Opinião

A tão aguardada solução para o crédito público nas recuperações judiciais

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19 de dezembro de 2020, 12h10

A muito esperada reforma da Lei de Falências e Recuperações Judiciais finalmente foi aprovada no Congresso Nacional (PLS nº 4.458/2020), e a sanção presidencial deve ocorrer ainda neste ano [1]. Em relação ao Fisco, o projeto aprovado dá um importante passo no sentido de contribuir para que as empresas em dificuldade alcancem a famigerada regularidade fiscal exigida pelo artigo 57 da lei (que foi mantido intacto), permitindo que o passivo tributário seja adequadamente equacionado. Dessa forma, soluciona uma disputa que já durava 15 anos, trazendo segurança jurídica aos envolvidos nos processos de insolvência (como os demais credores, a própria recuperanda e seus financiadores, além daqueles que adquirem bens nesses processos).

Podemos separar as disputas dos últimos 15 anos entre a Fazenda Pública e as empresas em recuperação judicial em três fases distintas. Primeiro, desde a publicação da Lei nº 11.101/05 a exigência de regularidade fiscal para homologação do plano de recuperação judicial (prevista no seu artigo 57) foi criticada pela doutrina [2], tanto pelo prazo curto para se obter as certidões quanto pela inexistência de parcelamento que atendesse à situação periclitante em que se encontram as empresas que buscam a recuperação judicial. Isso levou a um movimento jurisprudencial que dispensava as empresas de obter a regularidade fiscal para que o plano aprovado fosse homologado, o que se consolidou com a decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.187.404/MT, julgado em 2013.

A segunda fase começa com a reação do Fisco a esse posicionamento dos tribunais, editando em 2014 um parcelamento específico para as recuperandas, através da Lei nº 13.043/14. Esse parcelamento prevê um escalonamento nos pagamentos, permitindo um fôlego ao fluxo de caixa das recuperandas nos primeiros anos. Não obstante, as decisões judiciais mantiveram o entendimento cristalizado no julgado da Corte Especial do STJ. Em complemento, veio em 2018 a afetação pelo STJ de recursos especiais para julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos (Tema 987) em que se discute a "possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária", e no qual se determinou a suspensão nacional de todos os processos que tratam do tema. Esse cenário levou a um verdadeiro descaso com o crédito tributário nas recuperações judiciais, uma vez que as recuperandas, ao mesmo tempo em que não precisavam se preocupar com a obtenção de regularidade fiscal para ter seu plano homologado, também não precisavam se preocupar com qualquer constrição advinda de execuções fiscais.

Nesse período foi comum ver diversos casos em que o passivo fiscal era o maior da empresa, mas que não havia qualquer discussão sobre seu equacionamento ou sequer menção a respeito no plano, que no máximo continha previsões genéricas citando o interesse em futuramente regularizar esse passivo. Ora, como afirmado por Domingos Refinetti [3], "entretanto, tais planos deveriam ser concebidos para representar mais do que o simples endereçamento de uma moratória: deveriam propor projetos concretos de reestruturação da empresa, dos pontos de vista organizacional, operacional, mercadológico e econômico-financeiro, e, nesse contexto, não poderiam desconsiderar a existência de débitos fiscais e sua forma de pagamento". Não era o que se via na prática, sendo de praxe que até mesmo os tributos correntes deixassem de ser pagos.

E assim ficamos até este ano de 2020, em que tivemos uma verdadeira reviravolta nas discussões, no que podemos chamar de terceira fase dessas disputas. Com a edição da Lei de Transação Tributária no âmbito federal (Lei nº 13.988/2020), deixaram de existir argumentos que justifiquem a não observância do artigo 57 da Lei de Falências, uma vez que ela prevê diversos descontos e facilidades para que as recuperandas acertem o seu passivo fiscal. Observe-se que hoje o Fisco federal possui um amplo leque de soluções negociadas para moldar, em diálogo com a recuperanda, aquela que mais se adequa à sua situação (PRDI, negócio jurídico processual, transação de dívidas de pequeno valor, transação excepcional, entre outras).

E isso não passou despercebido pelos tribunais brasileiros, que rapidamente proferiram diversas decisões reconhecendo a alteração do cenário legislativo e a necessidade de equalização do passivo fiscal das empresas em recuperação, a fim de que seja homologado o plano de recuperação judicial. Nesse sentido tivemos decisões proferidas pelos nossos tribunais superiores (STJ [4] e STF [5]), o que foi seguido por TJ-RJ [6] e TJ-SP [7], além do TJ-PR, cujo órgão especial julgou o Incidente de Inconstitucionalidade nº 0048778-19.2019.8.16.0000, no qual foi reconhecida a constitucionalidade (e aplicabilidade imediata) do artigo 57 da Lei nº 11.101/05.

Não obstante, ainda temos um cenário por demais incerto nos tribunais pátrios, de maneira que o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional vem em boa hora para solucionar de uma vez por todas essa questão.

Ele dispõe especificamente sobre o parcelamento e a transação dos créditos tributários federais, oferecendo meios ainda mais favoráveis para que as empresas em recuperação judicial obtenham a regularidade fiscal exigida pelo artigo 57, em condições acessíveis e compatíveis com os objetivos e princípios orientadores da própria lei. Ademais, prevê, inclusive, a possibilidade de adesão a esses critérios pelos entes federados estaduais e municipais, buscando assim uma solução global para o crédito público.

Em relação ao parcelamento, a vindoura lei promove alteração no artigo 10-A da Lei nº 10.522/02, ampliando de 84 para 120 meses o prazo do parcelamento dos débitos das recuperandas para com a Fazenda Nacional, além de autorizar a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL ou de créditos próprios relativos a outros tributos para liquidação de até 30% da dívida consolidada em parcelamentos no âmbito da Receita Federal do Brasil.

Ademais, as prestações são calculadas aplicando-se o percentual de 0,5% da dívida consolidada, no primeiro ano, e de 0,6%, no segundo ano, de forma a facilitar os pagamentos nos primeiros anos de recuperação da empresa (a título de exemplo, o parcelamento de uma dívida de R$ 1 milhão teria as 12 parcelas iniciais no valor de cerca de R$ 5 mil e as 12 seguintes no valor de cerca de R$ 6 mil).

Alternativamente, o projeto de lei também insere o artigo 10-C na Lei nº 10.522/02, para oferecer à empresa em recuperação judicial a possibilidade de, entre o deferimento do processamento da recuperação judicial e o momento referido no artigo 57 da Lei 11.101/2005, submeter à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional proposta de transação, nos termos da Lei nº 13.988/2020, observado o prazo máximo para quitação de até 120 meses e o limite máximo para reduções de até 70%.

Com efeito, tanto o parcelamento quanto a transação tratada pelo projeto de lei constituem, pelas condições que oferecem, alternativas que proporcionam efetivamente ao empresário individual ou à sociedade empresária em crise — mas viável — a oportunidade de obter regularidade com o Fisco, gozando de benefícios compatíveis com sua situação excepcional, justamente para permitir o prosseguimento saudável do projeto de recuperação. Finalmente, atendido está, satisfatoriamente, o artigo 57 da Lei 11.101/05. A exigência de regularidade fiscal para a concessão da recuperação judicial passa a ser compatível com os objetivos do instituto, e, mais do que isso, a oportunidade de ter as regras do jogo claras e aplicáveis a todos é a pavimentação necessária para se caminhar à tão almejada segurança jurídica.

Em outras palavras, com a implementação da nova legislação, não há mais justificativa ou razão para afastar ou relativizar o artigo 57 da Lei de Falências e Recuperações Judiciais, senão o contrário. Levá-lo a efeito é benéfico para todos os envolvidos, porquanto não é real ou sustentável o soerguimento de uma empresa sem que se considere seu passivo como um todo, estando ou não os créditos sujeitos ao procedimento coletivo.

De outro lado, aplicando-se o artigo 57, à luz das novidades legislativas ora tratadas, estarão devidamente equilibrados os interesses envolvidos. À empresa viável é oferecido caminho acessível para se recuperar. Mitigados estarão os danos a nível concorrencial, na medida em que, ainda que experimentando benefícios legais, a recuperanda estará implementando esforços para gozar de regularidade fiscal. Aos credores e ao mercado, incrementa-se a confiança de que a recuperação — pela qual todos se sacrificam — se dará de forma sustentável. E o próprio instituto da recuperação judicial passa a ter o potencial de alcançar maior credibilidade no ambiente de negócios, com a consciência de que não se deixaram pontas soltas, como evidentemente vinha ocorrendo com o crédito tributário.

Juridicamente, não parece restar, portanto, razão para se deixar de aplicar a cristalina redação do artigo 57 da Lei 11.101/05, na medida em que a reforma em comento oferece instrumentos para a obtenção de regularidade fiscal em harmonia com o princípio da preservação da empresa viável. Caberá agora aos tribunais reconhecer o novo cenário e fazer valer as disposições legais e promover a (re)estabilização das expectativas normativas, ainda mais em um cenário em que se busca trazer certa análise consequencialista ao direito brasileiro, nos termos do artigo 20 da nova LINDB.

 


[2] "Diante do maior rigor adotado pela lei atual, que transforma a apresentação das certidões em requisito para a própria concessão do regime especial, não será de causar surpresa o fato de a jurisprudência vir a manter a orientação anterior, de modo a conceder-se a recuperação judicial a despeito da falta de certidões negativas apresentadas pelo devedor. A flexibilização da regra pela jurisprudência talvez seja a única forma de evitar a total inviabilização do sistema de recuperação que pode decorrer da aplicação isolada do art. 57, pelas razões anteriormente destacadas". MUNHOZ, Eduardo Secchi. COMENTÁRIOS À LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIA. Editora Revista dos Tribunais, 2007. Página 285.

[4] AREsp nº 1.593.832/SP.

[5] Reclamação nº 43.169.

[6] Agravo de Instrumento nº 0046087-14.2020.8.19.0000.

[7] Agravo de Instrumento nº 2140202-95.2020.8.26.0000.

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