Direito Ambiental e conservação da biodiversidade no ano da Covid-19
20 de dezembro de 2020, 10h03
Em linha cronológica, os eventos que considero mais relevantes em âmbito nacional para o Direito Ambiental em 2020 incluem a alteração da composição e do funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama); a fixação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da tese da imprescritibilidade do dano ambiental; a decisão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pela não retroatividade do Código Florestal para o cômputo de área de preservação permanente para formação de área de reserva legal e, finalmente, a recente decisão do STF pela revogação da Resolução Conama nº 500, de 28 de setembro de 2020, que por sua vez revogava as resoluções que tratam sobre o licenciamento para empreendimentos de irrigação e sobre os parâmetros de proteção para áreas de preservação permanente de restingas e manguezais (Resoluções nº 284/2001, 302/2002 e 303/2002). Esses eventos são relevantes porque — apesar de polêmicos ou justamente por essa razão — geraram discussões e reflexões importantes sobre o papel e a aplicação do Direito Ambiental.
A despeito dos impactos que esses eventos produzem no Direito Ambiental, associados a temas essenciais como os princípios da participação, da segurança jurídica, da prevenção e da vedação à proteção insuficiente, as queimadas na Amazônia e no Pantanal são os que merecem maior destaque nesta retrospectiva porque a conservação da biodiversidade pode estar diretamente associada à pandemia de Covid-19, oficialmente declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março deste ano.
A hipótese mais aceita, embora ainda não confirmada, nem descartada por pesquisas ainda em andamento [1], aponta que o Sars-CoV-2, vírus responsável pela doença, foi transmitido de animais para humanos após a ingestão de carne contaminada de animais silvestres comercializados em um mercado popular em Wuhan, na China. Segundo pesquisadores da Universidade de São Paulo [2], o fenômeno conhecido na ecologia como spillover e que dá nome à adaptação do vírus de um hospedeiro para outro, é favorecido pelas "mudanças climáticas, intervenção humana em áreas preservadas, caça e tráfico de animais silvestres e más condições de higiene em criadouros". E, como já tive oportunidade de esclarecer em outros trabalhos [3] [4], as ameaças à biodiversidade, que é um dos limites planetários já ultrapassados pela humanidade e que pode estar próximo do ponto de não retorno, incluem, ainda, a fragmentação de paisagens e a perda de habitat.
Nesse cenário, as queimadas no Amazonas, que registraram o maior número da história em 2020 [5], e no Pantanal, que subiram 530% no primeiro semestre do ano [6], mostram que seguimos por um caminho preocupante e reforçam a urgência de implementar de maneira mais eficaz as políticas públicas ambientais já existentes e manter o seu foco na promoção da preservação do meio ambiente, para que ele cumpra sua finalidade, enquanto bem de uso comum do povo, para a garantia da sadia qualidade de vida de toda a coletividade (artigo 225, caput, CF/88).
É recomendável que esse desejado processo de aprimoramento das políticas públicas ambientais esteja alinhado aos princípios propostos por Elinor Ostrom [7] para a boa governança dos bens comuns, que incluem, entre outros, a definição de limites bem definidos; a aderência entre as normas reguladoras dos bens comuns às necessidades e condições locais; a garantia de participação, no processo de formulação e modificação das normas, para aqueles afetados por elas; a garantia de que o direito de participação dos membros da comunidade afetada na formulação e modificação das normas que os afetam seja respeitado pelas autoridades; a aplicação de sanções graduais; e o acesso a meios de resolução de conflitos de baixo custo.
Ainda a respeito da execução das políticas públicas ambientais para conservação da biodiversidade no ano de 2020, é possível afirmar com base nos números e dados sobre as queimadas, que devem ser aprimoradas e alinhadas com a sustentabilidade e com aquilo que se entende como as melhores práticas para o desenvolvimento sustentável. Nesse ponto, cabe um alerta: apesar de o termo sustentabilidade andar na moda, boa parte da sociedade não compreende o que ele de fato significa. Para o economista Clóvis Cavalcanti [8], em piores cenários, a sustentabilidade vem associada à equivocada noção de "um modelo de economia que tem como finalidade única se alcançarem propósitos de progresso material ilimitado, supondo-se, muitas vezes, por uma enorme simplificação de raciocínio, que eles não comprometem a base de recursos da natureza". Para ele, o desenvolvimento sustentável é aquele que "dura" — ou seja, é possível de ser sustentado dentro dos limites biofísicos da natureza.
É sabido que a natureza possui uma impressionante capacidade de regeneração e resiliência, mas ela não é infinita. Se esgarçada para além da capacidade de um ecossistema se manter funcional, ele estará comprometido. O respeito aos limites biofísicos da natureza pode implicar em uma redução do crescimento econômico ou até do decrescimento de grandes economias, razão pela qual é uma pauta polêmica e difícil de ser defendida, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil, onde o crescimento econômico é visto como imperativo para geração de renda e redução de desigualdades sociais.
Todavia, a pandemia de Covid-19, que representa um dos maiores desafios do mundo globalizado, abriu espaço para repensar o modelo produção e extrativismo atual e projetar, na chamada retomada verde, um novo modelo baseado em premissas sustentáveis, cidades inteligentes e consumo consciente. Transparência, compliance — inclusive, o ambiental — e adoção de parâmetros de ESG (Environmental, Social and Corporate Governance — governança ambiental, social e corporativa) também serão valorizados na retomada verde e já contam com a adesão de grandes empresas. O Direito Ambiental terá um papel importante na construção das bases jurídicas desse novo modelo.
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