Observatório Constitucional

Legitimidade constitucional das decisões do STF sobre direitos LGBTI+

Autores

  • José S. Carvalho Filho

    é doutor em Direito professor de Direito Constitucional e assessor de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).

  • Paulo Iotti

    é advogado professor universitário doutor e mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino e diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).

19 de dezembro de 2020, 8h01

Ao ampliar os parâmetros e os instrumentos processuais de controle de constitucionalidade, e também por estender os legitimados hábeis a instaurar e/ou participar do contencioso constitucional, a CR/88 inaugurou uma nova onda de acesso à Justiça, promovendo verdadeira abertura procedimental da jurisdição constitucional. Como corolário desse arranjo, temas que, até então, eram decididos tipicamente na esfera das instituições políticas clássicas (Legislativo e Executivo) migraram para o âmbito do Poder Judiciário. Trata-se do fenômeno da judicialização da política.

Nessa conjuntura, o STF tem participado de maneira cada vez mais ativa na solução de conflitos sociais diversos. Sob a justificativa de resguardar a Constituição, o Judiciário pode controlar praticamente qualquer ato do poder público, desde que se fundamentando em norma constitucional. Conforme o caso, altera-se o veículo empregado para provocar a jurisdição constitucional, mas é fato que ela está habitualmente presente no tratamento das questões mais sensíveis da nossa sociedade, como a proteção de direitos de grupos vulneráveis.

Com efeito, minorias políticas passaram a explorar o litígio constitucional como estratégia na luta por direitos civis. Em relação à tutela de direitos do grupo LGBTI+, é preciso reconhecer que significativa parte das conquistas alcançadas se concretizou por meio de decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal. O escopo deste ensaio é apresentar os principais julgados do constitucionalismo brasileiro sobre o tema.

Precedente pioneiro do STF foi o relativo às uniões homoafetivas, no qual a Suprema Corte conferiu interpretação conforme a Constituição [1] ao artigo 1.723 do Código Civil, para excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família [2]. Assim, o reconhecimento como entidade familiar da união estável entre o homem e a mulher não exclui a possibilidade de reconhecimento familiar das uniões entre pessoas do mesmo gênero, desde que configuradas na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família requisitos que a lei exige para qualquer união estável. Antes dessa decisão, muitas uniões entre pessoas do mesmo gênero eram consideradas "sociedades de fato" pela jurisprudência, o que gerava insegurança jurídica e discriminação quanto à fruição de diversos direitos previdenciários, familiaristas e sucessórios, entre outros.

Relevante precedente em que a corte reconheceu a inconstitucionalidade de termos discriminatórios, em razão da orientação sexual do destinatário da norma, foi o caso do crime de pederastia. Ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291, relator ministro Roberto Barroso, o STF assentou a inconstitucionalidade (não recepção constitucional) das expressões "pederastia ou outro" e "homossexual ou não", constantes do artigo 235 do Código Penal Militar. Naquela oportunidade, a corte entendeu que a criminalização de atos libidinosos praticados por militares em ambientes sujeitos à administração militar justifica-se para a proteção da hierarquia e da disciplina castrenses, contudo, refutou o uso de expressões pejorativas e discriminatórias pela lei, como corolário do reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual [3]. Na prática, a decisão não alterou o âmbito de incidência da norma penal incriminadora, uma vez que as mesmas condutas continuaram sendo consideradas crime, entretanto se trata de importante decisão que simboliza a impossibilidade do emprego de termos discriminatórios em atos normativos.

No que diz respeito à alteração do registro civil de pessoas transgênero, seguindo a Opinião Consultiva nº 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o STF assentou que a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la. Assim, ela resta comprovada por simples autoidentificação em declaração de vontade escrita, apresentada perante o Cartório de Registro Civil, cf. Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça , o que garante à pessoa transgênero o direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil, pelas vias administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade [4]. Posteriormente, a Suprema Corte reafirmou essa orientação no julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral, para reformar decisão que havia condicionado a alteração do registro civil à realização de cirurgia de trangenitalização [5].

Registre-se, também, a decisão judicial que, ao reconhecer omissão legislativa inconstitucional sobre o tema, enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo. A corte reconheceu a mora do Congresso Nacional para incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da população LGBTI+, razão por que reconheceu que a homofobia e a transfobia se enquadram nos crimes previstos na Lei Antirracismo (Lei 7.716/1989), por entendê-las como espécies de crimes raciais ("por raça"), na acepção político-social de raça e racismo, enquanto o Congresso Nacional não editar lei sobre a matéria. A tese fixada pelo STF foi resumida em três pontos: 1) até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/1989 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe; 2) o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, configurando-se em qualquer inferiorização de um grupo social relativamente a outro, em um sistema de relações de poder em que grupo dominante oprime, desumanizando, grupo dominado, negando a dignidade e a humanidade dos(as) integrantes de grupos vulneráveis (daí a homotransfobia se enquadrar na interpretação literal dos crimes "por raça"); e 3) a repressão penal à prática da homotransfobia não se aplica ao exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio [6].

O STF também decidiu que a Lei 6.160/2018 do Distrito Federal, que estabelece políticas públicas de valorização da família, não pode excluir a união homoafetiva como entidade familiar. De acordo com o artigo 2º, I, da referida lei, entende-se por entidade familiar "o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável". Ocorre que essa lei contraria o entendimento da Corte Suprema firmado por ocasião do julgamento das uniões homoafetivas, de 2011, razão pela qual se atribuiu ao dispositivo o mesmo entendimento já adotado: a única interpretação constitucionalmente possível da norma questionada é aquela que não exclua do conceito de entidade familiar, para fins de aplicação das políticas públicas previstas na lei, o reconhecimento de união estável contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo [7].

Na ADI 5.543, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de ato normativo da Anvisa que vedava a doação de sangue por "homens que fizeram sexo com outros homens nos últimos doze meses", por considera-los integrantes de grupo de risco supostamente mais elevado de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis. A corte entendeu que a norma, por focar no conceito ultrapassado de "grupo de risco", adotou tratamento discriminatório em relação aos homens homossexuais. Com efeito, considerar que todo homem que faça sexo com outro homem, sempre e inevitavelmente, está em uma situação de risco implica discriminação em relação a este grupo [8].

Em 2020, em uma série de julgamentos em sede de Plenário virtual, o STF declarou a inconstitucionalidade de leis municipais e de uma lei estadual (de Alagoas) que proibiam o debate de gênero nas escolas (ADPF 457, 526, 460, 465 e 467 e ADI 5.537, 5.580 e 6.038). Além de inconstitucionalidade formal, por se referir a tema de competência privativa da União, reconheceu-se a inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da liberdade de cátedra, que abarca a pluralidade de concepções pedagógicas, da vedação da censura e do papel das escolas de promoverem a liberdade, a tolerância e o respeito aos direitos humanos em favor do livre desenvolvimento da personalidade de todas as pessoas, consoante a Lei de Diretrizes e Bases da Educação no Brasil (artigo 3º, IV) e o Protocolo Adicional da Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13, 2º).

Há, ainda, decisão proferida em sede de medida cautelar em controle abstrato de constitucionalidade muito relevante sobre direitos da população transexual. Na ADPF 527, o ministro Roberto Barroso deferiu medida cautelar para determinar que as presas transexuais mulheres que o desejarem cumpram pena em presídios femininos, por entender que a medida protege a dignidade de pessoa integrante de um grupo extremamente estigmatizado e que, em relação ao contexto carcerário, sofre dupla vulnerabilidade [9].

Finalmente, há outro relevante processo de interesse da população LGBTI+ que ainda está pendente de julgamento definitivo e que servirá de paradigma para definir a extensão dos direitos fundamentais desse grupo vulnerável. No Recurso Extraordinário 845.779, analisa-se a possibilidade de as mulheres transexuais utilizarem banheiros públicos femininos, por compatíveis com o reconhecimento de sua identidade de gênero [10]. Já foram proferidos dois votos favoráveis, mas o julgamento foi interrompido, há mais de cinco anos, em razão de pedido de vista do ministro Luiz Fux.

Todos esses casos representam conquistas históricas do movimento LGBTI+, na medida em que produzem efeitos jurídicos concretos para possibilitar a fruição de direitos fundamentais, como o casamento entre pessoas que se amam, a adoção por casais homoafetivos, o registro civil compatível com a identidade de gênero do cidadão e a possibilidade de responsabilização penal do autor de crimes homotransfóbicos.

Idealmente, os avanços normativos na construção de uma sociedade mais igualitária deveriam decorrer de lei deliberada pelos representantes do povo, e não de decisão judicial conformadora do Direito. Entretanto, a efetivação de direitos mínimos da cidadania, por meio da jurisdição constitucional, constitui algo inerente à democracia constitucional, uma democracia substantiva, que não se esgota na regra da maioria. Direitos básicos, definidos na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos, constituem-se enquanto limites à vontade das maiorias, e isso é basilar na dogmática constitucional desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, pondera-se que essas decisões têm um efeito legitimador apenas relativo, uma vez que despertam uma série de críticas à atuação concretista do STF, chamada pejorativamente de "ativismo judicial", enquanto atuação supostamente inconstitucional da corte, estimulando um contramovimento reacionário do Congresso Nacional quanto à definição dos significados constitucionais. O termo blacklash é empregado para designar justamente a resistência à implementação da decisão judicial e as medidas voltadas à sua reversão [11].

Porém, o blacklash também pode ser empregado em uma concepção positiva, como instrumento de construção dialógica do Direito inspirada no constitucionalismo popular (democratic constitucionalism), na medida em que a reação popular a uma decisão judicial tem o condão de majorar a responsividade democrática da Constituição e conduzir a um saudável debate público sobre o significado da Constituição [12].

Embora a concretização imediata de direitos fundamentais pela Suprema Corte seja questão que sempre suscite polêmicas, é preciso lembrar que o princípio da separação dos poderes estabelece um sistema interorgânico de freios e contrapesos. Nesse sentido, merece louvor a doutrina de Walter Claudius Rothenburg quando aduz que mais importante do que "quem" cumpre a Constituição é "cumprir" a Constituição [13].

Obviamente, o Poder Legislativo é um intérprete legítimo, que tem ampla liberdade de conformação da Constituição, e cujas decisões devem ser objeto de deferência pelo Judiciário; exceto quando se mostrarem arbitrárias por violação aos princípios da igualdade, da razoabilidade, da proporcionalidade ou de qualquer outra norma constitucional. É justamente o caso dos direitos da população LGBTI+, que não podem ser relegadas a uma cidadania de segunda classe, tendo a si direitos básicos e proteções mínimas indispensáveis à vida digna. Por isso que a proibição constitucional de discriminações de quaisquer naturezas já funciona como legitimadora das referidas decisões do STF sobre direitos LGBTI+.

Enfim, decisões judiciais não encerram debate sobre temas polêmicos, nem convertem opositores, mas elas concretizam imediatamente alguns direitos básicos e, em consequência, cumprem as promessas de nossa Constituição Cidadã, que não pode ser vista como uma mera "folha de papel" sem nenhum significado coercitivo em caso de omissão do Legislativo. Além disso, tais decisões lançam luz de esperança que encoraja os movimentos sociais a continuarem lutando por igualdade, na esperança de terem seus direitos à igual dignidade e à cidadania sexual e de gênero [14] respeitados.

 


[1] CARVALHO FILHO, José S. Théorie et pratique de l’activisme judiciaire en France et au Brésil. Aix-en-Provence: Éditions Universitaires Européennes, 2019.

[2] ADPF 132, Rel. Minº Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 14/10/2011; ADI 4.277, Rel. Minº Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 14/10/2011.

[3] ADPF 291, Rel. Minº Roberto Barroso.

[4] ADI 4.275, Rel. Minº Marco Aurélio, Red. p/ acórdão Minº Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 14/10/2019.

[5] RE 670.422, Rel. Minº Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgamento em 15/8/2018.

[6] ADO 26, Rel. Minº Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgamento em 13.6.2019; MI 4733, Rel. Minº Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgamento em 13.6.2019.

[7] ADI 5.971, Rel. Minº Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 26.9.2019.

[8] ADI 5.543, Rel. Minº Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 7.7.2020.

[9] ADPF-MC 527, Rel. Minº Roberto Barroso.

[10] RE 845.779, Rel. Minº Roberto Barroso, Tribunal Pleno.

[11] CARDINALI, Daniel Carvalho. A judicilização dos direitos LGBT no STF: limites, possibilidades e consequências. Belo Horizonte: Arraes Editores.

[12] POST, Robert. SIEGEL, Reva. Roe Rage: democratic constitutionalism and blacklash. In Yale Law School Legal Scholarship Repository, nº 169, 2007.

[13] ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por Omissão e Troca de Sujeito. A perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 13 e 90-91.

[14] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 3ª Ed., Bauru: Ed. Spessoto, 2019, cap. 03, item 3 (sobre cidadania sexual e de gênero); MOREIRA, Adilson José. Cidadania Sexual. Estratégias para Ações Inclusivas, São Paulo: Ed. Arraes, 2017 (pioneiro sobre cidadania sexual).

Autores

  • é professor de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal, pós-doutorando em Direitos Sociais pela Universidade de Salamanca (Espanha), doutor em Direito Público pela Aix-Marseille Université (França) e mestre e especialista em Direito Constitucional pelo IDP.

  • é advogado, doutor e mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino, especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. É membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, diretor-jurídico do SEMEAR Diversidade e diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).

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