Opinião

Sobre a reforma da Lei de Falências

Autor

  • Carlos Henrique Abrão

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo doutor em Direito Comercial pela USP com especialização em Paris professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg e autor de obras e artigos.

19 de dezembro de 2020, 7h11

O Senado Federal (relator Rodrigo Pacheco) aprovou no dia 25 de novembro projeto de lei que disciplina substancial reforma da Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Certo ou errado o tempo dirá, mas na nossa humilde visão a legislação nem precisaria de tantas mudanças, na medida em que a jurisprudência, após uma década, começava a palmilhar o caminho de interpretações coerentes com o equilíbrio entre credores e devedores. Invariavelmente uma boa estratégia seriam as alterações de alguns artigos e não teríamos uma colcha de retalhos, além do que a transformação do formato indispensável ao mecanismo de reengenharia empresarial tenderia a ser escrito após as reformas administrativa e tributária, essenciais para melhorar o orçamento e a máquina do Estado e reduzir o "custo Brasil" com tributação inteligente, e não em toda a cadeia produtiva.

Spacca
Entretanto, no aguardo da sanção e de vetos presidenciais, o viés da legislação é transpor o modelo americano no lugar daquele francês, e tentar uma adaptação forçada para que as empresas brasileiras tenham maiores salvaguardas. Certo é que tem havido debates internos sobre o regime da insolvência, especialmente com base em estudos tornados públicos pelo Banco Mundial e diversos documentos acadêmicos que vêm sendo publicados, que sustentam que, diante da crise econômica causada pela pandemia e seus futuros reflexos, os formuladores de políticas devem responder à ameaça de uma possível cascata de processos de insolvência — iniciado pelo credor ou petição voluntária e fornecer aos agentes incentivos para workouts extrajudiciais e mecanismos de reestruturação de dívidas.

Surpreendentemente (ou não), tal enxurrada de processos no Judiciário nunca ocorreu. Diversas pesquisas e estatísticas demonstram, até agora, que o número de pedidos de insolvência de janeiro a setembro de 2020 é inferior ao do mesmo período de 2019 (para liquidação ou reorganização). E vivenciamos no Brasil um aumento surpreendente de acordos extrajudiciais e workouts, tendência impensável, imprevisível, já que vivemos em nosso país a cultura do litígio, em que o contencioso costumava ser a principal escolha das partes para dirimir conflitos, sobretudo como reação a qualquer evento de inadimplência. Talvez a falta de resposta regulatória rápida do Judiciário nos processos contenciosos tenha contribuído para a falta de confiança dos agentes econômicos em utilizar os instrumentos de insolvência, em especial os mecanismos de reorganização formal. E, portanto, paradoxalmente, contribuiu para achatar a curva do contencioso judicial, sobretudo nesse período de crise. O Judiciário brasileiro se adaptou rapidamente ao trabalho remoto e às audiências virtuais e, em vez do caos, temos vivenciado um processo judicial mais eficiente, um espírito colaborativo das partes, que buscam resolver seus conflitos por meio de negociações extrajudiciais.

O Projeto de Lei do Senado 4458/20 incorre em algumas falhas, mas também possui outras virtudes. O certo é: nenhuma lei é perfeita. Caberá aos operadores do Direito e à jurisprudência sanear questões que inevitavelmente surgirão. Ponderamos também que nenhuma lei será capaz de alterar o cenário da economia ou trazer investimentos sem uma macrovisão do futuro do Brasil e a estabilidade da moeda, e com instabilidade política.

Redesenhar um modelo de recuperação é totalmente aceitável, mas indagamos se surgirão recursos e aportes financeiros, qual a necessidade da presença do Fisco na recuperação, da cessação do pagamento dos dividendos e lucros até aprovação do plano, da consolidação processual e material, entre outros. Sérias dúvidas avançam como nuvens cinzentas sobre a economia brasileira, e há todas as características de termos ferramentas pré-insolvência e eventualmente peculiares à quebra. Nos países modernos, há bônus premial fiscal quando a crise é diagnosticada no começo e no tempo certo do pedido. Aqui, na contramão de toda
a evolução dos fatos e circunstância, o Fisco sai na frente e pede sempre preferência, aí teremos com isso dúvidas sobre competência recursal e uma chuvarada de pedidos condenatórios em honorários advocatícios. A especialização da Justiça é outra questão indissociável do bom desempenho do processo, com o aprimoramento nas circunscrições e cursos frequentes destinados aos magistrados e promotores.

Preferiu o legislador, a toque de caixa, aprovar o projeto de lei que sofre de imprecisões, embora tido como revolucionário. O novo instrumento de recuperação será testado ao longo dos anos e a principal questão que surge é se estará apto a evitar o salto do número de falências durante todo o ano de 2021, quando vários setores da indústria, do comércio, de serviços, da área de tecnologia terão de rever suas estratégias, montadoras fechando suas portas, e empresas internacionais deixando vários países da América Latina, a qual, segundo fontes seguras, necessitará de US$ 1 trilhão para que a exclusão social não leve ao desemprego de cem milhões de pessoas.

O desaquecimento econômico é o ponto de partida, com a perda do poder aquisitivo de novas fórmulas de empreendedorismo. Os dados estatísticos precisam ser aperfeiçoados e alguns países, como Chile e Uruguai, denotam uma fiscalização segura sobre o aumento do número de insolvências para as providências governamentais e mudanças do rumo da política da taxa de juros, investimentos, financiamentos, enfim, um conjunto consistente de procedimentos que perpassam a mera e simples letra da lei. Qual será o estímulo governamental para um momento tão delicado e peculiar da economia brasileira, com a desaceleração causada por diversos fatores endógenos e exógenos? Teremos oportunidade de voltar a ser a décima economia mais forte do planeta ou manteremos o voo de galinha tradicionalmente aceito com um produto interno bruto pífio?

Essas situações nos levam à reflexão mais realista, não tanto pessimista, mas também sem o viés do otimismo de alguns, em relação ao futuro da nova legislação. Ela terá vida longa ou será sacudida por revezes da conjuntura internacional e as barreiras locais impedindo avanços ou a presença sempre necessária do capital estrangeiro?

A criação de mecanismos e instrumentos modernos serão sempre aplaudidos e muito bem-vindos, porém precisamos enxergar mais do que a árvore e simplesmente a floresta, dizia o saudoso Norberto Bobbio. O ano de 2021 nos preparará novos e instigantes desafios em termos de insolvência e o delicado momento que atravessa a maioria da população brasileira. Não seria interessante o legislador incluir no projeto uma forma de permitir aos 60 milhões de brasileiros com cadastros negativos renegociarem suas dívidas e, em sintonia com órgãos creditícios, apresentarem um plano de pagamento ou amortização paulativa? Com isso. milhões voltariam a ser consumidores, o que acarretaria maior produção industrial e vendas no comércio.

Enfim, olhada a legislação que saiu do berço legislativo nada esplêndido, teremos anos difíceis pela frente, marcados pelo fechamento de empresas, notadamente micro e pequenas. Seria muito mais oportuna uma simplificação para a modalidade de negócio e uma renegociação pelo canal das câmaras setoriais sem a judicialização, que é custosa e cheia de imprevistos.

Não atestaremos a boa ou a má qualidade do trabalho legislativo, simplesmente apontamos os caminhos a serem trilhados, e o sentimento que resta é o de minimizar o trauma do acesso ao crédito, com imaginação e criatividade empresariais e autocomposição como tempero ao discernimento do momento e enfrentamento gradual da crise internacional.

Autores

  • é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, doutor pela USP com especialização em Paris, professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg e autor de obras e artigos.

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