Opinião

O Supremo e a interpretação (des)conforme à Constituição

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19 de dezembro de 2020, 6h03

No mês em que a Constituição fez 32 anos, em vez de mostrar maturidade e autonomia da sua vida, ela aparece cada vez mais desgastada e sem forças para buscar suas promessas. E isso em decorrência da atuação das instituições criadas por si mesma, mas cuja mentalidade daqueles que as compõem traz o ranço dos sistemas anteriores. No que toca especificamente à sua aplicação e interpretação, é o próprio Supremo Tribunal Federal, que põe o equilíbrio entre democracia e direitos fundamentais cada vez mais em risco. Não que ele mostre tendência para um ou outro conteúdo, mas, em nome de uma leitura moralista do seu papel (não da Constituição, que fica escanteada), o STF põe em risco tanto a democracia quanto os direitos fundamentais.

A disputa política e social entre conservadores e progressistas, que ficou explícita após o fim do governo do Partido dos Trabalhadores, tem sido levada para o Judiciário e tem causado problemas para a compreensão dos direitos fundamentais e da democracia brasileira, com a opinião pública (melhor dizendo, publicada, televisionada e eletronicamente circulada) definindo como o Supremo deve julgar. O caso da libertação de famoso líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) é excelente exemplo de análise. No HC nº 191.836, por medida liminar, o ministro Marco Aurélio deferiu a ordem de soltura de André do Rap. A medida foi cassada pelo ministro Luiz Fux, sob a alegação de exercício do poder de urgência da presidência (Suspensão de Liminar nº 1.395). O plenário referendou a cassação em 15 de outubro.

A questão girou em torno da aplicação do artigo 316 do CPP, na redação dada pela Lei nº 13.964/2019 (resultante do pacote "anticrime", de origem do governo federal, mas bastante modificado no Congresso). A decisão só é polêmica porque se trata de criminoso notório (o ministro Marco Aurélio já tinha dado ordem de soltura em outros 79 casos idênticos e isso não gerou comoção).

Aqui aparece o primeiro problema: o STF acabou decidindo que a nova redação não muda o conteúdo anterior. Isso porque entendeu que a expiração do prazo de 90 dias previsto para a revisão de prisão preventiva não gera sua caducidade automática, o juízo competente deve ser instado a se manifestar sobre a necessidade de sua manutenção. Pior que isso, o STF fez interpretação restritiva do direito fundamental à liberdade e contra a intenção do legislador, porque tornou a situação ainda pior do que antes. Com a redação anterior, a contestação da prisão preventiva poderia acontecer a qualquer momento. Agora, com interpretação dada pelo STF, presume-se que a prisão preventiva tem validade de, ao menos, 90 dias, e só pode ser revogada se o magistrado for instado a isso.

Mas quem deve instar o magistrado? Seguindo a lógica da corte, não é o Ministério Público, porque, no caso concreto, deixou de pedir a manutenção da prisão. Assim, se a perda da validade da prisão preventiva não acontece automaticamente, não faz diferença a atuação do Ministério Público porque o juiz ficará esperando ser provocado sobre a necessidade de renovação.

Ainda como resultado da decisão, também não é o juiz que, de ofício, faz o controle da manutenção da decisão. Veja-se que o parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal diz: "Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal". Ora, a decisão do STF "interpreta" o sentido do dispositivo ao inverso do que ele diz.

Enquanto isso, o réu continua preso. Pode provocar o juízo a partir de 90 dias da decretação da prisão, mas tem de arcar com os custos de advogado ou contar com a Defensoria Pública (e note-se que o órgão de acusação é muito mais bem aparelhado que o de defesa). Sem advogado ou defensor, o réu continua preso e Ministério Público e juízo competente podem tranquilamente esquecer o processo.

Não há como negar que o STF subverteu a Constituição para realizar sua ideologia punitivista atual: estabeleceu presunção de culpa e de periculosidade de presos preventivamente; permitiu que o Ministério Público e o juízo criminal deixem de cumprir dever institucional sem qualquer consequência; transferiu o ônus da prova de descabimento da preventiva para o indivíduo preso; fez interpretação que esvazia a capacidade de o Poder Legislativo alterar a lei (ao argumento de harmonizar o dispositivo com o sistema, fez interpretação conforme à Constituição contra a vontade do legislador, algo que há muito o próprio tribunal rejeita — veja-se a Rp. 1.417, julgada antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988).

A um só tempo, o STF fez interpretação contra a prevalência dos direitos fundamentais e da separação dos poderes. De quebra, aceitou suspensão de liminar contra ato de membro da própria corte, dando hierarquia ao seu presidente para monocraticamente cassar decisões dos seus (agora) inferiores que contrariem suas convicções. O STF fez interpretação desconforme à Constituição: restritiva de direitos fundamentais; extensiva de poderes de agentes do Estado e impeditiva de nova legislação mais benéfica aos acusados, violando o conceito de Estado democrático de Direito.

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