema do assédio sexual ou outras violências contra a mulher?
Luciana Terra Villar —
Nós, enquanto projeto — os dois projetos, no caso — encaminhamos os casos para as ouvidorias, porque não podemos atuar processualmente, não somos órgão público. Fazemos essa primeira orientação e encaminhamos.

E o que eu tenho visto tem sido ações em que a mulher é ouvida, o processo é bem conduzido, mas também temos situações em que há, sim, violência institucional. Nesses casos, principalmente no julgamento, (temos o exemplo do caso da Mari Ferrer), a vítima já é julgada pelos seus próprios atos, como se fosse uma justificativa daquela violência. Então, muitas vezes a mulher está sim no banco dos réus, e isso vem também pela questão de falta de sensibilização nos sistemas de segurança, de justiça e de saúde pública, com o tema e com as mulheres.

A palavra da vítima deve ter especial relevância, porque é um crime que ocorre entre quatro paredes, não há testemunha, só a mulher que está ali e sabe realmente o que sofreu. Expor essa situação é um processo interno muito difícil e vergonhoso. Tanto que os casos de violência sexual são subnotificados. Apenas 6% dos casos que ocorrem viram uma denúncia contra o agressor, por conta da subnotificação. E também isso ocorre porque como podemos ver, por exemplo, no sistema judiciário, as mulheres são ainda minoria.

Então, por exemplo, no caso do julgamento da Mari Ferrer, teve uma violência institucional e de falta de paridade de armas, porque ali ela estava diante de um advogado homem, um promotor homem, um defensor público homem e um juiz homem. E faltou esse olhar de gênero, a sensibilidade dessa escuta qualificada para ela, mas isso só será possível quando mulheres atingirem mais cargos de liderança.

ConJur — Costuma-se dizer que acionar a Justiça nos casos de abusos e violências não funciona. A legislação brasileira é falha neste quesito ou os operadores do sistema de Justiça tendem a proteger assediadores?
Luciana Terra Villar — A lei teve alteração, em 2018, em que os crimes sexuais são agora todos de ação pública incondicionada. Então acredito que nós já tivemos esse avanço legislativo. O estupro consta como um dos crimes hediondos, em que há mais rigor na aplicação da pena.

O que ocorre é que até 2005 (e 2005 é ontem, né?), no Código Penal ainda constava a "mulher honesta": "praticar conjunção carnal sem a vontade de mulher honesta". Então a mulher desonesta não merece proteção? E o que é uma mulher honesta? Foi uma evolução legislativa muito lenta, porque o Código Penal é de 1940. Até 2002, a gente teve o Código Civil que ainda falava da autorização do homem para a mulher ter uma conta no banco. Nós viemos dessa estrutura em que as mulheres não são sujeitos de direito.

Então, acredito que nesse momento de visibilidade, de Lei Maria da Penha, de as mulheres estarem acreditando no sistema de Justiça e na sua voz, nós já tivemos uma evolução importante. O que precisamos realmente é de mais eficácia legislativa. É mais uma questão de eficácia e sensibilização ainda do sistema em geral.

ConJur — Tem alguma sugestão específica ou alguma frente de trabalho que vocês têm acompanhado para evitar justamente essa revitimização?
Luciana Terra Villar —
Sim. Dentro do projeto, o que nós fazemos é formar um grupo com as voluntárias da área da assistência, da psicologia, do jurídico, rede de apoio e acolhimento e médico. As voluntárias entram em contato, mas de forma coordenada. Muitas vezes são produzidos relatórios desses casos, encaminhados à Ouvidoria das Mulheres do Conselho Nacional do Ministério Público, que a Gabriela Manssur faz parte.

Então, o relato é enviado ao CNMP e, dessa forma, o CNMP encaminha para as autoridades competentes; no caso, o Ministério Público local, em que já chega todo o relato da vítima. Ela foi ouvida somente uma vez dentro do projeto. Obviamente ela está à disposição da Justiça, mas muitos promotores têm pego os relatos e, devido à sua confiabilidade, não ouvem a vítima novamente, para evitar essa revitimização.

ConJur — Nesse contexto, qual é o papel da imprensa? Casos como o da Mariana Ferrer mais ajudam, ao dar visibilidade, ou atrapalham, por confundir conceitos jurídicos?
Luciana Terra Villar — O papel da imprensa é importantíssimo para dar essa visibilidade, mas sem culpabilizar a vítima. A maior parte dos noticiários são: 'mulher é estuprada', 'mulher é morta', 'mulher é agredida'. O sujeito da ação é sempre a mulher. Isso, inconscientemente, culpabiliza de uma forma, porque quem é parte do problema, e quem cometeu o ato e é o sujeito ativo da ação, inclusive criminal, é o homem.

Por exemplo, as notícias poderiam dizer, em vez de "caso Mari Ferrer", "caso André Aranha". Ele cometeu o ato. Ele é o sujeito ativo. Ou então "homem mata mulher", "homem estupra mulher".

Quando o caso fica midiático, tem esses dois lados, mas o lado positivo é a visibilidade para que outras mulheres também não se sintam sozinhas e falem sobre isso. Porque muitas vezes o abuso aconteceu só com uma mulher e ela pensa: "eu não vou falar. Só eu que estava lá". E aí, ao falar, ela descobre que não foi só com ela. Então, muitas denúncias que chegaram para a gente foram coletivas, por uma ter falado e dado visibilidade. É de extrema importância o papel da imprensa, mas com responsabilidade e não culpabilização, nem julgamento da vítima.

ConJur — Já que estamos falando de casos que chegaram à mídia, houve também as denúncias da Dani Calabresa, acusando o Marcius Melhem de assédio. Qual a importância do compliance das empresas em casos como o dela?
Luciana Terra Villar — O compliance das empresas é muito importante no apoio às vítimas. A TV Globo, em especial, é formadora de opinião, e precisa se posicionar contra qualquer tipo de violência e, ao mesmo tempo, realizar também ações internas como treinamento para os funcionários, sensibilização da não-violência contra a mulher, para que a palavra das mulheres seja valorizada.

Também é importante que o compliance de violência contra a mulher não seja o mesmo compliance dos casos de falta de ética ou corrupção dentro da empresa. É preciso ter esse olhar de gênero, essa sensibilização, porque violência de gênero não é um crime contra o patrimônio, que muitas vezes é levado mais em consideração e tem até penas mais altas no Código Penal. 

ConJur — A tipificação da importunação sexual tem ajudado a ampliar as denúncias ou servido para reduzir a gravidade dos delitos comprovados?
Luciana Terra Villar — O crime de importunação sexual surgiu porque tinha esse gap legislativo entre o estupro e a contravenção. Muitos juízes acham o crime de estupro muito grave para ser aplicado, por ser um crime hediondo. Mas o fato é que nós não tínhamos esse "meio-termo" entre estupro e a contravenção penal que era aplicada.

A importunação, portanto, fez essa evolução legislativa. Salvo, obviamente, se for o caso de menores de idade, de estupro de vulneráveis. Até o STJ já rechaçou a possibilidade de desclassificação para esse crime. Isso não pode ser feito mesmo.

ConJur — No caso dos Estados Unidos, o NY Times revelou que Harvey Weinstein tinha a seu favor uma rede de advogados que comprava o silêncio das vítimas com acordos extrajudiciais, com vantagens para os advogados e obrigando as vítimas a permanecer em silêncio. Isso também acontece no Brasil? Se acontecesse, os acordos seriam válidos?
Luciana Terra Villar — Eu particularmente não tive notícia de nenhum para te falar. Mas eu ressalto a importância de nós, enquanto advogadas e também advogados, termos esse olhar coordenado de gênero, esse controle de narrativa  para que as denúncias ganhem forças. É isso que nós estamos vendo aí. Recentemente, temos casos como o do João de Deus, que foi para a mídia e foi condenado, e muitos outros.

Então, eu particularmente desconheço, mas sei da importância de termos cada vez mais advogadas, juízas e promotoras comprometidas com este olhar de gênero e de proteção das vítimas.

ConJur — Mas se, por acaso, tivesse um acordo assim, ele teria respaldo legal aqui, por exemplo? Porque lá nos Estados Unidos a lei tinha brechas, e esse era o problema.
Luciana Terra —
Um acordo desses, se for contra a vontade da vítima, não tem validade nenhuma. Porque, pelo Código Civil, existe o vício da vontade. Esse acordo estaria viciado, a vítima não estaria com a sua livre manifestação de vontade. Inclusive, a Lei Maria da Pena afeta qualquer tipo de transação penal e de acordo criminal quanto a isso.

Então, aqui eu não vejo como algo possível, salvo se a vítima e a ação pública não forem condicionadas também. Se a ação pública for incondicionada, quem faz a ação penal é o Ministério Público e, nesses casos, é proibida a transação penal. Não teria como isso acontecer, a não ser de forma ilícita.

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